Migalhas de Peso

O contrato de licença de uso de imagem como um meio de burlar direitos trabalhistas de jogadores de futebol

A exploração da imagem dos atletas por outras pessoas é permitida pelo ordenamento jurídico nacional, desde que presentes os requisitos necessários para a celebração de um negócio jurídico.

1/9/2016

O desporto é regulado pela CF no art. 217, onde estão encartados alguns princípios específicos do direito desportivo, além de prever, em seu §1º a competência da Justiça Desportiva para julgar questões relativas à disciplina e às competições desportivas. No tocante aos direitos trabalhistas dos atletas, em especial dos jogadores de futebol, a competência é da Justiça do Trabalho.

É de conhecimento notório que o futebol é o esporte de maior popularidade mundial e que nesse meio circula grande quantidade de dinheiro.

Os rendimentos de um jogador de futebol podem variar do mínimo ao extremo. Enquanto atletas do Juventus da Mooca podem ganhar R$600,00 mensais, jogadores do Palmeiras ou do Corinthians podem ganhar R$300.000,00 mensais, e nem se diga dos jogadores que estão na Europa que ganham milhões e milhões de reais por ano.

A questão referente aos direitos trabalhistas dos atletas é repleta de peculiaridades, pois suas carreiras profissionais são curtas e repletas de imprevistos, além de seus salários serem astronômicos. Por outro lado, eles são as estrelas do show, são eles os responsáveis pela dinâmica desse mercado gigante, que leva às pessoas lazer e divertimento. A importância desse esporte é tanta, que torcedores, frequentemente, chegam a perder a razão defendendo seu time de coração, que o digam as torcidas organizadas.

A exploração da imagem dos atletas por outras pessoas é permitida pelo ordenamento jurídico nacional (art. 20 do CC), desde que estejam presentes os requisitos necessários para a celebração de um negócio jurídico (art. 104 do CC). Esses contratos, normalmente, são celebrados por agências que auxiliarão na divulgação da imagem do atleta e ganharão um percentual em cima do que o jogador ganhar com os contratos que celebrar.

No entanto, muitas vezes, o contato de licença de uso de imagem é utilizado como um meio da entidade esportiva empregadora disfarçar a natureza jurídica do salário que o jogador está recebendo.

No contrato de licença de uso de imagem, um terceiro, que é detentor dos direitos de imagem do atleta celebra negócio jurídico com a entidade esportiva empregadora, sublicenciando os direitos de uso de imagem.

Em alguns casos, à primeira vista, não há nenhuma irregularidade. No entanto, se o contrato for analisado de forma mais detalhada, poderá se perceber que ele não passou de um negócio jurídico utilizado para disfarçar a natureza salarial das prestações pagas ao jogador. Indícios de que está se perpetuando essa fraude são: o fato de que as prestações pagas para o atleta são mensais e periódicas; a pessoa jurídica que tem o direito de explorar a imagem do atleta tem o mesmo nome do atleta; e o clube, na verdade, não tem nenhum ganho com a imagem do jogador, mas somente com a atividade de jogador em si.

No caso Felipe Scheidt X Botafogo de Futebol Regatas (RO0000800-86.2009), entendeu-se que, no caso, o contato de direito de imagem foi utilizado pela agremiação desportiva para camuflar a contraprestação salarial, pois era evidente a exclusiva atividade profissional de jogador de futebol realizado pelo atleta (Recurso Ordinário 0000800-86.2009.5.01.0025. TRT1. 10ª Turma. Relator Desembargador do Trabalho Flávio Ernesto Rodrigues Silva. Julgado dia 16.06.2010. pag. 1).

Destaque-se o trecho do acórdão que aborda as características do direito de imagem:

“No contrato de direito de imagem, a situação é um pouco diferente, sendo sua conotação mais abrangente. A remuneração do atleta advém, não de terceiros, mas do próprio clube empregador, o qual explora sua imagem, apelido desportivo e voz para a divulgação e venda de produtos, dentre outros, extrapolando o contexto do evento esportivo transmitido”. (Recurso Ordinário 0000800-86.2009.5.01.0025. TRT1. 10ª Turma. Relator Desembargador do Trabalho Flávio Ernesto Rodrigues Silva. Julgado dia 16.06.2010. pag. 1).

No RO0000800-86.2009, decidiu-se, para aquele caso específico, que os valores recebidos a título de imagem têm natureza salarial, devendo ser integrados aos salários para refletir sobre FGTS, férias e gratificações natalinas.

Há ocasiões, no entanto, em que o contrato de imagem cumpre o seu efetivo objetivo, que é o de um terceiro explorar os direitos de imagem de um jogador. É o exemplo do caso de Alexandre Pato, onde uma empresa inglesa tinha direito a receber pelos valores percebidos pelo autor em decorrência do uso de sua imagem1.

Embora o esporte seja um meio onde circula muito dinheiro, as entidades esportivas envolvidas na área não podem esquecer que o dos negócios jurídicos celebrados com os jogadores envolvem seres humanos, que não podem ser tratados como uma mera mercadoria e utilizados para enriquecer as pessoas, em detrimento dos direitos fundamentais dos atletas envolvidos.

“A especificidade do desporto não pode servir de salvo-conduto para aniquilar os direitos fundamentais de que os jogadores, enquanto pessoas e enquanto trabalhadores, são titulares” (LEAL AMADO, José. Uma Pessoa, não uma Mercadoria. In: Direito Desportivo – Tributo a Marcílio Krieger. São Paulo: Quartier Latin, 2009).

Para corroborar esse entendimento, cite-se decisão do Tribunal Arbitral do Desporto proferida no caso Webster. Esse caso tratou, em síntese, de um clube que, para transferir o atleta ao outro clube, teria de pagar uma multa equivalente ao “valor de mercado” do jogador. Por outro lado, o jogador pedia para sair do clube mediante o pagamento de uma multa que levasse em conta outros parâmetros.

O Tribunal julgou o caso favoravelmente ao atleta, ao entender que:

“o jogador profissional é um trabalhador que, enquanto sujeito do contrato, assume, tão-só, a obrigação de prestar a sua actividade desportiva sob a direção da respectiva entidade empregadora, por um período determinado, tendo o direito incontestável de abandonar o clube ‘free of charge at the end of his contract

O jogador não é, pois, uma qualquer mercadoria vendável ao mercado, pelo que só cum granu salis poderá ser perspectivado como um ‘activo desportivo’ do clube empregador e como elemento de um elemento do respectivo patrimônio” (LEAL AMADO, José. Uma Pessoa, não uma Mercadoria. In: Direito Desportivo – Tributo a Marcílio Krieger. São Paulo: Quartier Latin, 2009. Pp. 244/245)

O Recurso Ordinário nº. 0000800-86.2009 parte de premissa parecida com a utilizada pelo acórdão acima, quando coloca como uma das garantias do atleta a ampla liberdade profissional, assegurando aos atletas o direito de negociar livremente todos os termos de seu contrato de trabalho. Isso sem deixar de reconhecer, por outro lado, as garantias dadas às agremiações desportivas a quem são permitidas ou romper ou continuar com o vínculo com o atleta após o término do contrato de trabalho. (RO 0000800-86.2009.5.01.0025. Pag. 3).

No entanto, muitas vezes, os empregadores dos jogadores estão mais preocupados com os rendimentos do clube do que com os direitos trabalhistas dos jogadores, os quais, devido aos altos salários, podem trazer para o clube um enorme passivo trabalhista. Por isso, arrumam meios de “driblar” a legislação trabalhista2.

O esporte é uma atividade que tem diversas repercussões em nossa sociedade: oferece exercício físico aos cidadãos, gera empregos, enriquece clubes e empresários, e proporciona espetáculos esportivos que são apreciados pela grande maioria das pessoas.

Esse ramo é repleto de peculiaridades, de forma que o conjunto de normas que o regulam também são cercados de particularidades. Os legisladores, os tribunais e a administração das entidades desportivas devem estar atentos a tais detalhes, levando-se em conta os princípios colocados no art. 217 da CF.

O interesse daqueles que lucram com desporto não pode prevalecer frente aos direitos fundamentais do atleta, de forma que qualquer lei ou entendimento que acarrete violação aos direitos fundamentais do atleta não pode encontrar espaço no nosso ordenamento jurídico.

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1 “É bastante comum a celebração, paralelamente ao contrato de trabalho, de um contrato de licença do uso de imagem, consistindo este num contrato autônomo de natureza civil (artigo 87-A da Lei nº 9.615/98) mediante o qual o atleta, em troca do uso de sua imagem pelo clube de futebol que o contrata, obtém um retorno financeiro, de natureza jurídica não salarial” (RR - 82300-63.2008.5.04.0402 , Relator Ministro: Guilherme Augusto Caputo Bastos, Data de Julgamento: 28/03/2012, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 03/04/2012)

2 “Restou evidenciado que o pagamento tem como objetivo, na realidade, desvirtuar a aplicação da legislação trabalhista. Ademais, esta Corte vem entendendo que a parcela direito de imagem paga ao atleta profissional possui natureza remuneratória quando comprovado o intuito fraudulento do contrato de natureza civil” Recurso de Revista 10293-17.2013.5.12.0001, TST, Relator Ministro João Batista Pereira, 5ª Turma, Julgado dia 17.08.2016, DEJT 19.08.2016). No mesmo sentido: RR - 1531-65.2012.5.04.0002 , Rel. Min. Dora Maria da Costa, 8ª Turma, DEJT 08/06/2015, AIRR - 300-42.2009.5.01.0050, Rel. Min. Maria de Assis Calsing, 4ª Turma, DEJT 20/02/2015, dentre tantos outros.
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*Henrique de Morais Rochel é advogado no escritório de advocacia Novaes e Roselli Advogados. Especialista em Direito Desportivo pela Fundação Getúlio Vargas.


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