Se o processo fosse um mar de rosas perfumadas certamente que o legislador não teria perdido seu tempo em dizer, quase em tom de pátrio poder e com status de “norma fundamental”, algo que deveria ser óbvio e ululante, ou seja: “aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé” e “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. [arts.5º e 6º do CPC]
Realmente o processo não é esse mar de rosas perfumadas e, ousaria dizer que não é mesmo nem de rosas, e nem mesmo inodoro; aliás, se assim fosse, sem cheiro, a gente já poderia até se dar por satisfeito.
A grande verdade é que não se espera que em lados opostos e em pleno conflito de interesses os litigantes mantenham ou criem laços de amizade. Alguém tem alguma esperança de o autor e o réu possam sair para tomar um café, uma cerveja ou bater um papo informal? Até que em causas de família tudo é possível, pois em menos de um segundo o amor se transforma em ódio e vice-versa. Mas, sejamos realistas... em disputas patrimoniais, que envolvam um adimplemento, sinceramente, o normal é que o autor e o réu lutem um contra o outro. Uma luta com palavras, textos, petições, provas, sendo cada um representado pelo seu sacerdote, digo, seu advogado. Nesta luta, em primeiro lugar, deve-se dar razão a quem tem razão e, se for preciso, [e não se iludam porque quase sempre é preciso], em segundo lugar, depois de dizer com quem está a razão, também será necessário efetivar o reconhecimento do direito.
Confesso-lhes uma coisa. Com mais de 20 anos de cátedra de processo civil e uma advocacia atuante eu nunca vi um caso sequer de um réu que tenha sido condenado e que tenha – para usar a recomendação do Código -cooperado e cumprido espontaneamente a decisão em seu desfavor. Nos conflitos de interesses que giram em torno do adimplemento, sempre, sempre que se reconhece um credor e um devedor, sempre foi necessário um processo de execução do primeiro contra o segundo. Infelizmente, sempre é necessário buscar o auxílio do Estado-juiz para impor a sentença e ir “do direito aos fatos” como dizia Carnelutti ao explicar a tutela executiva.
E aí meus amigos, eu lhes digo que, se existe um ambiente, um lugar perfeito onde é possível separar um executado decente de um executado cafajeste, não tenham dúvidas que este ambiente é na relação processual executiva, em especial, por razões óbvias, se se tratar de execução por expropriação (pagar quantia) e, mais ainda se o título executivo que lastreia a execução for um título executivo judicial definitivo.
Enfim, esta é a hora da “onça beber água”, do “vamos ver” de “separar os meninos dos homens”, onde o caráter do executado se mostrará presente e aquele mantra dos artigo 5º e 6º do CPC será colocado à prova.
Isso porque é na execução para pagamento de quantia que uma parte, ou a totalidade do patrimônio do executado, será expropriada à força pelo Estado para pagar a dívida que está sendo executada. Meus senhores e minhas senhoras, é nesta hora que nós vamos saber quem é quem. Eu não vou dizer que não existam exequentes cafajestes, como Shylock, abominável credor do Mercador de Veneza que prefere a carne do devedor ao invés do dinheiro da esposa do seu fiador, e, que por isso mesmo, numa defesa jurídica mirabolante, acaba se dando muito mal no final, sem uma coisa e nem outra, sem carne e sem dinheiro.
Mas, exequentes miseráveis não são tão corriqueiros quanto executados desgranidos. E não sou eu quem digo isso, afinal de contas, apenas para os devedores, digo, executados, é que o legislador separou um artigo para tratar das condutas cafajestes no âmbito da execução.
Vejam que o código traz um artigo só para eles, executados, antevendo o tipo de conduta que podem ter na execução. É o que diz o artigo 774 que vos relembro:
Art. 774. Considera-se atentatória à dignidade da justiça a conduta comissiva ou omissiva do executado que: I - frauda a execução; II - se opõe maliciosamente à execução, empregando ardis e meios artificiosos; III - dificulta ou embaraça a realização da penhora; IV - resiste injustificadamente às ordens judiciais; V - intimado, não indica ao juiz quais são e onde estão os bens sujeitos à penhora e os respectivos valores, nem exibe prova de sua propriedade e, se for o caso, certidão negativa de ônus. Parágrafo único. Nos casos previstos neste artigo, o juiz fixará multa em montante não superior a vinte por cento do valor atualizado do débito em execução, a qual será revertida em proveito do exequente, exigível nos próprios autos do processo, sem prejuízo de outras sanções de natureza processual ou material.
Já para o exequente o legislador diz, no máximo, que este “ressarcirá ao executado os danos que este sofreu, quando a sentença, transitada em julgado, declarar inexistente, no todo ou em parte, a obrigação que ensejou a execução”.
Vejam só que o próprio legislador trata o excesso do exequente como “execução injusta” que é um apelido muito mais nobre e pomposo do que litigante indigno.
Observem que até mesmo quando “por vários meios o exequente puder promover a execução”, é o juiz que deverá mandar que ela se faça pelo modo menos gravoso para o executado e cabe a este último, se pretender alegar isso, que faça o favor de dizer “quais seriam os outros meios mais eficazes e menos onerosos, sob pena de manutenção dos atos executivos já determinados”. Isso quer dizer que ele, o executado, só pode se espernear e arguir que determinado meio executivo é exagerado, se indicar qual outro meio que seja “menos oneroso”. É preciso lembrar que o executado está ali numa posição de sujeição patrimonial e o objetivo é a expropriação do seu patrimônio.
Sinceramente eu não consigo imaginar um devedor que diga assim “olha seu juiz, esta apreensão do meu passaporte está muito exagerada, e, sugiro que tome outras medidas menos onerosas e tão eficazes quanto aquela como por exemplo: me proíba de ter uma tv a cabo, de frequentar estádios de futebol, etc.”
Não me parece que o dever processual de colaborar e agir com boa-fé chegue a este ato de bondade e cortesia do executado, mas penso que o que se deve exigir do executado é que este não embaralhe, não crie obstáculos, não obstrua, não oculte, aja e atue pautado com a verdade, obedeça com sinceridade, com transparência às ordens judiciais, em especial no tocante às informações sobre seu patrimônio que deverá ser alcançado para quitar o débito para com o exequente.
Mas, sabe-se que as coisas não são assim, e que o devedor/executado, vê o seu patrimônio como uma extensão de sua personalidade, e, simplesmente não enxerga a possibilidade de perdê-lo para uma dívida por ele mesmo criada, mesmo já tendo sido julgada e rejulgada sua eventual defesa contra a referida execução. Sabemos que o processo é cheio de atalhos que permitem que, sob a sombra do contraditório, seja possível obstruir o caminho da satisfação do direito.
Enfim o legislador sabe, tem consciência desde as longínquas ordenações portuguesas, e aqui cito por exemplo um trecho do livro III, título 87 onde os embargos do devedor “não lhe serão recebidos, salvo se a parte condenada jurar” que não sabia da publicação da condenação, ou ainda, que os desembargadores poderão mandar prender o embargante/devedor que abusar deste remédio determinando a sua prisão ou degredo de dois anos para a África. Vem de longe a preocupação com os abusos processuais do executado para proteger, com faca nos dentes, a sua propriedade.
Não é de hoje que o legislador sabe e tem consciência que é na execução que o devedor/executado vai se revelar um sujeito processual sério ou um sujeito processual imundo, um indecente, um cafajeste. O seu comportamento é que vai qualificá-lo.
Se vocês acham que aquele rol de “tipos” descritos no artigo 774 é um devaneio do legislador, estão muito enganados. Talvez nem tanto “enganados”, porque na realidade, na realidade mesmo, o executado “esperto” é aquele que, sabendo que um dia será executado, toma todas as precauções para ser um cafajeste antes mesmo de ser executado.
Como? Fazendo a tal blindagem patrimonial - que nome lindo, né! – depois de contrair a dívida, mas antes de se tornar réu em um processo judicial para cobrar a tal dívida.
Eis aí a diferença entre o devedor cafajeste e o executado cafajeste. O primeiro aliena/oculta/blinda o que possui antes mesmo de ser executado ou réu em um processo em que a dívida lhe seja cobrada, e o segundo aliena/oculta/blinda depois de ser réu ou executado. O primeiro é cafajeste profissional o segundo é amador. Sim, porque no primeiro caso o credor/exequente só poderá valer-se da infindável ação pauliana para reconhecer a ineficácia dos atos jurídicos já cometidos e que são pretéritos ao processo, e, no segundo caso haverá a fraude à execução que, em tese, sempre em tese, é um caminho que pode ter fim pelo reconhecimento da ineficácia do ato de alienação/blindagem/ocultação.
É inaceitável que a fraude contra credores, tão comum hoje em dia, infelizmente, não tenha merecido atenção especial do legislador para lhe atribuir maior eficácia e assim evitar ou reprimir os abusos do devedor cafajeste.
O grau de desenvolvimento das técnicas e habilidades para enganar o credor/exequente são infinitamente mais desenvolvidas que as técnicas existentes para coibir ou reprimir condutas desleais do devedor/executado.
Como nesta conversa tratamos do executado cafajeste, ou seja, aquele que no fundo no fundo é um sujeito processual ímprobo [mas amador, diletante e incompetente], que deixa para blindar/ocultar/alienar o seu patrimônio depois de o processo contra si estar em curso, ou ainda, quando decide obstruir/atrapalhar/embaralhar uma execução contra si iniciada.
Não se pode esquecer jamais que na cabeça do executado cafajeste há dois horizontes, dois alvos, dois objetivos que precisam ser perseguidos a todo custo, e, sempre haverá algum advogado igualmente sem escrúpulo, que lhe estimulará praticar esta conduta, e, até mesmo o convencerá de que isso não é tão errado assim:
1. É preciso obter a suspensão do processo por falta de bens expropriáveis como determina o artigo 921, III do CPC;
2. Depois de cinco anos de paralisação o processo será extinto pela prescrição intercorrente, ou seja, um livramento que lhe permitirá, como num passe de mágica, reaver a fortuna ou o patrimônio escondido (art. 924, V).
Assim, todos vocês devem estar se perguntando o que deve fazer um exequente e um juiz quando se vêm na encruzilhada do artigo 921, III, depois de procurar e procurar bens do executado e nada encontrar, mas enxergam indícios de que o executado não é um executado decente, ou seja, que um não se constrange por ser devedor inadimplente, que não dorme direito porque sabe que deve a alguém, que se arrepende do que fez, que se oferece para pagar a dívida de mil jeitos e maneiras de acordo com suas possibilidades, que não tem vergonha de mostrar seu patrimônio e demonstrar por A mais B que aquela situação não poderia ser evitada, enfim que demonstra uma postura de alguém que realmente reconhece que não conseguiu gerir adequadamente seu patrimônio e que o débito sobre sua cabeça é um martírio penoso de suportar. Enfim, que mesmo sendo inadimplente gostaria de pagar o que deve.
Então meus senhores e minhas senhoras, imaginem o quão se sentem aviltados o Estado-juiz do processo ou o exequente que assistem de camarote os absurdos atos do executado que, embora inadimplente no processo e quase favorecido pela contagem do prazo prescricional decorrente da suspensão do processo, ostentar uma vida real, fora do processo, de viagens para o exterior, de festas, colunas sociais e jantares em bons restaurantes, guiando carros de luxo e demonstrando nas redes sociais que o seu cotidiano é oposto à sua realidade processual. No processo é um pobre coitado, e na vida real apresenta uma condição oposta.
A verdade é que uma das tantas maravilhas que a Lava Jato trouxe para o país foi o resgate do sentimento de cidadania que faz com que a sociedade repila e deseje punir qualquer ato de corrupção, de vantagem, de jeitinho não apenas nas relações públicas [na qual se situa a relação processual] ou privadas.
Todos podemos e devemos aceitar que existam executados decentes, porque todos podemos um dia sermos devedores e nos encontrar numa situação de penúria financeira ou patrimonial com dívidas que sejam maiores do que o nosso patrimônio, desde que tal situação não seja forjada para este fim; mas não podemos aceitar executados cafajestes que se comportam como um ladrão que esconde seu patrimônio propositadamente para desta forma impedir que o processo atue coativamente para expropriar seu patrimônio e assim saldar os seus débitos para com o exequente. Trata-se de impunidade inaceitável, um ilícito criminal (art. 179 do CP) que deve ser enxergado pela sociedade como um ato vergonhoso e cuja reprimenda deve ser à altura do ilícito cometido à coletividade. Não se trata de “apenas enganar” o credor, o que já é por si só um absurdo, mas ao exequente perante um órgão jurisdicional, com autoridade e poder estatal conferido pela soberania popular.
Nestas situações descritas no artigo 774 do CPC a pergunta que não quer calar é: qual a sanção processual que deve ser aplicada ao executado pelo seu comportamento processual ímprobo? Este tipo de violação de conduta que ofende a colaboração processual e o dever de boa-fé deve ter punida com que tipo de sanção processual? Apenas a multa “em montante na~o superior a vinte por cento do valor atualizado do débito em execuc¸a~o, a qual sera' revertida em proveito do exequente, exigi'vel nos pro'prios autos do processo, sem prejui'zo de outras sanc¸o~es de natureza processual ou material”? Parece-nos que é muito pouco e corre o risco de ser ineficaz, já que estamos falando de ocultação patrimonial.
Para tanto, ou seja, para identificar quais sanções seriam possíveis de serem aplicadas, é preciso não confundir as medidas processuais punitivas com as medidas processuais coercitivas. Ambas podem ser aplicadas ao executado, mas só a primeira ao executado cafajeste, como aliás a qualquer sujeito do processo que atente contra o dever de lealdade e boa-fé nas hipóteses previstas pelo legislador processual.
O artigo 139 do CPC está diretamente atrelado às medidas processuais punitivas e às medidas processuais executivas. Este dispositivo tem um destinatário claro o juiz como enuncia o Título do Capítulo I “dos poderes, dos deveres e da responsabilidade do juiz”. Observe-se que no artigo 139, III e IV do CPC, embora muito próximos os incisos, neles estão separadas duas modalidades de atuações distintas do magistrado brasileiro. O realce que eu fiz foi necessário porque no modelo anglo-americano essas duas atuações do juiz não são consideradas distintas e se amalgamam num só poder (contempt of power). Aplicar medidas de coerção para promover a execução das ordens judiciais (coercitive power) ou aplicar sanções (civil or criminal contempt) pelos atos de improbidade processual constituem exercício do contempt of court.
Assim, ao contrário do contempt of court do sistema anglo-americano onde do mesmo instituto deriva um poder que permite impor sanções (civis e criminais) e medidas coercitivas [coercitive contempt e às vezes até mesmo ressarcitórias] sob o espectro culturalmente largo do que lá se conhece como “ofensa à dignidade e autoridade da justiça”, aqui no Brasil não temos essa mesma amplitude até mesmo pelas nossas raízes culturais atreladas ao privatismo do civil law.
O inherent power do contempt of court deriva da própria razão de ser da existência do Poder Judiciário, sendo único o tronco da proteção à autoridade da justiça e o respeito sua dignidade.
Aqui no Brasil, tomando de análise as medidas coercitivas de execução indireta, temos que estas são historicamente presas à nossa formação civilista [vide art. 303 CPC 39, art. 287 do CPC 73] e por isso mesmo, ainda que hoje possuam uma natureza autônoma de direito processual, e possam ser fixadas de ofício pelo juiz, ainda estão atreladas ao próprio direito material que se pretende executar. Basta ver o vínculo das astreintes com o reconhecimento da tutela jurisdicional em favor de quem ela aproveita [o art. 537,§3º fala em permitido o levantamento do valor após o trânsito em julgado da sentença favorável à parte].
Por sua vez, por incrível que possa parecer, as medidas processuais sancionatórias ou punitivas de condutas processuais ímprobas são acanhadas e muito pequenas, quando comparadas com a importância que tem o processo como método estatal de solução de conflitos e do desrespeito que isso representa à justiça enquanto bem jurídico fundamental da coletividade.
Esse perfil tímido ou tacanho, mormente quando comparado com o modelo anglo-americano, decorre, também da formação civilista, liberal e privatista do nosso direito processual onde processo judicial sempre foi visto como uma arena quase particular de disputa de conflitos privados.
Esses dois cenários [medidas executivas e poderes de contempt] têm mudado e estão em
franca evolução na medida em que se reconhece e passa a se obedecer a função política, social e pública do processo, com a necessidade de respeito
à ética, o dever de boa-fé e cooperação entre todos os seus sujeitos.
Sinceramente, até já disse em meu manual de direito processual civil, que o legislador perdeu uma grande oportunidade de sistematizar esses “dois poderes” (medidas atípicas executivas e contempt of court) a partir de um regime jurídico único afinal de contas não “cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação” (art. 77,IV) é ao mesmo tempo uma conduta processual ímproba que merece ser punida e também um gatilho para que o juiz encontre meios adequados e necessários para obter o cumprimento de suas ordens, mormente as executivas.
Retornando ao nosso raciocínio, e sempre tendo em mente o que o magistrado deve fazer para punir processualmente o executado cafajeste, é preciso lembrar que os dois incisos, III e IV, do artigo 139 revelam exatamente este duplo dever do magistrado brasileiro de atuar, respectivamente, reprimindo atos contra a dignidade à justiça e também desferindo medidas de execução direta ou indireta para assegurar o cumprimento de suas ordens [em especial as ordens de execução].
Como já disse a volto a repetir, no modelo anglo-americano, por exemplo, estes dois papeis estariam no mesmo dispositivo e no mesmo inciso. Aqui, por razões históricas e culturais refletem faces diversas da mesma moeda (poderes do juiz), o verso e o anverso, com fins diversos e regimes jurídicos diferentes.
Embora emanem do mesmo juiz e se voltem contra a mesma pessoa e
ainda derivem do poder/dever/função judicial contido no artigo 139 do
CPC, tratam-se de figuras distintas aqui no Brasil, com diferentes finalidades no processo e por isso mesmo com distintos regimes jurídicos.
Não foi por acaso que os poderes-deveres de contempt of court do juiz brasileiro estão explicitados no inciso III do artigo 139 e os poderes-deveres de promover o cumprimento das ordens judiciais no inciso IV do mesmo dispositivo.
Pelo inciso IV do artigo 139, resta clara a função destas medidas processuais executivas, que atuam como ferramentas, meios, genuínos instrumentos para assegurar o cumprimento de uma ordem judicial. Daí porque é outorgado ao magistrado o poder geral de fixar a medida coercitiva ou subrogatória que seja necessária para este desiderato [essa atuação judicial é subsidiária na expropriação, depois de esgotados os meios típicos do art.824 do CPC]. Há uma atipicidade do meio executivo, sendo a necessidade da medida o fundamento e o fim (o limite) estabelecido pelo legislador para delimitação da medida a ser imposta pelo juiz. Ora, por “medida processual necessária” deve-se entender aquela que seja adequada, proporcional e razoável para assegurar o cumprimento da ordem judicial.
Restringindo-nos apenas à análise das medidas coercitivas verifica-se que o dispositivo não estabelece um rol de medidas, e tampouco exemplifica casos, permitindo e estimulando um exuberante leque criativo do magistrado, que deve estar preso, comprometido e sensível às peculiaridades da causa. Isso significa que deve haver um link necessário, lógico, razoável e proporcional de instrumento e fim, meio e resultado, respectivamente, entre a medida coercitiva e o cumprimento da ordem.
Percebam os senhores que a expressão para assegurar o cumprimento da ordem judicial deixa evidente a natureza instrumental da medida processual, servindo como meio ou ferramenta para se obter um resultado pretendido.
Pelo inciso III do artigo 139 deve o juiz prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça e indeferir postulações meramente protelatórias, ou seja, este poder é exercido, na esteira do artigo 77, §2º do CP, sempre que houver uma violação da conduta” – que inclusive deve ser advertida pelo juiz (art. 77, §1º) - pressupõe, portanto, um dever processual violado, e, por isso as sanções aplicáveis após a violação do dever processual, tem caráter punitivo.
Enfim, é preciso ter muito clara a percepção de que o que define uma medida processual como coercitiva ou punitiva é a sua finalidade imediata [inegável que como toda e qualquer sanção punitiva, há, sempre, embutida e inerente uma função coercitiva decorrente do risco da punição, mas este não é o fim primeiro da regra do artigo 77, §2º], ou seja, se ela serve de instrumento para se obter um resultado a realizar ou se ela serve para punir uma conduta já realizada. Não é propriamente o seu nome, de onde emana ou o destinatário da medida processual que identificam se é coercitiva ou punitiva a medida processual. Frise-se, é a sua função, sua finalidade.
Tomando como exemplo a “multa processual”, esta ora pode ser uma
medida coercitiva (art. 537 do CPC), ora uma medida processual punitiva (art. 774, parágrafo único do CPC), sendo ambas emanadas de um ato de ofício do juiz, ambas com natureza processual e ambas podem ser destinadas ao mesmo sujeito do processo.
Enfim, já pedindo desculpas por ser repetitivo, tem-se que para saber se a multa é punitiva (art. 139, III) ou coercitiva (art. 139, IV) é necessário identificar se ela atua precipuamente como instrumento (coerção) para a realização de um comportamento ou se visa punir por uma conduta indesejada já realizada.
Como existe uma atipicidade dos meios executivos, é certo que o magistrado está “livre” para escolher em cada caso concreto, com fulcro no artigo 139, IV do CPC, as medidas processuais (coercitivas ou subrogatórias) que sejam adequadas, necessárias, proporcionais e razoáveis para assegurar o cumprimento da ordem judicial.
Por outro lado, o mesmo não se passa com as sanções processuais imputáveis àquele que viola o dever de boa-fé e colaboração com a Justiça. Aqui não há a tal da atipicidade de sanções, antes o contrário.
O artigo 139, III apenas menciona que o magistrado poderá “prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça e indeferir postulações meramente protelatórias”, sem dizer, hora nenhuma, que ele estará “livre” para escolher a medida punitiva que lhe parecer adequada ou necessária ou razoável. Destarte, poderá aplicar o artigo 139, III valendo-se das sanções processuais previstas pelo próprio legislador processual, mas sem prejuízo de outras sanções penais e civis cabíveis (art. 77, §2º).
Existem um sem número de sanções processuais no CPC como nos artigos 98, §4º, 173, 202, 234, §2º, art. 274, §único, 290, 311, 403, 455, §5º. 486, §3º, etc.
Relembro a vocês que a primeira hipótese de tutela de evidência do artigo 311, I do CPC é típica tutela sancionatória processual, que está intimamente relacionada com uma conduta desidiosa do réu. Relembro ainda que o instituto da perempção nada mais é do que uma espécie de sanção processual àquele que por três vezes abandona a causa e por isso provoca três vezes a sentença terminativa por este motivo. Acho que nunca vou ver um caso de perempção, mas a sanção está bem ali no artigo 486,§3º do CPC. Alguém acha que o juiz poderia criar uma punição processual como estas, ou isso deveria estar previsto na lei processual tal como se encontra?
Faz todo o sentido que a medida processual punitiva não se submeta ao mesmo regime de atipicidade da medida processual coercitiva, pois aquela é sanção que se impõe, enquanto que o desta se espera é justamente que a coerção atue como medida instrumental com o cumprimento do ato para o qual ela atua. O meio instrumental (medida coercitiva) existe apenas para que o resultado seja alcançado. Se for obtido o resultado ela desaparece. Não é o que se passa na sanção punitiva por violação de conduta processual desejada. Ela é o fim, ela é a consequência.
Nestes exemplos que têm pipocado no país, observa-se que os magistrados estão impondo medidas restritivas de direitos pessoais como apreensão do passaporte, proibição de ir ao estádio, apreensão da carteira de motorista, etc. como se fossem medidas coercitivas destinadas a pressionar o devedor a cumprir uma obrigação.
Em todos os julgados que eu li, absolutamente em todos, pareceu-me claro que estamos diante de uma função punitiva, e não propriamente coercitiva, onde o magistrado deixa evidente a sua irresignação com a conduta do executado cafajeste, com seu comportamento desrespeitoso com a violação do dever ético, da boa-fé e da colaboração com a justiça, fato que se encaixa como uma luva no artigo 77, IV do CPC e no artigo 774 do mesmo diploma.
Trata-se de punição pela violação do dever de boa-fé e colaboração com a justiça travestida ou nominada de "medida coercitiva". É preciso reconhecer q o inehrent power do contempt of court anglo americano não é simétrico ao brasileiro.
Aqui, felizmente ou infelizmente, a atipicidade é tão somente dos "meios necessários" para cumprimento das ordens judiciais, e não das medidas sancionatórias ou punitivas pelos descumprimentos, embaraços e indignidades cometidas pelo executado cafajeste.
Não nos parece que seja lícito ao magistrado - ainda que esteja legitimamente bravo e irritado e indignado como com os atos processuais do executado cafajeste - possa, incorretamente, denominar de “medida coercitiva” uma “medida sancionatória” e, com base na atipicidade de meios executivos, inventar uma medida processual punitiva atípica, portanto, que esteja fora do rol de sanções desta estirpe previstas pelo legislador.
Não pode haver uma sanção, seja ela processual ou não, sem prévia lei que a defina, e, sem contraditório ou devido processo que permita alguém contra ela se defender; mas aqui não nos dedicamos ao espaço da análise do contraditório e do devido processo na imposição de sanções processuais punitivas, que, deve ser respeitado.
Na verdade, confesso que acho absurdo que o ordenamento jurídico processual não apresente um sistema de punição processual que seja adequado e consentâneo com a proteção que o processo, que a dignidade da justiça deve ter.
Contudo, por mais que eu odeie o executado cafajeste e ache que ele mereça ser punido com a apreensão de seu passaporte, de sua carteira de habilitação, que fique sem a TV a cabo, sem poder frequentar estádios, etc., eu não posso admitir que estas penalidades processuais sejam aplicadas sem lei prévia que as defina e sem um devido processo. Não há no nosso sistema a possibilidade de aplicação de ofício pelo juiz de sanções punitivas processuais atípicas.
Por outro lado, é preciso deixar claro que isso não quer dizer que a apreensão
de passaporte, proibição de ir ao estádio, apreensão da carteira de motorista, etc., não possam ser, em algum caso concreto, uma medida processual coercitiva para assegurar o cumprimento de uma ordem judicial nos termos do artigo139, IV. Isso é outra estória. Já dissemos que não é o nome da medida que define a sua função, se coercitiva ou punitiva.
Para tanto, para que essas medidas sejam coercitivas é preciso que atuem como um instrumento necessário, adequado, proporcional ou razoável para a obtenção de uma conduta que leve ao cumprimento da ordem judicial. A análise do caso concreto é que vai dizer se a medida coercitiva atípica escolhida pelo juiz é adequada, pertinente, necessária e logicamente razoável.
Enquanto vou proferindo esta palestra fico aqui imaginando uma hipótese de um devedor/executado que vive de comprar e vender bens no exterior, numa espécie de “sacoleiro internacional”, e, não declara nada e oculta tudo o que vende. Nesta hipótese, noticiada e explicada esta situação pelo exequente, e sendo infrutífero os meios executivos típicos de sub-rogação, vejo como perfeitamente cabível, e com natureza coercitiva, a medida imposta de apreensão do seu passaporte que implicará em uma pressão psicológica para se obter um comportamento de cumprir a obrigação que lhe foi imposta pela ordem judicial. A casuística é riquíssima e certamente todos estes exemplos poderão ter realmente um papel coercitivo. Imagino aqui a apreensão de uma carteira de motorista de um executado cafajeste que é motorista do UBER e recusa-se a informar seus rendimentos para pagar alimentos. Me parece ter um papel coercitivo para que ele cumpra uma ordem judicial que se recusa a fazer.
Ao final, fica aqui uma sugestão à reflexão de todos a possibilidade de aplicar-se a sanção processual punitiva para o executado que, cafajeste ou não, passa a beneficiar-se do tempo do processo em razão da suspensão do processo de execução (921, III) que culmina com a extinção pela prescrição intercorrente (924, V).
Sempre que restar suspenso o processo por tal motivo, com ciência do executado, haverá uma situação concreta que atesta que aquele executado não possui patrimônio suficiente para saldar a dívida assumida. É a presunção absoluta de sua condição de insolvente civil (art. 750 do CPC 73). Nesta hipótese, porque não prevenir a sociedade e outros credores desta situação, aplicando-se as mesmas sanções processuais decorrentes de uma insolvência civil, qual seja “o devedor perde o direito de administrar os seus bens e de dispor deles” (art. 752 do CPC/73), ou seja, fica inabilitado à pratica de todos os atos da vida civil (art. 782 do CPC/73), com as consequências lógicas daí decorrentes como não poder ter cartão de crédito, conta em banco, realizar contratos onerosos, etc. Fica aqui a minha dica.
É preciso repensar a execução para que ela não seja o esconderijo mais seguro e habitat mais conveniente de executados cafajestes que fazem gato e sapato do exequente e do poder judiciário.
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*Texto, apenas com título diverso, da palestra proferida pelo autor nas Jornadas de Direito Processual Civil em Recife em 15/9/16 sobre as técnicas coercitivas na execução para pagamento de quantia.
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