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A supressão da declaração de inidoneidade na Lei das Empresas Estatais: retroatividade da norma sancionatória mais benéfica

A supressão da referência à declaração de inidoneidade gera perplexidade porquanto os arts. 37 e 38 mantêm a alusão à inidoneidade como critério para impedimento de licitar ou contratar.

20/9/2016

O art. 83 da Lei 13.303 contém o elenco das sanções relativas ao processo licitatório das empresas estatais submetidas ao regime do diploma legal1. Corresponde, assim, ao que, na disciplina das licitações em gerais, é regulado pelo art. 87 da Lei 8.666. Porém, O art. 83 da Lei 13.303 não reproduz o dispositivo da Lei 8.666 atinente à declaração de inidoneidade. Prevê-se que a empresa estatal somente poderá aplicar as sanções de advertência, multa e suspensão do direito de licitar. Uma possível explicação é que a declaração de inidoneidade, segundo o art. 87, § 3º, da Lei 8.666, é de competência exclusiva do Ministro de Estado, Secretário Estadual ou Secretário Municipal.2

No entanto, a supressão da referência à declaração de inidoneidade gera perplexidade porquanto os arts. 37 e 38 mantêm a alusão à inidoneidade como critério para impedimento de licitar ou contratar.

Esse contexto normativo produz pelo menos duas consequências relevantes.

A primeira é que, como o conceito de inidoneidade não está na Lei 13.303, deve ser buscado na Lei 8.666 e em outros diplomas como a Lei 8.443, do TCU.

Resta saber se os motivos que levam à inidoneidade podem ser vinculados a fatos ocorridos no âmbito de uma empresa estatal. O art. 83 da Lei 13.303 não relaciona a inidoneidade entre as sanções (ou medidas) vinculadas ao inadimplemento de obrigações frente a uma empresa estatal. O art. 84 tem aproximadamente a mesma redação do art. 88 da Lei 8.666 e prevê a aplicação das penalidades apenas aos “...contratos regidos por esta Lei”. Os diplomas são mutuamente excludentes. Os contratos com as empresas estatais não são mais regidos pela Lei 8.666 (observado o prazo de vacatio legis do art. 91, § 3º, da Lei 13.303).

Portanto, não há fundamento legal para que, encerrada a vacatio legis, venha a ser declarada a inidoneidade na forma do art. 87, IV, da Lei 8.666 por fato ocorrido em licitação ou contrato de empresa estatal sujeita à Lei 13.303. A sanção aplicável neste caso será apenas a de suspensão pela própria empresa estatal (art. 83, III, da Lei 13.303).

Poder-se-ia objetar que seria incoerente considerar, com base no art. 38, a inidoneidade relevante mas, ao mesmo tempo, entender que ela não pode ser declarada por um fato ocorrido no âmbito da empresa estatal sujeita à Lei 13.303. Não parece haver incoerência, mas afirmação da autonomia da estatal. Se a empresa entender que um determinado ato é grave, irá suspender o culpado na forma do art. 83, III, da Lei 13.303; a suspensão tem o mesmo prazo e condições da inidoneidade da Lei 8.666.

Mas não é cabível que a empresa estatal deixe de suspender e o ente político a que se vincula declare a inidoneidade, produzindo o mesmo efeito da suspensão não aplicada. A Lei 13.303 poderia ter dado outra solução, prevendo que a declaração de inidoneidade se prestaria a dar efeitos gerais à punição, já que a suspensão é limitada à empresa estatal que a aplica. Nesse caso, havendo por hipótese a declaração de inidoneidade pela União, aplicar-se-ia o art. 38 para proibir qualquer outra estatal federal de contratar o licitante.

Parece-me que a ausência de lei prevendo esta solução impede a sua adoção. A Lei 8.666, pelo menos neste caso da declaração de inidoneidade, não se aplica a licitações ou contratos regidos pela Lei 13.303. Do modo como foi construída a Lei 13.303, cada estatal aplica a suspensão no seu próprio âmbito e com eficácia restrita a ela própria, o ente político pode declarar a inidoneidade por contratos alheios à estatal, regidos pela Lei 8.666, e o TCU é o único que declara a inidoneidade propriamente dita com efeitos gerais (Art. 46 da Lei 8.443: “Verificada a ocorrência de fraude comprovada à licitação, o Tribunal declarará a inidoneidade do licitante fraudador para participar, por até cinco anos, de licitação na Administração Pública Federal”).

O fato de os arts. 37 e 38 fazerem repetidas alusões a inidoneidade não altera este quadro. Os impedimentos derivarão de declarações de inidoneidade aplicadas pelo ente político a que se vincula a empresa estatal, anteriormente ao final da vacatio legis. Outra possibilidade é a inidoneidade prevista no art. 46 da Lei 8.443, como visto.

Certamente se elimina a possibilidade de a punição aplicada por um ente político atingir contratações de empresa estatal vinculada a outros, já que o art. 38, III, é expresso em vincular a eficácia da inidoneidade ou da suspensão a ter sido editada pelo ente político a que a estatal se subordina.

O segundo aspecto é a possível retroatividade da norma sancionatória mais benéfica.

A despeito da vacatio legis, a norma do art. 83, III, já está em vigor. Aplica-se a qualquer nova empresa estatal que venha a ser constituída a partir da vigência da Lei 13.303. Ou seja, a partir da edição da lei, não é mais cabível que seja declarada a inidoneidade por fatos ocorridos no âmbito de uma estatal. A única sanção cabível é a suspensão do direito de licitar pela própria empresa estatal.

A doutrina reconhece que “tanto as sanções penais quanto as sanções administrativas têm por fundamento o mesmo poder punitivo estatal”.3 A configuração das penalidades administrativas é similar àquela das penalidades de natureza penal, o que resulta na aplicação de regimes jurídicos semelhantes.4 A orientação da política do Direito Penal deve ser a mesma do Direito Punitivo em geral, em especial do Direito Administrativo Sancionador.5 O art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição da República expressamente coloca que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. A simples leitura do dispositivo em questão leva à inequívoca interpretação de que não pode haver sanção sem que haja específica e determinada previsão legal.

Por outro lado, o inciso XL do mesmo dispositivo constitucional dispõe que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Ou seja, sendo a nova legislação sancionadora mais benéfica, dever-se-á imediatamente desconsiderar a legislação anterior.6 Essa é garantia constitucional cujo conteúdo não se limita à esfera criminal, mas se estende ao campo do ilícito administrativo.7 As garantias individuais estabelecidas pelo Direito Penal podem ser um elemento integrador do Direito Administrativo. 8

Além disso, a aplicação subsidiária do Direito Penal ao Direito Administrativo também é necessária na medida em que a teoria sobre a unidade do ius puniendi não se encontra igualmente desenvolvida na esfera do Direito Público.9

A aplicação da retroatividade legal só será possível enquanto o processo punitivo estiver pendente. O término definitivo do processo administrativo impede a utilização retroativa da legislação superveniente mais benigna.10

O raciocínio foi adotado por diversos tribunais, tais como o STJ, o TRF da 2a Região e o TRF da 4a Região, em matéria atinente a sanções administrativas, como se retrata adiante:

TRIBUTÁRIO. MULTA. LEI MAIS BENÉFICA. POSSIBILIDADE DE RETROAÇÃO. ART. 106, II, C, DO CTN. VIABILIDADE. 1. Em razão do caráter mais benéfico ao contribuinte, é plenamente cabível que os efeitos de lei superveniente que prevê a redução de multa moratória dos débitos previdenciários retroajam aos atos ou fatos pretéritos não definitivamente julgados. Inteligência do art. 106, II, c, do CTN. 2. Iterativos precedentes da Primeira Seção do STJ. 2. Recurso especial não-provido.” (STJ – REsp 479264 – Relator: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA – 2ª Turma – j. 09/05/2006 – sem grifo no original)

TRIBUTÁRIO - EMBARGOS À EXECUÇÃO - MULTA - REDUÇÃO PARA 20% - ART. 106, II, C, DO CTN - RETROAÇÃO DA LEI MAIS BENÉFICA - POSSIBILIDADE - TAXA SELIC - ENCARGO LEGAL DE 20% PREVISTO NO DECRETO-LEI Nº 1.025/69 - LEGITIMIDADE - REMESSA NECESSÁRIA E RECURSOS DESPROVIDOS. 1 - O art. 106, II, ‘c’, do Código Tributário Nacional prevê, expressamente, que a lei nova pode reger fatos geradores pretéritos, desde que se trate de ato não definitivamente julgado, por aplicação do princípio da retroatividade benéfica em matéria de penalidades. [...]9 - Recursos e remessa necessária desprovidos.” (TRF-2 – AC 05057268420044025101 – Relator: MARCUS ABRAHAM – 3ª Turma Especializada – j. 23/02/2016 – sem grifo no original)

TRIBUTÁRIO. OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA. DESCUMPRIMENTO. MULTA. ART. 32, IV, § 5º, LEI Nº 8.212/91. RETROAÇÃO DA LEI MAIS BENÉFICA. ART. 32-A, INC. I, LEI Nº 8.212/91. CADIN.1. Tratando-se de ato não definitivamente julgado e tendo lei posterior cominado penalidade mais benéfica ao contribuinte (redução da multa), impõe-se a retroatividade da lei menos gravosa em favor do contribuinte, a teor do 106, inciso II, alínea c, do CTN. Determinação de revisão pela autoridade impetrada do valor da multa em conformidade com o preceituado pelo novo dispositivo inserto no art. 32-A, inc. I, da Lei nº 8.212/91. Suspensão do CNPJ da impetrante do CADIN até o trânsito em julgado deste mandamus.2. Apelação parcialmente provida.” (TRF-4 – AC 27789220094047205 – Relator: MARCOS ROBERTO ARAUJO DOS SANTOS – 2ª Turma – j. 15/02/2011 – sem grifo no original)

CÍVEL. RECURSO INOMINADO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE. MULTA DE TRÂNSITO E SUSPENSÃO DO DIREITO DE DIRIGIR. CONDUÇÃO DE VEÍCULO CICLOMOTOR COM ‘CAPACETE MODULAR ARTICULADO SEM VISEIRA E SEM ÓCULOS DE PROTEÇÃO’. INFRAÇÃO CONSIDERADA GRAVÍSSIMA À ÉPOCA DOS FATOS PELA RESOLUÇÃO CONTRAN Nº 203/06. ADVENTO DA RESOLUÇÃO CONTRAN Nº 453/13 QUE RECLASSIFICOU A INFRAÇÃO COMO LEVE. NOVA RESOLUÇÃO 497/2014. RETROATIVIDADE DA NORMA MAIS BENÉFICA NO ÂMBITO ADMINISTRATIVO. POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO ARTIGO 5º, INCISO XL, DA CF. SANÇÃO ADMINISTRATIVA QUE TAMBÉM POSSUI CARÁTER PUNITIVO E SANCIONATÓRIO, EMBORA NÃO DE NATUREZA CRIMINAL. SENTENÇA REFORMADA.” (TJPR – RecInom 0066194-31.2014.8.16.0014 – Rel. Dr. Letícia Guimarães – 1ª Turma Recursal – j. 7.3.2016)

O fato de existir dispositivo expresso nesse sentido no Código Tributário Nacional (CTN) não apenas não infirma a aplicação generalizada dessa solução, mas a corrobora. O fundamento para a norma expressa do CTN é justamente o princípio extraído do dispositivo constitucional que ampara a aplicação retroativa da lei punitiva mais benéfica.

Cabe aplicar retroativamente a supressão da declaração de inidoneidade no âmbito das empresas estatais para o fim de extinguir processos administrativos pendentes ou mesmo para a revisão de penas já aplicadas mas ainda em curso.

Sobre esse último ponto, é possível que o prazo de transição de dois anos previsto no art. 94 da Lei 13.303 tenha sido dimensionado pelo legislador para evitar que medidas de declaração de inidoneidade já em curso de cumprimento fossem atingidas pela nova legislação que suprimiu a sanção. Mesmo se fosse assim, essa intenção não se teria concretizado. A circunstância de que a supressão já está em vigor em relação a novas empresas estatais, embora ainda dependa para estatais antigas da adaptação referida no art. 94, é suficiente para se reconhecer a abolitio criminis em relação a essa sanção e sua aplicação retroativa inclusive tanto a processos punitivos pendentes de decisão final quanto a sanções já aplicadas e em curso de cumprimento.

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1 Versão anterior deste artigo foi publicada no Informativo do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini divulgado eletronicamente em agosto de 2016.

2 Flavio Amaral Garcia defende a possibilidade de decreto do Chefe do Poder Executivo, no âmbito dos Estados e Municípios, atribuir essa competência a outra autoridade. Segundo o doutrinador, não se trataria de norma geral oponível a Estados e Municípios (GARCIA, Flávio Amaral. Licitações e Contratos Administrativos. 3a ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 351).

3 MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 46.

4 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 16. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, pp. 1138-1139.

5 OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 334.

6 Vide item 6 supra.

7 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 64.

8 VERZOLA, Mayza Abrahão Tavares. Sanção no direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 133-134.

9 VERZOLA, Mayza Abrahão Tavares. Sanção no direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 133-134.

10 MELO, José Eduardo Soares de. Curso de direito tributário. 10ª ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 236.

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*Cesar A. Guimarães Pereira é sócio do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados. Doutor e Mestre pela PUC/SP.

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