O ainda recente julgamento pelo STF do HC 126.292/SP, no qual restou decidido que a pena pode ser executada já a partir da condenação por órgão de segunda instância de jurisdição, independentemente do trânsito em julgado, como garante o inciso LVII do artigo 5º da Constituição da República de 1988, é o ponto de inflexão da derrocada do Estado de Direito para o Estado Totalitário.
Se até então os tribunais pátrios vinham, de forma mais ou menos contínua, recrudescendo sensível e significativamente sua interpretação em matéria penal e processual penal, tangenciando a legalidade para encaixar ponderações entre interesses público e privado que sempre excluíram o âmbito de proteção deste, a decisão da Corte Suprema rompeu com o modelo e bateu de frente com o texto constitucional, fulminando sem pudores significantes e significados para restringir o alcance da garantia individual da presunção de inocência, que é o pedra angular das democracias constitucionais.
Muito já se escreveu sobre esse retrocesso (qualitativo e temporal1) na jurisprudência pretoriana, no entanto, e o objetivo deste breve artigo não é seguir por esse caminho, mas avaliar o impacto (ou um possível impacto) do precedente em face do novo CPC, que entrou em vigor em 18/3/16.
Fator de especial preocupação é que, dentre as muitas inovações, o diploma processual civil de 2015 trouxe a obrigação aos tribunais pátrios de uniformização, integralidade, coerência e estabilidade de sua própria jurisprudência (art. 926, NCPC), não sendo considerada fundamentada a decisão judicial que se afastar do enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente “sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento” (art. 489, § 1º, VI, NCPC).
Há quem entenda, por exemplo, que “[h]avendo precedente sobre a questão posta em julgamento, nos termos do art. 521 do NCPC, ao juiz não se dá opção para escolher outro parâmetro de apreciação do Direito. Somente lhe será lícito recorrer à lei ou ao arcabouço principiológicos para valorar os fatos na ausência de precedentes. Pode até utilizar de tais espécies normativas para construir a fundamentação do ato decisório, mas jamais poderá renegar o precedente que contemple julgamento de caso idêntico ou similar. Essa obrigatoriedade, essa força normativa cogencial encontra a sua racionalidade no fato de que cabe ao STJ interpretar a legislação infraconstitucional e ao STF dar a última palavra sobre as controvérsias constitucionais. Assim, por mais que o julgador tenha outra compreensão da matéria sub judice, a contrariedade só terá o condão de protelar o processo por meio de sucessivos recursos e, consequentemente, de adiar a resolução da controvérsia” (DONIZETTI, sem data, p. 9).
E, considerando que a matéria de fato estará sempre afastada da discussão dos tribunais superiores, por incidência da súmula 7 do STJ e da própria natureza da jurisdição extraordinária, dificilmente surgirá oportunidade para que se distingua o HC 126.292/SP de demais casos com réus condenados em segunda instância.
Como se sabe, naquela oportunidade a decisão foi tomada pelo plenário da Corte Suprema, por 7 votos a 4, vencidos os ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber, de sorte que incidiria na hipótese a vinculação obrigatória ao precedente, nos termos do inciso V do artigo 927 do novo CPC. Decorreria, portanto, do referido dispositivo legal uma “vinculação interna dos membros e órgãos fracionários de um tribunal aos precedentes oriundos do plenário ou órgão especial daquela mesma Corte” e, ainda, uma “vinculação externa dos demais órgãos de instância inferior (juízos e tribunais) aos precedentes do plenário ou órgão especial do tribunal a que estiverem submetidos” (DIDIER JR.; DE OLIVEIRA; SARNO BRAGA, 2015, p. 466). Ou seja, por se tratar do Plenário da Corte Suprema brasileira, todos os tribunais pátrios estariam legalmente vinculados ao precedente julgado em 17/2/16.
A consequência desse raciocínio, porém, é absolutamente pernóstica e contrária aos mais basilares princípios jurídicos do Estado de Direito. Enveredar por esse caminho seria concluir que, naquela tarde negra, na qual negou sua própria história ao rasgar a Constituição que se obrigou a defender, o Supremo Tribunal Federal, ao fazê-lo no ocaso do Código de Processo Civil de 1973 e durante a vacatio legis de um diploma processual com inspiração no common law e no respeito ao precedente, limitou-nos à constante releitura autoritária de nossa própria Carta Política.
E nem mesmo o legislador, por meio de emenda constitucional, poderia trazer uma esperança concreta de superação desses reflexos deletérios, pois a garantia da presunção de inocência até o trânsito em julgado é de solar clareza interpretativa, não restando nenhuma segurança de que a Corte que hoje julga à revelia do texto magno a ele se submeteria no futuro, ante uma nova redação, tão ou mais evidente do que a atual. Nesse sentido, parece mais pertinente do que nunca a teoria do processo como situação jurídica e a reflexão de James Goldschmidt, muito bem destacada por Aury Lopes Jr. e Pablo Rodrigo Alflen da Silva (sem data, p. 49), acerca dos direitos e garantias individuais travestidos de meras expectativas (muitas vezes frustradas) de reconhecimento pelo Poder Judiciário2.
Mas é importante vincar, ainda assim, que esse entendimento de vinculação ao quanto decidido no HC 126.292/SP pelo Supremo Tribunal Federal vai de encontro ao Estado de Direito e à própria teoria das fontes, não apenas porque mecanismos de fechamento argumentativo são contrários ao espírito democrático (FREITAS CÂMARA, 2016), mas também porque, sob o pretexto de submissão à lei processual civil – aplicada por analogia ao processo penal naquilo que sua própria lei de regência não dispõe de modo diverso –, ignorar-se-ia a Constituição da República (cujo art. 5º, LVII, continua em vigência, apesar de tudo) e também o CPP, que repisa a impossibilidade de pena de prisão antes do trânsito em julgado da decisão condenatória (art. 283, CPP).
Certo é que, como bem adverte Tiago Bitencourt de David (2015), o novo CPC fala em observação ao precedente e “[o]bservar não implica necessariamente em ver-se compelido a seguir, a aderir, a seguir o mesmo rumo. Observar significa ter em vista, levar em conta, ainda que para divergir.” No entanto, não é menos certo que alguns tribunais já vinham adotando o entendimento ratificado pelo STF no HC 126.292/SP – tanto assim, evidentemente, que o mandamus precisou ser impetrado ao STJ contra decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que determinou a prisão do réu de ofício, como nos conta Lenio Luiz Streck (2016), e, diante do indeferimento da liminar, ao Supremo Tribunal Federal –, de sorte que, para aqueles que comemoraram a nova orientação, o diploma processual civil trouxe um ferramental teórico importante (conquanto equivocado) para a manutenção de um precedente que não se sustenta por seus próprios fundamentos.
O retrocesso jurisprudencial sinalizado pelo STF, destarte, abriu uma ferida que ainda não parou de sangrar. Trata-se, com efeito, da maior mutilação de uma garantia individual de nossa história recente. Ainda estamos sangrando. E só quando – e se – estancarmos o sangue e a ferida for fechada é que as cicatrizes ficarão evidentes. Para sempre.
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1 A decisão no HC 126.292/SP repristina a interpretação anterior ao HC 84.078, de fevereiro de 2009, quando se entendeu incabível a execução provisória da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.
2 Nas palavras de James Goldschmidt: “quando a guerra estoura, tudo se encontra na ponta da espada; os direitos mais intangíveis se convertem em expectativas, possibilidades e obrigações, e todo direito pode se aniquilar como consequência de não ter aproveitado uma ocasião ou descuidado de uma obrigação; como, pelo contrário, a guerra pode proporcionar ao vencedor o desfrute de um direito que não lhe corresponde” (sem data, p. 49 apud LOPES JR.; DA ROSA, sem data).
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Bibliografia
DONIZETTI, Elpídio. A força dos precedentes no Novo Código de Processo Civil. Disponível aqui. Último acesso em 18.08.2016.
DIDIER JR., Fredie; SARNO BRAGA, Paula e DE OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de Direito Processual Civil, v. 2: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. Salvador: Ed. Jus Podivm, 10ª ed., 2015.
BITENCOURT DE DAVID, Tiago. Novo CPC não obriga juízes a se vincularem a entendimentos de STF e STJ. Consultor Jurídico, 2015. Disponível aqui. Último acesso em 11.04.2016.
LOPES JR., Aury; DA SILVA, Pablo Rodrigo Alflen. A incompreendida concepção do processo como “situação jurídica”: vida e obra de James Goldschmidt. Revista Eletrônica Acadêmica de Direito. Law E-journal: Panóptica. Disponível aqui. Último acesso em 11.04.2016.
FREITAS CÂMARA, Alexandre. Novo CPC reformado permite superação de decisões vinculantes. Consultor Jurídico, 2016. Disponível aqui. Último acesso em 11.04.2016
STRECK, Lenio Luiz. O estranho caso que fez o STF sacrificar a presunção de inocência. Consultor Jurídico, 2016. Disponível aqui. Último acesso em 18.08.2016.
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*Theodoro Balducci de Oliveira, especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getulio Vargas – FGV (GVlaw) de São Paulo/SP. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro e pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Advogado criminalista, sócio da Balducci Sociedade de Advogados.
*Guilherme Roberto Guerra é bacharel em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado tributarista na EY.