Nota de Vera Magalhães (Estado, 5/9, A6) nos dá conta de que, embora haja desconforto no STF com a decisão do Senado de “fatiar” o artigo 52 da CF e não inabilitar a ex-presidente para o exercício de função pública, a Corte deverá declarar que os senadores eram os “juízes naturais” do impeachment e, por isso, sua decisão é soberana e deve prevalecer, o que constituiria o pensamento de três ministros que emitiram suas opiniões reservadamente. Segundo eles, rever a decisão provocaria instabilidade política e institucional, prejudicial ao país.
Considerando a credibilidade da jornalista, não há por que duvidar da informação. Inacreditável, todavia, é que integrantes de uma Corte constitucional possam se posicionar de modo tão equivocado quanto a tema tão relevante, de necessário conhecimento de qualquer estudante de Direito Constitucional e de fundamental importância para os destinos do país como Estado Democrático de Direito! Deixar como está para ver como fica? Permitir que a Constituição Federal seja violentada, a pretexto de evitar instabilidade política e institucional? Ora, qualquer cidadão de bom senso percebe ser exatamente a violação da Constituição a causa primeira de instabilidade institucional, com todas as suas nefastas consequências sociais, políticas e econômicas.
É indubitável que, nos casos de impeachment, o Senado assume a qualidade de órgão julgador, sendo, por isso, soberana sua decisão. Mas, cumpre enfatizar, soberano na decisão do mérito da causa, não lhe sendo facultado decidir contrariamente ao que a Constituição dispõe, tal como ocorreu na sessão que deixou de aplicar à ex-presidente a pena de inabilitação para o exercício de função pública por oito anos. Assim sendo, no seu alto mister de Corte constitucional, soberana, nessa seara, em relação a qualquer dos Poderes da República, cabe ao STF acolher mandado de segurança voltado à declaração da inconstitucionalidade da votação destacada, em decorrência da flagrante ofensa à norma do artigo 52, parágrafo único, da Constituição, cabendo-lhe, em decorrência, determinar a aplicação dessa norma em sua integralidade incindível e intangível.
A cisão do julgamento pelo Senado é inconstitucional, uma vez que as duas consequências do impeachment, tal como previstas no citado artigo 52, parágrafo único, da Constituição (perda do mandato com inabilitação octênia para exercício de função pública), são irmãs siamesas caracterizadas pela inseparabilidade. Não há como cindir tais consequências. Não o permite a interpretação gramatical e menos ainda a teleológica ou finalística. Logo, além da perda do mandato, impõe-se declarar a aludida inabilitação. E é exatamente isso que cabe ao STF fazer em sequência à declaração de inconstitucionalidade da votação do destaque.
Não há como vislumbrar perigo de anulação do julgamento do impeachment como um todo, uma vez que o seu mérito, tal como processualmente conceituado, foi decidido sem nenhuma mácula pelo Senado dentro de sua jurisdição excludente. No processo de impeachment, o “mérito” consubstancia-se no fato de haver sido cometido, ou não, crime de responsabilidade. Se o Senado entender afirmativamente, o impeachment será decretado, acarretando as consequências clara, expressa e inequivocamente previstas no artigo 52, parágrafo único, da Constituição. Por conseguinte, no que tange ao mérito, assim circunscrito, o Senado é soberano, não cabendo ao STF intervir. Todavia, no que diz respeito à consequência constitucional desse julgamento do mérito, aí, sim, ele pode, mais do que isso, deve intervir, se a tanto provocado, sempre que alguma inconstitucionalidade tenha sido praticada.
Nem se diga que a intervenção do STF implicaria a necessidade de anular todo o julgamento, a pretexto de que, se os senadores soubessem que a ex-presidente viria a sofrer a pena de inabilitação octênia para o exercício de função pública, muitos deles poderiam ter votado contra o impeachment, a impedir formação de maioria qualificada, de modo que a votação do primeiro quesito também seria inválida. Tal argumento é inadmissível, uma vez que, por não disporem os senadores de bola de cristal, não poderiam conhecer de antemão o resultado da votação subsequente, pelo que, se acataram o impeachment, decretando a perda do mandato, essa decisão não só é objetivamente inatacável, como consubstancia a vontade incondicional, clara e límpida dos senadores quanto ao impedimento.
Suponha-se, apenas para argumentar, a seguinte situação: a maioria qualificada, entendendo terem sido praticados crimes de responsabilidade, acolhe o impeachment, decretando a perda do mandato e a prisão do presidente da República. O que caberia ao STF fazer, uma vez provocado por mandado de segurança? A resposta é simples: declarar nada mais, nada menos a inconstitucionalidade da pena de prisão, substituindo-a, ipso facto, pela de inabilitação octênia para o exercício de função pública, esta necessariamente aplicável, ante a incindibilidade das consequências estatuídas no artigo 52, parágrafo único, da Constituição, jamais anular o julgamento todo, uma vez que a decisão sobre a porção que cabe à jurisdição do Senado, ou seja, o mérito, não contém mácula. O mandado de segurança funciona nesses casos como verdadeiro recurso ordinário, no qual prevalece o princípio de que a cognição do tribunal se circunscreve ao tema discutido e, evidentemente, contido em sua jurisdição.
Portanto, se a decisão do Senado desborda da Constituição, em razão da aplicação de uma consequência nela não prevista, cabe ao STF corrigi-la, substituindo-a pela constitucionalmente correta, impondo, dessarte, a soberania dessa mesma Constituição. Similarmente, no caso da ex-presidente, cabe ao STF corrigir a decisão, já aqui, mediante a integração da consequência faltante.
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