A lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, conhecida como Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Federais, estabelece como indenizações ao servidor a ajuda de custo, as diárias, o transporte e o auxílio moradia, cujos valores e condições para concessão serão dispostos em regulamento.
Em complemento a esse diploma legal, a MP 2.165-36/01, regulamentou a concessão do auxílio-transporte, destinado a custear as despesas com transporte no percurso entre a residência e o local de trabalho do servidor.
O artigo 1º da citada MP determina o pagamento da indenização em pecúnia para o custeio parcial "das despesas realizadas com transporte coletivo municipal, intermunicipal ou interestadual pelos militares, servidores e empregados públicos da Administração Federal direta, autárquica e fundacional da União, nos deslocamentos de suas residências para os locais de trabalho e vice-versa (...)"
A finalidade da norma é impedir que o servidor seja compelido a destinar parte de seus rendimentos para arcar com os custos de transporte ao local de trabalho. Ocorre que, para a Administração, essa indenização só seria devida aos usuários de transporte coletivo, de sorte que o servidor que utilize veículo particular para chegar ao local de trabalho estaria alijado do direito à percepção da parcela1.
Esse entendimento tem sido rechaçado pelos Tribunais pátrios, que já adotam a posição uníssona de que o servidor público que utilizar veículo próprio ou qualquer outro meio de transporte que não seja coletivo no deslocamento entre sua residência e o trabalho deverá igualmente perceber o auxílio-transporte2.
Superado esse primeiro obstáculo da MP 2.165/01, para que haja o efetivo usufruto a essa indenização, todos os reais custos despendidos com o deslocamento devem ser ressarcidos ao interessado. Para tanto, deve ser afastado o desconto de 6% sobre a remuneração previsto no artigo 2o da MP 2.165/01, seja para o usuário de veículo particular ou coletivo3.
O dispositivo prevê que o valor do auxílio deve corresponder ao montante efetivamente gasto com o deslocamento do servidor até o trabalho, descontado 6% do vencimento do cargo efetivo proporcional a 22 dias no período de um mês.
Isso significa que o servidor deverá arcar com o correspondente a 6% de sua remuneração para deslocar-se até o serviço, tendo a Administração de ressarci-lo dos gastos que ultrapassarem esse montante. Esse desconto acaba por tornar a vantagem um prejuízo, pois, na grande maioria dos casos, supera os valores efetivamente gastos com deslocamento e o servidor acaba por nada receber a título de auxílio.
Inclusive, a hipótese de não recebimento da parcela encontra expressa previsão na MP 2.165/01: "Não fará jus ao Auxílio-Transporte o militar, o servidor ou empregado que realizar despesas com transporte coletivo igual ou inferior ao percentual previsto neste artigo". Ora, há nítido desvirtuamento da natureza indenizatória da parcela, eis que apenas parte ou até nada da despesa com deslocamento será ressarcida ao servidor.
Além disso, o desconto de 6% impõe diferenciação desarrazoada entre servidores que, em valores nominais, recebem a mesma quantia, mas, a depender da forma como estruturada a remuneração, se subsídio ou vencimento básico e gratificações, serão alvo de cortes significativamente distintos.
Para os agentes públicos que recebem por subsídio, pago em parcela única, o desconto incidirá sobre todo o valor recebido. Para os servidores que recebem vencimento básico e gratificações, os 6% terão como base de cálculo o vencimento básico, parcela economicamente pouco expressiva, o que fará com que o montante de decréscimo seja pequeno e o servidor receba a indenização.
É até possível que a distância ao local de trabalho percorrida pelo que recebe subsídio seja maior, o que gera maiores gastos com o deslocamento, mas em razão de o que recebe vencimento básico ter o desconto incidente sobre parcela menor, apenas ele terá direito ao auxílio-transporte.
Há aí séria distinção, sem fundamento plausível, entre os integrantes das mais diversas carreiras da Administração, em violação ao princípio da isonomia, contido no caput do artigo 5º da Constituição da República.
Todos têm direito a serem indenizados pelo deslocamento até o trabalho, mas passam a ser excluídos do pagamento em razão do valor da remuneração – que torna exorbitante o desconto – e da forma como é composta – que pode ser por subsídio ou resultar da soma vencimento básico, gratificação e parcelas de cunho pessoal.
Distinção como essa, por exemplo, não é feita em relação ao auxílio-alimentação. Todos os servidores do Poder Executivo recebem R$ 455,00 , como previsto na Portaria n. 11, de 13 de janeiro de 2016, editada pela Ministra do Planejamento, Orçamento e Gestão, independentemente de cargo ocupado ou da remuneração recebida.
Ainda que o valor não seja suficiente para ressarcir todos os custos com alimentação durante o horário de trabalho e a indenização seja parcial, nenhum servidor deixa de percebê-la por ter remuneração maior ou pela forma como é paga. A todos é garantida a parcela.
Como se isso não bastasse, é possível defender uma outra interpretação para a MP 2.165-35/01, também hábil a afastar o desconto de 6%.
Ainda que o artigo 2º, caput, contemple o desconto a ser feito das despesas com transporte efetuadas pelo servidor para cálculo do auxílio transporte, o mesmo ato administrativo preceitua, no §2º do artigo 2º, que o valor do auxílio-transporte "não poderá ser inferior ao valor mensal da despesa efetivamente realizada com transporte, nem superior àquele resultante de seu enquadramento em tabela definida nos termos do artigo 8º".
O artigo 8º, por sua vez, dispõe que "A concessão do Auxílio-Transporte dar-se-á conforme o disposto em regulamento, que estabelecerá, ainda, o prazo máximo para a substituição do Vale-Transporte pelo Auxílio-Transporte em pecúnia, condicionado seu pagamento inicial à apresentação da declaração de que trata o art. 6º."
A declaração citada no artigo 6º diz respeito à comprovação, pelo servidor, das despesas havidas com deslocamento para embasar o cálculo e o pagamento do valor de auxílio-transporte devido.
Pela interpretação conjunta do artigo 8º com o §2º do artigo 2º, constata-se que a MP 2.165-35/01 determina a previsão, em regulamento, de valor fixo de auxílio-transporte, como feito no caso do auxílio-alimentação. O valor mínimo percebido deve ser correspondente à despesa efetivamente realizada e o valor máximo deve estar contido em tabela previamente definida pelo órgão de lotação.
Haveria, dessa forma, um piso e um teto para a vantagem, e o desconto de 6% do vencimento básico constituiria, na verdade, índice de correção para evitar o pagamento de valores exorbitantes, aplicável apenas em hipóteses específicas, e não de forma ampla, geral e irrestrita como tem sido feito pelo Poder Executivo Federal.
A postura atualmente adotada pela Administração, por não existirem patamares previamente ajustados de pagamento de auxílio-transporte, é de impor o desconto em tela, o que, consoante demonstrado, torna inviável a percepção da indenização e representa sério prejuízo a milhares de servidores públicos4.
Recentemente, o Juízo da 4ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal encampou esse posicionamento e afastou o desconto de 6% no pagamento do auxílio-transporte para Advogados da União. O magistrado entendeu que, como a MP n. 2.165-35/2001 prevê o decréscimo como incidente sobre o vencimento básico, o corte não pode ocorrer sobre o subsídio. Em outras palavras, a legislação é antiga e não pode ser aplicada sobre a nova estrutura remuneratória do funcionalismo público:
(...) Depreende-se da leitura dos dispositivos acima transcritos que há previsão legal de pagamento de auxílio-transporte aos Advogados da União, mediante o desconto de 6% do vencimento do cargo efetivo. No caso, como Advogados da União são remunerados na modalidade de subsídios (lei 11.358/06), não há base legal para o desconto, que somente está previsto para o caso de servidores que percebem a remuneração sob o regime de vencimentos.
Dessa forma, a Ré desbordou dos limites de seu poder regulamentar, adotando uma restrição não prevista na norma de regência da matéria. Na situação apresentada, deve ser observada a regra de hermenêutica segundo a qual "onde a lei não restringe, não cabe ao intérprete restringir", de modo a não resultar prejuízo ao servidor, que, no caso, tem direito à percepção do auxílio-transporte, porém, a lei não trata da forma de sua percepção na modalidade de subsídio.
(JFDF, Ação Coletiva 29703-39.2013.4.01.3400, relator ruiz FREDERICO BOTELHO BARROS VIANA, 4ª Vara Federal, julgado em 14/9/16, e-DJF1 de 4/11/16)
Entendimento idêntico foi adotado anteriormente pelo Juízo da 22ª Vara Federal em demanda ajuizada pela Federação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais (FENAPRF) (JFDF, Mandado de Segurança Coletivo 57388-55.2012.4.01.3400, relator juiz FRANCISCO NEVES DA CUNHA, 22ª Vara Federal, julgado em 25/9/13, e-DJF1 de 8/10/13).
Percebe-se, portanto, um início de mudança jurisprudencial, tal como ocorreu em relação à utilização de veículo próprio. Ainda que a MP n. 2.165/01 previsse apenas o pagamento pela utilização de transporte público coletivo, o Judiciário se posicionou pela indenização com gastos em todos os tipos de transporte.
A mesma adequação deve ser feita em relação ao desconto de 6%. Ainda que o abatimento encontre previsão em ato normativo, a lei 8.112/90 não prevê o reembolso apenas parcial da despesa e a incidência do corte, bem como a aplicação de princípios constitucionais, afasta o tratamento anti-isonômico entre servidores públicos submetidos, em muitos casos, a situações semelhantes (mesmo valor de remuneração).
Para os trabalhadores celetistas, o desconto de 6% igualmente existe, mas incide sobre o total efetivamente gasto com transporte e não sobre o montante total do salário. Ainda que se entenda pela necessidade de participação do trabalhador na despesa, essa participação deve ser compatível com o gasto e não pode afastar a compensação por completo, como ocorre com os servidores públicos federais.
Por essas razões, quando do pagamento do auxílio-transporte, deve ser afastado o desconto de 6% do vencimento básico, independentemente de o servidor utilizar meio de transporte individual ou coletivo. Esse fator de correção não pode ser usado de forma irrestrita, sob pena de macular o princípio da isonomia e a própria natureza indenizatória da parcela.
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1 No âmbito do Poder Executivo, é a Orientação Normativa n. 4, de 11 de abril de 2011, editada pelo Secretário de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), que normatiza a concessão do auxílio-transporte. Esse ato veda expressamente a concessão da vantagem a servidores que utilizarem veículo próprio, consoante disposto no parágrafo único do artigo 2º: Art. 2º Para fins desta Orientação Normativa, entende-se por transporte coletivo o ônibus tipo urbano, o trem, o metrô, os transportes marítimos, fluviais e lacustres, dentre outros, desde que revestidos das características de transporte coletivo de passageiros e devidamente regulamentados pelas autoridades competentes. Parágrafo único. É vedado o pagamento de auxílio-transporte quando utilizado veículo próprio ou qualquer outro meio de transporte que não se enquadre na disposição contida no caput.
2 Para ilustrar essa posição do Judiciário, vale trazer o precedente seguinte: ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. AUXILIO-TRANSPORTE. MP 2.165-36/01. USO DE VEÍCULO PRÓPRIO. SÚMULA 83 DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL A QUE NEGA PROVIMENTO. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a qual já se manifestou que o auxílio-transporte objetiva custear despesas realizadas pelos Servidores Públicos com transporte em veículo próprio ou coletivo municipal, intermunicipal ou interestadual, relativas aos deslocamentos de suas residências aos locais de trabalho, o que atrai a incidência da Súmula 83/STJ. Precedentes:AgRg no REsp. 1.568.562/RS, Rel. Min. ASSUSETE MAGALHÃES, DJe 14/3/16; AgRg no REsp. 1.119.166/RS, Rel. Min. ROGERIO SCHIETTI CRUZ, DJe 22/6/15; AgRg no AREsp. 436.999/PR, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJe 27/3/14; AgRg no AREsp. 441.730/RS, Min. HUMBERTO MARTINS, DJe 20.2.2014. 2. É firme o entendimento de que não há incidência da Súmula 10 do STF ou ofensa ao art. 97 da CF/88, nos casos em que o STJ decide aplicar entendimento jurisprudencial consolidado sobre o tema, sem declarar a inconstitucionalidade do texto legal invocado. Nesse sentido: AgRg no REsp. 1.418.492/RS, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, DJe de 3.11.2014, EDcl no AgRg no REsp. 1.143.513/PR, Rel. Min.MARILZA MAYNARD, DJe de 5/4/13; AgRg no REsp. 1.103.137/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE, DJe de 23/3/12. 3. Agravo Regimental da Universidade Federal Rural do Semi-Árido ao qual se nega provimento. (STJ, Primeira Turma, AgRg no REsp n. 1.522.387/RN, Relator Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, julgado em 21/6/16, DJE de 29/6/16)
3 A lei 8.112/90 não estabelece que a indenização será parcial, como feito na MP 2.165-36/01. O diploma prevê: Art. 51. Constituem indenizações ao servidor: I - ajuda de custo; II - diárias; III - transporte. IV – auxílio-moradia.(Incluído pela Lei nº 11.355, de 2006)
4 É esse o entendimento do Parecer Jurídico da Ouvidoria Geral FDUFBA n. 01/11:"(...) Com base na índole do regime jurídico-administrativo que tem o vezo de editar normas que visam evitar ilegalidades, como também como base no fato de que muitos Órgãos e Entidades têm autonomia para o valor de tabela de seu auxílio-transporte, pode-se asseverar que o desconto de 6% é uma medida de controle preventivo, estabelecida a priori na lei objetivando evitar pagamentos exorbitantes a título de auxílio-transporte. Por isso mesmo, o legislador cuidou para que ele não se tornasse confiscatório. Para tanto, institui um piso do auxílio e um teto para o desconto de 6%, ambos no §2º, art. 2º, da MP 2.165- 36/01, como visto acima. Repita-se: O valor do Auxílio-Transporte não poderá ser inferior ao valor mensal da despesa efetivamente realizada com o transporte [Piso], nem superior àquele resultante do seu enquadramento em tabela definida na forma do disposto no art. 8º [Teto]." (…) A título exemplificativo, para um servidor cujo vencimento (salário básico) é de R$ 2 mil reais, que realiza despesa mensal de R$ 110,00 (cento e dez reais) com transporte e cujo valor máximo de tabela do auxílio-transporte em seu Órgão ou Entidade é de R$ 136,95 (cento e trinta e seis reais e noventa e cinco centavos), teríamos o seguinte: a) piso do auxílio-transporte a ser recebido mensalmente seria igual a R$ 110,00; b) valor do desconto de 6%, em abstrato, igual a R$ 120,00; c) valor efetivo do desconto de 6%, como base na limitação imposta pelo piso e pelo teto, igual a R$ 26,95; (…) Somente assim estar-se-ia cumprimento fielmente a lei, atendendo: - à função indenizatória (de ressarcimento) do benefício do auxílio-transporte; - à finalidade do desconto de 6%, que é a de coibir pagamentos exorbitantes e não a de ser um desconto confiscatório; - ao teto do desconto de 6% que o proíbe de superar o valor máximo do benefício previsto em tabela para evitar sua invasão no vencimento do servidor, transformando um benefício em um pagamento; - e, por fim, atenderia o piso do auxílio-transporte que determina que o valor do Auxílio-Transporte em hipótese alguma poderá ser inferior ao valor mensal da despesa efetivamente realizada com o transporte.
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*Larissa Benevides Gadelha Campos é advogada sócia do escritório Torreão Braz Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília. Pós-graduada em Direito Processual Civil pelo IDP.