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Os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios

Em novembro de 2001, o Conselho Monetário Nacional, através do Banco Central do Brasil, publicou a Resolução 2.908, autorizando e disciplinando a constituição e o funcionamento de fundos de investimentos em direitos creditórios (FIDC). No mês seguinte, a Comissão de Valores Mobiliários – CVM - publicou a Instrução 356, regulamentando os fundos de investimento em direitos creditórios. Apesar disso, pouquíssimos fundos de investimento em direitos creditórios foram criados no Brasil até o primeiro semestre de 2003.

14/8/2003

 

Os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios à Luz das Alterações Promovidas pela Instrução CVM 393

 

João Paulo F. A. Fagundes*

 

1. Notas Introdutórias

 

Em novembro de 2001, o Conselho Monetário Nacional, através do Banco Central do Brasil, publicou a Resolução 2.908, autorizando e disciplinando a constituição e o funcionamento de fundos de investimentos em direitos creditórios (FIDC). No mês seguinte, a Comissão de Valores Mobiliários – CVM - publicou a Instrução 356, regulamentando os fundos de investimento em direitos creditórios. Apesar disso, pouquíssimos fundos de investimento em direitos creditórios foram criados no Brasil até o primeiro semestre de 2003.

 

Essa timidez na criação de fundos de investimentos em direitos creditórios em 2002 e no primeiro semestre de 2003 deveu-se, em grande parte, ao aperto econômico sentido nesse período1, mas, também, em menor escala, a algumas restrições contidas na regulamentação da CVM. No dia 22 de julho de 2003, a Comissão de Valores Mobiliários publicou a Instrução CVM2 393, alterando a regulamentação dos fundos de investimentos em direitos creditórios (FIDC). Com a instrução CVM 393, busca-se adequar a regulamentação dos fundos de investimento em direitos creditórios às necessidades do mercado e à conjuntura brasileira.

 

2. Fundos de Investimento em Direitos Creditórios. Composição da Carteira dos FIDCs

 

O fundo de investimento em direito creditório é uma comunhão de recursos, organizada sob a forma de condomínio, que destina parcela preponderante de seu patrimônio à aplicação em direitos creditórios3. É dizer, diferentes investidores com o mesmo objetivo de investimento entregam seus recursos ao fundo, que a seu turno investirá parte preponderante desses recursos, em seu próprio nome, em direitos creditórios. Pelos recursos investidos, os investidores recebem cotas representativas de sua participação na carteira de ativos do fundo, tornando-se condôminos do fundo. O objetivo do fundo é a valorização das cotas através do investimento em direitos creditórios, adquiridos com desconto em relação ao valor de face, e, em última instância, a geração de ganhos para os cotistas-condôminos.

 

Os direitos creditórios em que os FDICs aplicam seus recursos são “os direitos e títulos representativos de crédito, originários de operações realizadas nos segmentos financeiro, comercial, industrial, imobiliário, de hipotecas, de arrendamento mercantil e de prestação de serviços4”, além de outros títulos representativos de créditos aceitos pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM.

 

Os FIDCs devem manter pelo menos 50% do seu patrimônio líquido aplicados em direitos creditórios após noventa dias contados do início de suas atividades. A Instrução CVM 393 permite que a CVM prorrogue esse prazo, a seu bel talante, por igual período, contanto que o administrador do fundo apresente justificativas para tal prorrogação. O remanescente do patrimônio líquido dos FIDCs pode ser aplicado em “títulos de emissão do Tesouro Nacional, títulos de emissão do Banco Central do Brasil, créditos securitizados pelo Tesouro Nacional, títulos de emissão de estados e municípios, certificados e recibos de depósito bancário e demais títulos, valores mobiliários e ativos financeiros de renda fixa, exceto cotas do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS) 5”.

 

É permitido, ainda, que os FIDCs realizem operações compromissadas e no mercado de derivativos6, estas últimas somente com o objetivo de proteger posições mantidas à vista.

As aplicações do fundo em warrants e em contratos mercantis de compra e venda de produtos, mercadorias e/ou serviços para entrega ou prestação futura, bem como em títulos ou certificados que representem esses contratos, devem ser garantidos por instituição financeira ou seguradora, observando-se, no último caso, a regulamentação da Superintendência de Seguros Privados – SUSEP.

 

Ainda com relação à composição de suas carteiras, os FIDCs não podem alocar mais de 10% do seu patrimônio líquido em direitos creditórios de uma mesma pessoa jurídica, ou de empresas pertencentes ao mesmo grupo econômico. Esse limite é de 20% para direitos creditórios de instituições financeiras e sociedades pertencentes ao seu grupo econômico. Esses limites, previstos na Instrução CVM 356, podem ser extrapolados, contanto que tal possibilidade seja estabelecida no regulamento do FIDC e, além disso, desde que ela conste, de forma destacada, do prospecto entregue ao cliente. De resto, há que se destacar que tais percentuais devem ser atendidos diariamente, tendo por base o patrimônio líquido do fundo no último dia útil.

 

3. Fundos abertos e fechados

 

Os FIDCs podem ser constituídos sob a forma de condomínio aberto ou fechado. A principal diferença é que os fundos abertos podem, a qualquer momento, emitir novas cotas e resgatar cotas anteriormente emitidas. Em outras palavras, pode-se entrar e sair de um fundo aberto a qualquer momento7. Nos fundos fechados, entretanto, os cotistas só podem resgatar as suas cotas ao término da existência do fundo, de sorte que a negociação de cotas de um fundo fechado se dá no âmbito do mercado secundário, isto é, em bolsa de valores ou mercado de balcão8 . Justamente por isso, as cotas dos fundos fechados podem ser comparadas com ações comuns emitidas por companhias de capital aberto9 . Outra diferença é que as cotas dos fundos fechados não são oferecidas continuamente. Nos fundos fechados, há uma oferta inicial de cotas (IPO) e, eventualmente, mas não necessariamente, pode ocorrer nova colocação no futuro10 . Geralmente, a estrutura fechada é utilizada quando o objetivo é investir em ativos de menor liquidez, ou quando se procura maior retorno para os investimentos. De fato, como os fundos fechados não estão obrigados a resgatar suas cotas a qualquer momento, podem eles aplicar seus recursos em ativos de menor liquidez11.

 

Outra distinção que se pode fazer é que as cotas de FIDCs constituídos sob a forma de condomínio fechado podem ser amortizadas, mas as dos fundos abertos, não. Afigura-se oportuno, nesse passo, distinguir-se o resgate de cotas da amortização de cotas.

 

Resgate12 é o mecanismo conferido a titulares de cotas de fundos abertos ou fechados, pelo qual eles, titulares das cotas, mediante a apresentação das cotas ao emitente ou à pessoa designada pelo emitente, têm direito a receber sua parte proporcional da carteira líquida de ativos do fundo, ou o equivalente em dinheiro13. De se lembrar que, no caso dos fundos fechados, o resgate só tem lugar com o término do prazo de existência do fundo. O resgate é mecanismo aplicável tanto para as cotas de fundos constituídos sob a forma de condomínio aberto como para as cotas de fundos organizados em condomínio fechado14.

 

Amortização, a seu turno, “é o pagamento aos cotistas do fundo fechado de parcela do valor de suas cotas, sem redução de seu número”. (Instrução CVM 356, art. 2º, inciso XII). A amortização, entretanto, só é aplicável às cotas de fundos organizados em condomínio fechado.

 

4. Outros Aspectos dos Fundos de Investimento em Direito Creditório, à luz da recente Instrução CVM 393

 

Os fundos de investimento em direitos creditórios podem emitir dois tipos de cotas: as cotas de classe sênior - cotas seniores, e as cotas de classe subordinada - cotas subordinadas. Consoante definição da Instrução CVM 393, a cota de classe sênior é “ aquela que não se subordina às demais para efeito de amortização e resgate”. É dizer, a cota sênior é aquela que pode ser resgatada ou amortizada independentemente da prévia amortização e resgate de outras cotas. Também em conformidade com a Instrução CVM 393, cota de classe subordinada é “é aquela que se subordina às demais para efeito de amortização e resgate” 15. Trocando em miúdos, cota subordinada é aquela que, como regra geral, só pode ser amortizada ou resgatada depois de terem sido amortizadas ou resgatadas as cotas seniores ou, se assim previsto no regulamento, depois de terem sido amortizadas ou resgatadas cotas subordinadas de uma outra classe. Quadra observar que, nos termos do artigo 18-B, acrescentado à Instrução CVM 356 pela Instrução CVM 393, a amortização de cotas subordinadas, nos fundos fechados, só pode ocorrer nas hipóteses previstas no regulamento do fundo, obedecidos os critérios nele estabelecidos.

 

Na prática, as cotas subordinadas são subscritas pelo cedente dos direitos creditórios e servem para garantir a liquidez das cotas seniores no caso de inadimplemento dos direitos creditórios. Vale dizer, subscrevendo as cotas subordinadas, ou boa parte delas, o cedente só receberá seu investimento depois dos cotistas seniores. Daí dizer-se que as cotas subordinadas servem de colchão de liquidez para os cotistas seniores. Bem por isso, também, é que os cotistas seniores podem ser considerados como os verdadeiros investidores dos FIDCs16.

 

O regulamento do fundo deve estabelecer a proporção mínima entre o valor das cotas seniores e o patrimônio do fundo, assim como a periodicidade para aferição do cumprimento dessa proporção e da sua divulgação aos cotistas17.

 

De acordo com a antiga regulamentação, os fundos de investimento em direitos creditórios só podiam oferecer cotas seniores de uma única classe. Podiam, entretanto, oferecer mais de uma classe de cotas subordinadas (Instrução CVM 356, art. 12).

 

Agora, com a nova regulamentação, passa a ser possível que os fundos constituídos sob a forma de condomínio fechado ofereçam mais de uma série18 de cotas seniores, com prazos e valores diferentes para emissão, resgate e amortização19 .

 

Na prática, isso quer dizer que as administradoras de fundos de investimentos em direitos creditórios poderão atingir mais facilmente investidores com diferentes pretensões e possibilidades de investimento. Trata-se, certamente, de importante e acertada medida para estimular o crescimento da indústria de fundos de investimento em direitos creditórios.

 

De acordo com a nova redação dada pela Instrução CVM 393 ao artigo 6º da Instrução CVM 365, o regulamento do fundo deve estabelecer os prazos para resgate e amortização de cada série e classe de cotas. No entanto, as cotas seniores de uma mesma série, além de possuírem iguais características, devem conferir aos seus titulares os mesmos direitos e obrigações20.

 

A nova Instrução inovou também ao dispor que, nos fundos de investimentos em direitos creditórios constituídos sob a forma de condomínios abertos, o resgate das cotas subordinadas pode-se dar antes do resgate das cotas seniores21, desde que transcorrido prazo de 60 dias a contar do pedido de resgate e, naturalmente, observando-se sempre o regulamento do fundo. Solicitado o resgate de cotas subordinadas, o administrador do fundo deve comunicar tal fato, em até três dias úteis contados a partir da solicitação de resgate, aos titulares de cotas seniores em circulação. O valor e a data da realização do resgate pretendido pelos titulares de cotas subordinadas também devem ser comunicados pelo administrador, no mesmo prazo de três dias úteis. O objetivo dessa comunicação é permitir que os titulares de cotas seniores resgatem suas cotas antes de transcorrido o prazo de sessenta dias para resgate das cotas subordinadas, garantindo-se assim a preferência da cotas seniores em relação às subordinadas22.

 

Impende observar que a nova regulamentação veda a “afetação ou a vinculação, a qualquer título, de parcela do patrimônio do fundo a qualquer classe ou série de cotas23”. Todavia, “na hipótese de liquidação do fundo, os titulares de cotas seniores terão o direito de partilhar o patrimônio na proporção dos valores previstos para amortização ou resgate da respectiva série e no limite desses mesmos valores, na data da liquidação, sendo vedado qualquer tipo de preferência, prioridade ou subordinação entre titulares de cotas seniores. 24” Ou seja, caso o fundo venha a ser liquidado, os cotistas seniores poderão partilhar o patrimônio do fundo. Não todo o patrimônio. Somente até o limite dos valores previstos para amortização ou resgate de cada série. E a partilha há de se dar na exata proporção desses mesmos valores.

 

Nos termos da nova regulamentação os administradores dos fundos podem distribuir, simultaneamente, classes e séries de quotas diferentes, “em quantidades e condições previamente estabelecidas no anúncio de início de distribuição de cotas e no prospecto do fundo25.” Consoante exposto na minuta do Edital de Audiência Pública, a distribuição simultânea de cotas de diferentes classes e séries evita a “reincidência de custos de transação26”. Além disso, a possibilidade de distribuição de cotas de diferentes classes e séries, simultaneamente, permite a captação de recursos sob prazos e condições diversas, o que amplia o leque de investidores interessados em investir no fundo e possibilita maior diversificação na aplicação dos recursos.

 

De acordo com a antiga regulamentação, os fundos de investimento em direitos creditórios deveriam ser classificados ou ter “seus ativos classificados por agência classificadora de risco em funcionamento no país” (Instrução CVM 356, art. 3º). A Instrução CVM 393 estabelece que somente as classes e séries de cotas “destinadas à colocação pública27” devem ser classificadas por agência classificadora de riscos. Vale notar que o termo colocação pública, aqui, não é empregado em seu sentido técnico, como sinônimo de emissão ou distribuição pública28. Com efeito, o artigo 3º, inciso II, da Instrução CVM 393 é claro ao estabelecer que os fundos de investimento em direitos creditórios “somente poderão receber aplicações, bem como ter cotas negociadas no mercado secundário, quando o subscritor ou adquirente das cotas for investidor qualificado”.

 

Outra importante alteração para os investidores foi a modificação do artigo 14 da Instrução CVM 356. Segundo a antiga redação do artigo 14, as cotas do fundo deveriam “ter seu valor calculado pelo menos por ocasião das demonstrações financeiras mensais e anuais mediante a utilização de metodologia de apuração do valor de mercado dos direitos creditórios e dos demais ativos financeiros integrantes da respectiva carteira, de acordo com critérios consistentes e passíveis de verificação, amparada por informações externas e internas que levem em consideração aspectos relacionados ao devedor, aos seus garantidores e às características da correspondente operação.” Pela nova instrução, os ativos financeiros e os direitos creditórios devem ser necessariamente apurados de acordo com o valor de mercado, quando houver.

 

Outra alteração diz respeito à forma da cotas dos fundos de investimento de direitos creditórios. À luz da antiga regulamentação, as cotas dos fundos de recebíveis seriam nominativas. Com a nova regulamentação, porém, as cotas dos fundos de investimento em direitos creditórios devem necessariamente ser escriturais29.

 

Com a nova redação dada ao artigo 15 da Instrução CVM 356, o resgate de cotas seniores também pode-se dar em direitos creditórios, mas somente nos casos de liquidação antecipada do fundo. Antes, em nenhuma hipótese as cotas seniores podiam ser resgatadas em direitos creditórios. É importante notar que a nova regulamentação só autorizou o resgate de cotas seniores em direitos creditórios nos casos de liquidação antecipada. É dizer, a amortização de cotas seniores, em direitos creditórios, continua sendo vedada, mesmo nos casos de liquidação antecipada do fundo.

 

Outra modificação relevante concerne ao valor das cotas dos fundos de recebíveis no momento de sua emissão. Em sua antiga redação, o artigo 16 da Instrução CVM 356 estabelecia que “na emissão de cotas do fundo deve ser utilizado, conforme disposto pelo regulamento, o valor da cota em vigor no próprio dia ou no primeiro dia útil subseqüente ao da efetiva disponibilidade dos recursos confiados pelo investidor à instituição administradora (..). A instrução CVM 393 apartou os fundos abertos dos fundos fechados ao cuidar da estipulação do valor de suas cotas. No caso dos fundos abertos, a regra antiga continua valendo. Todavia, para os fundos fechados, “o preço de subscrição poderá contemplar ágio ou deságio sobre o valor previsto para amortização, desde que uniformemente aplicado para todos os subscritores e apurado através de procedimento de descoberta de preço em mercado organizado.”

 

O artigo 17 da Instrução CVM 356 também ganhou nova redação com a publicação da Instrução CVM 393. A redação atual, à primeira vista, pode causar alguma estranheza. É que o caput do artigo 17 parece permitir a colocação de cotas de fundos de investimento em direitos creditórios constituídos sob a forma de condomínio fechado ao público em geral, vale dizer, a investidores não qualificados, presumidamente desprovidos de informações necessários à avaliação do risco do investimento, in verbis: “nas emissões de cotas de fundo fechado colocadas junto ao público (...)”. O parágrafo único do tal artigo 17, entrementes, é esclarecedor, deixando claro que as cotas de fundos de investimento em direitos creditórios organizados em condomínio fechado só podem ser negociadas com investidores qualificados30. Ainda nos termos do supradito parágrafo único, as cotas dos fundos fechados devem ser registradas para negociação “em bolsa de valores ou em mercado de balcão organizado”. Esse registro para negociação em bolsa ou mercado de balcão organizado é de responsabilidade da administradora do fundo (art. 57, inciso XI, da Instrução CVM 302) e da instituição que intermediar a operação (art. 7º da Instrução CVM 88).

 

5. Fundos de Investimento em Direitos Creditórios e Operações de Securitização de Recebíveis

 

Securitização é o processo pelo qual ativos financeiros ilíquidos, sem mercado secundário, são convertidos em valores mobiliários ativamente negociáveis no mercado secundário31 . Securitização de recebíveis, portanto, pode ser definida como o processo pelo qual direitos creditórios ilíquidos são transformados em valores mobiliários ativamente negociáveis no mercado secundário.

 

Em linhas bem gerais, uma operação de securitização de recebíveis – também conhecidas com structured financing - engloba as seguintes etapas: uma empresa, geralmente designada originadora, desejando receber direitos creditórios originados em sua atividade (duplicata decorrente de venda de mercadoria por exemplo), promove a constituição de uma outra sociedade, de propósito específico (SPC), denominada securitizadora. A securitizadora distribui valores mobiliários de sua própria emissão, geralmente debêntures, captando recursos junto ao público em geral. Esses recursos, então, são utilizados pela sociedade securitizadora para adquirir recebíveis (ou direitos creditórios, se se preferir) da empresa originadora. Com isso, a empresa originadora consegue receber antecipadamente os seus direitos creditórios. Naturalmente, o recebimento antecipado de direitos creditórios pela sociedade originadora se dá com um desconto em relação ao efetivo valor dos recebíveis, haja vista que estes têm vencimento futuro32.

 

Um dos principais conceitos que fundamentam a operação de securitização de recebíveis é o de separar o risco concernente aos direitos creditórios dos riscos atinentes à originadora. Com a cessão dos direitos creditórios da originadora para a securitizadora, os investidores que adquirem debêntures emitidas por esta última estarão expostos tão-somente ao risco de inadimplência dos recebíveis, que servem de lastro para a emissão dos valores mobiliários. É importante destacar que, exatamente pelos motivos expostos neste parágrafo, a sociedade securitizadora é constituída com o propósito único e específico de adquirir os direitos creditórios da originadora, através da colocação de debêntures de sua emissão junto a investidores. Dessa forma, a sociedade securitizadora não possui nenhum outro débito, nenhuma outra obrigação, senão a de pagar os investidores que adquiriram seus valores mobiliários33. A esse respeito, é de se notar que a classificação do risco da operação é promovida com base no risco da sociedade específica securitizadora, que, dessarte, logra obter melhor rating do que a empresa originadora obteria, circunstância essa que, em última instância, implica um custo inferior de captação34.

 

Como se pode notar, existem grandes semelhanças entre as operações de securitização de recebíveis e os fundos de investimento em direitos creditórios. A bem da verdade, as operações de securitização de recebíveis e aquelas envolvendo fundos de investimento em direitos creditórios são praticamente idênticas. Em ambos os casos, há uma sociedade que originou direitos creditórios em operações com seus clientes (venda de mercadorias, prestação de serviços etc), cedendo estes direitos para uma outra entidade, que irá colocar valores mobiliários por ela emitidos junto ao público, e pagar a originadora pelos direitos que adquiriu com os recursos captados no mercado. A diferença está em que, nas operações de securitização, é a sociedade de propósito específico, uma sociedade anônima, quem recebe os direitos e capta recursos, para pagá-los, no mercado, através da colocação de valores mobiliários de sua emissão. E, no casos dos fundos de investimento em direitos creditórios, o fundo, vale dizer, um condomínio, desempenha o papel da sociedade de propósito específico.

 

Colocando-se de outra forma, pode-se afirmar que os fundos de investimento em direitos creditórios são estruturas financeiras alternativas para as operações de securitização de recebíveis, consoante dá conta, aliás, Fernando Schwarz Gaggini, verbis: “frente às dificuldades de ordem tributária que as operações de securitização têm encontrado em nosso país, dificuldades que inviabilizam uma série de operações, buscou a administração pública, com a criação desses fundos, uma forma de contornar tais obstáculos e permitir o desenvolvimento do mercado de recebíveis” 35.

 

Cumpre alertar, todavia, que, do ponto de vista do investidor, existem algumas particularidades que podem fazer diferença na hora de se optar por investir em debêntures emitidas por uma sociedade de propósito específico securitizadora ou em cotas de emissão de fundos de investimento em direitos creditórios.

 

Uma delas é que investidores institucionais podem aplicar maior percentagem de sua carteira em debêntures emitidas por sociedades de propósito específico securitizadoras do que em cotas emitidas por fundos de investimento em direitos creditórios.

 

Outra particularidade é que as debêntures emitidas pela sociedades de propósito específico securitizadoras são valores mobiliários de vasta utilização no mercado brasileiro, enquanto as cotas de fundos de investimento em direitos creditórios ainda não o são.

 

A terceira e talvez mais relevante particularidade diz com a tributação da operação de securitização, significativamente mais onerosa do que a incidente sobre os fundos de investimento em direitos creditórios. Realmente, nas operações de securitização de recebíveis, a sociedade de propósito específico securitizadora está sujeita ao pagamento da contribuição destinada ao PIS, da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS, do Imposto de Renda Pessoa Jurídica – IRPJ, e da Contribuição Social sobre o Lucro – CSL. Os FIDCs, no entanto, não estão sujeitos ao pagamento da contribuição destinada ao PIS, da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS, do Imposto de Renda Pessoa Jurídica – IRPJ, e da Contribuição Social sobre o Lucro – CSL.

 

6. Notas Finais

 

Os fundos de investimento em direitos creditórios foram introduzidos em nossa legislação para dar mais liquidez ao mercado de crédito. Vieram à lume com a Resolução 2.908 do Conselho Monetário Nacional, e foram regulamentados pela Instrução 356 da Comissão de Valores Mobiliário, a qual foi modificada recentemente pela Instrução CVM 393.

 

Na prática os FIDCs são alternativas para as operações de securitização de recebíveis. Todavia, a adoção de uma ou de outra estrutura financenira dependerá das especificidades de cada caso concreto. Pode-se esperar, porém, um aumento no número de fundos de investimentos em direitos creditórios no futuro próximo, especialmente em decorrência das importantes alterações trazidas pela Instrução CVM 393.

______________

1“(...) o ano de 2002 foi excepcionalmente ruim para o mercado de capitais. Problemas como a corrida dos fundos de investimento, em função da marcação a mercado dos títulos públicos, o agravamento da crise Argentina, a expressiva diminuição das linhas de crédito para as companhias brasileiras, a indefinição do cenário eleitoral, e ainda, o elevado custo de financiamento da dívida pública, ‘travaram’ o mercado. Com o clima pouco favorável, os originadores de recebíveis decidiram não se aventurar, optando pelas renegociações de suas dívidas ou emissões ‘plain vanila’ acrescidas de caução de recebíveis.” Artigo publicado no site da Pentágono, sociedade distribuidora de títulos e valores mobiliários.

²“Além do cenário desfavorável, outro motivo que não permitiu o avanço maior dos FIDC's foi a própria legislação que os instituiu. Tendo em vista sua rápida elaboração, e a grande preocupação do órgão regulador em proteger ao máximo os investidores, alguns pontos relevantes necessitam ser alterados, entre os quais citamos: (i) o resgate de cotas subordinadas somente após a integral liquidação das cotas seniores; (ii) não previsão de emissão de cotas seniores com características distintas, e em séries indeterminadas; e (iii) a necessidade de seguro performance, nos casos onde os recebíveis não são performados.” Idem.

3 Eduardo Fortuna, Mercado Financeiro – Produtos e Serviços, página 378.

4 Consoante Instrução CVM 393, que será tratada detalhadamente neste trabalho.

5 Artigo 40 da Instrução CVM 356.

6 As operações com derivativos podem se dar “tanto em mercados administrados por bolsas de mercadorias e de futuros, quanto no de balcão, nesse caso desde que devidamente registradas em sistemas de registro e de liquidação financeira de ativos autorizados pelo Banco Central do Brasil.” (Instrução CVM 356, art. 40, §3º)

7 Embora tratando genericamente de fundos de investimento, ou seja, apesar de não estar se referindo especificamente aos fundos para investimento em direitos creditórios, Alvin D. Hall deixa bem clara essa diferença entre os fundos abertos e fechados, válida para qualquer espécie de fundo:“A mutual fund is called an ‘open-end’ management company because it stands ready to issue new shares and redeem old shares every business day. As individuals buy (i.e., invest more money in) a fund, it issues more shares and uses the proceeds to purchase additional stocks and bonds to put into the portfolio. When investors sell (i.e., redeem) shares of a fund, the fund itself buys the shares back from the investor. Hence, the total shares outstanding declines. Thus, the number of a mutual fund's shares outstanding changes daily depending on the number of purchases or redemptions.” Getting Started in Mutual Funds, página 03 (Wiley 2000).

8 “O mercado de balcão compreende as negociações realizadas fora das bolsas, com a participação de empresas ou profissionais que compõem o sistema de distribuição de valores mobiliários. Esse mercado é dividido em duas categorias: a) mercado de balcão organizado, cujos negócios são supervisionados por entidade auto-reguladora, com funcionamento autorizado pela CVM; b) mercado de balcão não organizado, cujos negócios não são supervisionados por entidade auto-reguladora.” Andrea Fernandes Andrezo e Iran Siqueira Lima, Mercado Financeiro, página 278 (Thomson 2002)

9 Essa comparação, naturalmente, não escapou da observação de Alvin Hall, verbis: “Just like the common shares issued by a publicly held corporation (e.g., IBM, GE, AT&T), a closed-end fund's shares can be bought and sold on a stock exchange or in the over-the counter market – hence the name ‘publicly traded fund’. These shares are described as being tradable securities. In contrast, mutual fund shares (i.e., shares of an open-end management company) are redeemable securities and cannot be traded in the secondary market.” Getting Started in Mutual Funds, página 15 (Wiley 2000).

10 Nos termos do artigo 41 da Instrução CVM 302, é competência privativa da assembléia geral de cotistas deliberar sobre nova emissão de cotas nos fundos constituídos sob a forma de condomínio fechado.

11 “The closed-end structure is usually used when a fund holds illiquid securities that cannot back redemption requirements or when a fund does not offer redeemable securities because it aims at long term investments, yet cannot be left without management.” Tamar Frankel and Clifford E. Kirsch, Investment Management Regulation, página 411 (Carolina Academic Press 1998)

12 Redemption (resgate), segundo Alvin D. Hall, é a venda de cotas dos fundos abertos de volta ao fundo, ou aos agentes de venda do fundo, pelo valor líquido dos ativos proporcionais. Alvin D. Hall, Getting Started in Mutual Funds, página 04 (Wiley 2000).

13 “Before we discuss the characteristics of redeemable securities, we define the term. Section 2(a)(32) of the Investment Company Act defines redeemably securities to mean ‘any security...under the terms of which the holder upon its presentation to the issuer or to a person designated by the issuer, is entitled...to receive approximately his proportionate share of the issuer's current net assets, or the cash equivalent thereof.” (Tamar Frankel and Clifford E. Kirsch, Investment Management Regulation, página 261 (Carolina Academic Press 1998)

14 Ao distinguir os FIDCs' abertos e fechados, Eduardo Fortuna assim se manifestou: “Estes fundos podem ser constituídos na forma aberta, quando então, os condôminos podem solicitar resgate de cotas, em conformidade com o disposto no regulamento do fundo, ou na forma fechada quando então as cotas somente serão resgatadas ao término do prazo de duração do fundo, ou em virtude de sua liquidação, admitindo-se, ainda, a amortização de cotas (o pagamento aos cotistas do fundo fechado de parcela do valor de suas cotas, sem redução do seu número) por disposição do regulamento ou por decisão da assembléia geral de cotistas.” Mercado Financeiro – Produtos e Serviços, página 378 (QUALITYMARK 2003)

15 A Instrução CVM 356 definia cota subordinada como “aquela que se subordina à cota sênior ou a outras cotas subordinadas, para efeito de amortização e resgate;

16 Eduardo Fortuna manifestou-se com muita propriedade sobre esse aspecto, verbis: “As empresas ou instituições que cedem os créditos que constituem os fundos devem subscrever parte das cotas subordinadas, o que significa que só receberão o rendimento da aplicação, depois dos cotistas sênior, ou seja os investidores propriamente ditos.” Mercado Financeiro – Produtos e Serviços, página 379 (QUALITYMARK 2003)

17 Consoante inciso XV, do artigo 24., da Instrução CVM 356, à esta acrescentado pela Instrução CVM 393.

18 Segundo a Instrução CVM 393, séries são “subconjuntos de cotas da classe senior dos fundos fechados, diferenciados exclusivamente por prazos e valores para amortização, resgate e remuneração, quando houver.”

19 De fato, assim dispõe o artigo 12, §1º, da Instrução CVM 393: “No caso dos fundos fechados, as cotas seniores podem ser divididas em séries com valores e prazos diferenciados para amortização, resgate e remuneração.”

20 Vide artigo 12, §2º, da Instrução CVM 356, com a nova redação dada pela Instrução CVM 393.

21 A regra geral é aquela contida no artigo 24, inciso VI, letra “a”, da Instrução CVM 356 (com as alterações promovidas pela Instrução CVM 393), segundo a qual “as cotas subordinadas somente poderão ser resgatadas após o resgate das cotas seniores(...).”

22 Em relação à amortização, a nova regulamentação reforçou a regra geral segundo a qual as cotas subordinadas somente podem ser amortizadas depois de amortizadas as cotas seniores. Vale lembrar, consoante já anotado acima, que as cotas subordinadas de fundos fechados somente poderão ser amortizadas nas hipótese estabelecidas no regulamento do fundo.

23 Artigo 12, §4º, da Instrução CVM 356, já com as modificações introduzidas pela Instrução CVM 393.

24 Artigo 12, §3º, da Instrução CVM 356, já com as modificações introduzidas pela Instrução CVM 393.

25 Artigo 20, §3º, da Instrução CVM 356, já com as modificações introduzidas pela Instrução CVM 393.

26 Minuta da Instrução CVM 393.

27 Artigo 3º, inciso III, da Instrução CVM 356, com a nova redação dada pela Instrução CVM 393.

28 Na lição de Nelson Eizirik, “para distinguir-se a emissão pública da emissão privada, além de indeterminação dos ofertados e da inexistência de vínculos deles com a emissora, há que se perquirir sobre dois elementos adicionais: a qualificação dos investidores; e a disponibilidade de informações. (...) Relativamente à qualificação dos ofertados, deve ser verificado qual o seu grau de sofisticação como investidores. Nessa linha, cabe ser analisada a capacidade dos destinatários da oferta de assumirem os riscos do empreendimento, assim como o seu conhecimento de questões financeiras.” (“Caracterização Jurídica da Emissão Pública de Valores Mobiliários, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro n.º 83, páginas 59 e 60 (RT 1991)

29 “As ações escriturais foram introduzidas na legislação brasileira com a atual lei das sociedades anônimas. Trata-se de uma variante da ação nominativa, pois, como nessa, o registro é que confere a propriedade. Na ação nominativa o registro é procedido nos livros da sociedade e na ação escritural esse mesmo registro tem lugar nos livros da instituição financeira para tanto designada. A autorização para a prestação de serviços de ações escriturais encontra-se regulada pela Instrução CVM n.º 89/88. A transferência de ação nominativa depende de um termo de transferência lavrado nos livros da sociedade, assinado pelo alienante e pelo adquirente. No caso de ação escritural, basta uma ordem escrita do alienante, que ficará arquivada na instituição financeira. A grande novidade da ação escritural é a ausência de certificado, pois que o titular dessas ações apenas recebe um extrato da chamada conta de depósito das ações.” José Edwaldo Tavares Borba, Direito Societário,Página 241 (Renovar 2003)

30Nos termos do artigo 99 da Instrução CVM 302, investidores qualificados são: I- instituições financeiras; II - companhias seguradoras e sociedades de capitalização; III - entidades abertas e fechadas de previdência privada; IV - fundos de investimento regulados e fiscalizados pelo Banco Central do Brasil; V - pessoas jurídicas não financeiras com patrimônio líquido superior a R$5.000.000,00 (cinco milhões de reais); e VI – carteiras de valores mobiliários de valor superior a R$500.000,00 (quinhentos mil reais) administradas, discricionariamente, por administrador autorizado pela CVM a prestar serviços de administração de carteira, nos termos do art. 23 da Lei n.º 6385/76.”

31 “Securitization. While definitions vary, ‘ securitization refers to a process by which an illiquid financial asset that has no secondary market is converted into a tradeable security with an active secondary market. The process first developed through the efforts of banks and other lenders to repackage their mortgage loans into a pool in which they could sell collateralized interests to investors. To do this, banks would transfer a large number of such loans to a trustee or other special purpose entity (who would administer and service the pool) and then would sell debt securities in the pool. By pooling their loans and selling interests in them, banks improved their capital ratios and escaped regulatory requirements that otherwise forced them to maintain reserves on their own balance sheets equal to some proportion of the transferred loans. Richard W. Jennings; Harold Marsh, Jr.; John C. Coffee, Jr.; and Joel Seligman, Securities Regulation – Case and Materials, páginas 51/52 (Foundation Press 1998)

32 Conforme observado por Fernando Schwarz Gaggini, “ o percentual do deságio dependerá de diversos fatores, tais como: o prazo de vencimento dos títulos, a classificação de risco dos recebíveis e dos títulos e valores mobiliários lançados, as taxas de juros vigentes no mercado, entre outros.” Obra citada, página 30.

33 “(...) the financial asset being securitized must be segregated from the sponsor's other assets in order to insulate the securitized asset from any risks associated with the sponsor's possible insolvency. This second step is achieved by transferring the assets to a trust or some ‘ special purpose vehicle’ that is restricted from engaging in any other activity.” Richard W. Jennings; Harold Marsh, Jr.; John C. Coffee, Jr.; and Joel Seligman, Securities Regulation – Case and Materials, página 52 (Foundation Press 1998)

34 Fenrnando Schwarz Gaggini, Securitização de Recebíveis, página 33 (LEUD 2003)

35 Securitização de Recebíveis, página 86 (LEUD 2003)

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* Advogado do escritório Rayes, Fagundes & Oliveira Ramos Advogados Associados, Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Mestre em Direito (LL.M) pela Northwestern University School of Law.

 

 

 

 

 

 

 

 

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