Migalhas de Peso

Reflexos possessórios no abuso do direito de penetração

Um sustentáculo comum entre diferentes sistemas jurídicos adotados mundo afora, de tempos remotos até os nossos dias, a propriedade é seguramente um dos direitos mais consagrados da humanidade.

22/9/2016

"O que o homem perde, através do contrato social, é a sua liberdade natural e um direito sem limites a tudo aquilo que o tenta e que ele pode obter: o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo aquilo que possui. Para não se enganar nestas compensações, precisa distinguir bem a liberdade natural, que não tem outros limites a não ser as forças do individuo, da liberdade civil, que é limitada pela vontade geral."

Jean-Jacques Rousseau

O direito das coisas disciplina o poder que os homens exercem sobre os bens e as formas de sua utilização. No rol desses diretos, está inserido o de propriedade ou, simplesmente, a propriedade.

Felizmente, alguns aspectos deste direito foram aperfeiçoados com o passar do tempo e a evolução da sociedade, mas sua essência permanece intacta.

O CC vigente não modificou de forma substancial a estrutura e os fins dos direitos reais tradicionalmente estabelecidos, o que termina por realçar a historicidade do conceito do direito de propriedade.

Em sua acepção tradicional é tido como a faculdade de usar, gozar e dispor de um determinado bem de vida e de reavê-lo de quem injustamente o detenha. O jus utendi, fruendi, abutendi et re vindicatio, como diziam os Romanos.

Para o ilustre Prof. Orlando Gomes:

Sua conceituação pode ser feita à luz de três critérios: o sintético, o analítico e o descritivo. Sinteticamente, é de se defini-lo, com Windscheid, como a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Analiticamente, o direito de usar, fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua.
Descritivamente, o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei.

Um sustentáculo comum entre diferentes sistemas jurídicos adotados mundo afora, de tempos remotos até os nossos dias, a propriedade é seguramente um dos direitos mais consagrados da humanidade. Até porque possui relevante significado político, social e econômico, cuja intensidade poderá variar de acordo com a época e o momento político.

É certo que, hoje, diferentemente do que ocorria na Roma antiga, a propriedade comporta restrições e seu exercício é limitado, especialmente quando se depara com causas que transcendem as fronteiras do interesse individual. Isto significa dizer que, se assim mandar o interesse público, o particular poderá flagrar-se totalmente privado de sua propriedade, desde que prévia e justamente indenizado.

É neste contexto que surge a Desapropriação, uma das formas mais enérgicas de limitação ao direito de propriedade, compreendida como o ato pelo qual o Poder Público, mediante prévio procedimento e justa indenização, em razão de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, expropria determinado bem de seu particular proprietário.

Como muito bem pontua Orlando Gomes, a Desapropriação “Priva o particular do bem de que é proprietário, que assim, sem consentir, perde a propriedade desse bem.”.

Portanto, acerta quem afirma que a Desapropriação é uma forma de perda da propriedade, conforme preceitua o artigo 1.275, inciso V da Lei Civil.

Diante de seu caráter eminentemente social, a Desapropriação é consagrada em vários diplomas do ordenamento jurídico brasileiro, principalmente na CF (artigo 5º, inciso XXIV) e no CC (Artigos 1.228, §3º, 1.275, inciso V).

Esse exemplo vivo de exercício da função social da propriedade poderá recair sobre bens de naturezas diversas e assim gerar implicações civis distintas.

Contudo, este artigo se dedica a uma ligeira reflexão acerca do Direito de Penetração, um efeito civil pouco falado entre os inúmeros que decorrem da Desapropriação de um bem imóvel.

Ainda na fase pré-processual da desapropriação, nasce ao Expropriante o Direito de Penetrar no imóvel declarado de utilidade pública, um direito pouco explorado pela doutrina, mas cujo entendimento é de suma importância, especialmente sob a ótica do Expropriado.

O decreto-lei 3.365 de 1941, que disciplina as Desapropriações por utilidade pública, prevê em seu artigo 7º:

Declarada a utilidade pública, ficam as autoridades administrativas autorizadas a penetrar nos prédios compreendidos na declaração, podendo recorrer, em caso de oposição, ao auxílio de força policial.
Àquele que for molestado por excesso ou abuso de poder, cabe indenização por perdas e danos, sem prejuízo da ação penal.

Trata-se, portanto, de verdadeira limitação ao Direito de Propriedade do particular proprietário que, sem indenização, deve permitir que as autoridades administrativas ingressem no imóvel para realizar os atos de direito.

O ponto crucial a ser esclarecido é que o direito de penetração não pode, e nem deve, ser confundido com a imissão provisória na posse.

Conforme muito bem explicou o Magistrado Mário Roberto N. Velloso, em sua obra denominada “Desapropriação – Aspectos Civis”, o exercício do direito de penetração se limita ao trânsito pelos imóveis, com objetivo de realização de levantamentos topográficos, estudos e amostragem de solos, atos avaliatórios e outros de identificação dos bens, mas que, de forma alguma, prejudique a normal utilização da área pelos possuidores.

Ocorre que, não raro, o Poder Público, a fim de realizar estudos que avaliam a viabilidade em desapropriar a área declarada, ingressa no imóvel sob o título de Penetração e, com ânimos de permanência, constitui ali verdadeiro acampamento.

Evidentemente, a colocação de máquinas, escavadeiras, tratores e canteiros de obra, no mais das vezes, inviabiliza o uso normal da área pelo possuidor. Se assim for, restará configurada a imissão provisória na posse e esvaziado o direito de Penetração.

Vale colacionar trecho do v. acórdão proferido pela 5ª câmara de direito público do Egrégio Tribunal de Justiça do estado de São Paulo:

“(...) Entrementes, à vista da contraminuta, nota-se que, muito embora, o pedido constante da medida cautelar se refira expressamente a proibição da imissão na posse (Cf. fl, 38), esclareceu a agravada que, em verdade, tinha a intenção de obstar o eventual e futuro ingresso do poder expropriante no imóvel, não por força de imissão na posse, mas sim do permissivo do artigo 7º do Decreto-Lei n. 3.365/41, que autoriza o poder expropriante ingressar no bem para levantamento, isto é, proceder as verificações e medições necessárias para a futura ação de desapropriação e, mesmo assim, é defeso molestar o expropriado, pena, inclusive, de indenização por perdas e danos, sem prejuízo da eventual ação penal por abuso de poder (Cf. artigo 7º , segunda parte). Assim, se confundiu o ato de imissão na posse com o singelo ato de verificação do imóvel, que se presta, inclusive, para certificação de todas as benfeitorias existentes para efeito de depósito de valor prévio para imissão na posse. Em verdade, a possibilidade de penetração no imóvel guarda como norte a fixação do statu quo ante do imóvel, guardando perfil, portanto, de garantia de retidão tanto para a Administração Pública como para o particular, sendo inconcebível confusão entre os preceitos insertos nos artigos 7 e 15 do Decreto-Lei n. 3.365/41, vez que somente no segundo há a imissão na posse(...)”
(Agravo de Instrumento 743 316-5/9-00 - Voto 05 514, Relator Ricardo Anafe) (grifos nossos)

Assim, a distinção entre esses dois institutos apresenta especial relevância, notadamente sobre três aspectos.

(i) Para imitir-se na posse do imóvel, o Poder Público deve realizar prévia e justa indenização (Art. 5º, XXIV CF);

(ii) Com a imissão inicia a incidência de juros compensatórios anuais sobre eventual divergência apurada entre o preço ofertado em juízo e o valor do bem definido em sentença;

É o teor do artigo 15 do decreto-lei 3.365/41:

Art. 15-A No caso de imissão prévia na posse, na desapropriação por necessidade ou utilidade pública e interesse social, inclusive para fins de reforma agrária, havendo divergência entre o preço ofertado em juízo e o valor do bem, fixado na sentença, expressos em termos reais, incidirão juros compensatórios de até seis por cento ao ano sobre o valor da diferença eventualmente apurada, a contar da imissão na posse, vedada o cálculo de juros compostos.

(iii) A partir da imissão na posse pelo poder público, cessa para o Expropriado o dever de pagar tributos, devendo ser ressarcido em caso de eventual pagamento indevido:

É o que ensina a doutrina de Hely Lopes Meirelles:

“A imissão definitiva na posse, em qualquer hipótese, só se dará após o integral pagamento do preço, conforme o fixado no acordo ou na decisão judicial final, que adjudicará o bem ao expropriante, transferindo-lhe o domínio com todos os seus consectários. Mas é de observar-se que desde a imissão provisória na posse o expropriante aufere todas as vantagens do bem, e cessa para o expropriado a sua fruição, devendo cessar também todos os encargos correspondentes, notadamente os tributos reais.” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros. 20ª ed.

No mesmo sentido é o entendimento do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

EMENTA

DESAPROPRIAÇÃO. LEVANTAMENTO DO PREÇO. ART. 34 DO DECRETO-LEI N. 3.365/41. COMPROVAÇÃO DE QUITAÇÃO DE DÉBITOS FISCAIS.

1. A entidade expropriante é responsável pelo pagamento dos tributos após ter sido imitida na posse do bem objeto da expropriação.

2. Na forma do art. 34 do Decreto-Lei n. 3.365/41, o expropriado poderá levantar o preço, se comprovar a quitação dos tributos fiscais incidentes sobre o imóvel desapropriado até a data em que a autoridade expropriante tiver sido imitida na posse, nos termos do art. 15 do referido Decreto-Lei, ou da efetiva ocupação indevida do imóvel pelo expropriante, se for o caso. 3. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.

(Recurso Especial Nº 195.672/SP, relator Ministro João Otávio de Noronha, 2ª Turma, julgado em 03/03/2005, DJ 15/08/2005 - 1998/0086366-4)

Portanto, observa-se que o Direito de Penetração, previsto pelo artigo 7º do decreto lei 3.365/41, é caracterizado como a faculdade da Autoridade Pública ingressar no imóvel a fim de realizar atos avaliatórios da área declarada de interesse público.

No entanto, é de se asseverar que o exercício deste direito não poderá impedir ou restringir o uso manso e pacífico do bem pelo seu possuidor, sob pena de restar configurada a imissão na posse do imóvel e, então, virem à tona seus efeitos indenizatórios e tributários.

Nesta linha de raciocínio, conclui-se que, se o Expropriante, sem a formal imissão na posse, mas sob o rótulo de direito de penetração, ingressar no imóvel molestando a posse do Expropriado, estará este último revestido de legitimidade para, além do desforço imediato, valer-se de ações possessórias, declaratórias e/ou indenizatórias para satisfazer seu direito.

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Bibliografia

GOMES, Orlando, Direitos Reais, 21ª Edição Revista e Atualizada, Editora Forense;

VELLOSO, Mário Roberto N. DESAPROPRIAÇÃO – ASPECTOS CIVIS, Editora Juarez de Oliveira, 2000;

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurs sur l'origine et les fondements de l'inegalite parmi les hommes. Paris: Flammarion, 2007.

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*Renan Freitas é colaborador do escritório GVM - Guimarães & Vieira de Mello Advogados.

*Diego Martinez é advogado do escritório GVM - Guimarães & Vieira de Mello Advogados.

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