Ela nasceu homem, porém, desde a mais tenra idade sempre se portou como se fosse do sexo feminino, naturalmente. Agora, já adulta, após ter assumido definitivamente a condição de mulher, ingressou com pedido judicial visando retificar seu nome e sexo, que se encontram em desalinho com sua vida social. E, em caso de não vingar sua pretensão, pleiteia o direito a uma morte assistida. Alega, resumidamente, que não aceita o diagnóstico de disforia de gênero, pois vive de acordo com o sexo de sua eleição, predominante em sua vida, e que o princípio da dignidade da pessoa humana fala mais alto e permite que, mesmo sem se submeter a avaliação de uma comissão multidisciplinar, o direito pode amparar seu pleito, pois considera-se mulher, assim sempre foi tratada e nunca se preocupou em se submeter à cirurgia de transgenitalização, visando a adequação sexual por tal procedimento1.
O Direito, por ser uma ciência dinâmica e mutável de acordo com os tempos, enfrenta várias situações que exigem uma reflexão mais apurada para que possa dar uma definição secundum jus, que seja coerente e condizente com a realidade social. Recomenda-se muita cautela e, principalmente, a observação necessária para se avaliar determinada situação que, direta ou indiretamente, começa a fazer parte do convívio e reclama uma postura legal.
Assim, obrigatoriamente, deve caminhar de braços dados com as transformações sociais e encarar os novos parâmetros sexuais identitários como realidades que merecem uma atenção que seja de acordo com os padrões éticos e protetivos da pessoa humana, proporcionando, desta forma, respeito mútuo e convívio social harmônico, sem qualquer ranço de preconceito ou discriminação. É o que está acontecendo com a transexualidade.
Por se tratar de tema ainda recente, sem a normatização legislativa pertinente, vem sendo regulamentado por meio de resoluções do Conselho Federal de Medicina. A resolução 1955/2010, que dispõe a respeito da autorização da cirurgia de transgenitalismo, traz os critérios autorizadores para a realização do procedimento: a) desconforto com o sexo anatômico natural; b) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; c) permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos; d) Ausência de transtornos mentais.
Os nossos tribunais, inicialmente, rejeitavam de plano as ações judiciais que visavam a mudança de sexo e nome no documento registral. As decisões foram se acomodando num patamar de questionamento social e, posteriormente, amoldando-se à nova realidade mundial; a pretensão passou a ser permitida, desde que o interessado tivesse se submetido à cirurgia de transgenitalização. Levando-se em consideração a elasticidade interpretativa do princípio da dignidade humana e o pleno direito de realização pessoal, passou-se a entender que a cirurgia não era mais requisito para a retificação do assento de nascimento, bastando, para tanto, a apresentação de um laudo médico que confirmasse ser o autor portador de transexualismo e que seja reconhecido como mulher no meio social2.
Recentemente bateu na mesma tecla o Parecer ofertado pelo procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, no Recurso Extraordinário 670.422, que teve repercussão geral reconhecida. Acentuou o chefe do Parquet que "é possível a alteração de gênero no registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de adequação de sexo, sendo vedada a inclusão, ainda que sigilosa, do termo "transexual" ou do sexo biológico nos respectivos assentos".
Também, de grande influência internacional, a declaração contida nos Princípios de Yogyakarta, principalmente no núcleo do artigo 3º, que apregoa: "A orientação sexual e identidade de gênero autodefinidas por cada pessoa constituem parte essencial de sua personalidade e um dos aspectos mais básicos de sua autodeterminação, dignidade e liberdade. Nenhuma pessoa deverá ser forçada a se submeter a procedimentos médicos, inclusive cirurgia de mudança de sexo, esterilização ou terapia hormonal, como requisito para o reconhecimento legal de sua identidade de gênero".
Nesta linha, seguindo até mesmo um pensamento filosófico que carrega embasamento jurídico, pode ser feita a conceituação distinta entre a pessoa e o corpo, indagando-se, como desafia Paul Ricoeur quando trata da hermenêutica do si-mesmo, se as pessoas são corpos ou possuem corpos, apesar de se concentrarem na mesma identidade. A pessoa, por um lado, vem revestida de atributos psíquicos e morais, construídos de acordo com a conveniência e intimidade de cada um e se transforma no território volitivo impenetrável. O corpo, por sua vez, carrega uma gama enorme de órgãos, tecidos, músculos, nervos para realizar as ações voltadas para a vida, todos magistralmente mapeados e administrados pelo cérebro.
Pode-se, também, lançar mão do pensamento de Foucault quando trata "do cuidar de si mesmo". Faz ver que o homem encontra um espaço em que pode se relacionar consigo mesmo, para se conhecer, construir e se definir como pessoa e, na sequência, em contato com o mundo externo, possa ter uma relação de imanência perfeita com o próximo, apresentando-se realmente como é, sem contornos que escondam sua identidade, justamente para que possa realizar seu projeto de vida. Nos mesmos moldes também do nosce te ipsum do Oráculo de Delfos, em que a pessoa, em primeiro lugar, tinha que se conhecer para depois se definir perante os demais.
Parece que com esta modulação seja possível vingar a pretensão levada a efeito na ação referida. A orientação jurídica mais prevalente é no sentido de que cada um tem que ser o que pretende ser realmente. O ousar ser ou o querer ser, amparados pelos instrumentos protetivos legais, representa o direito de realização da mais plena da cidadania. Basta ver o comportamento do crossdresser (aquele que traja vestes e usa acessórios do sexo oposto ao seu), que carrega dois perfis sexuais dissociados um do outro, podendo apresentar-se como heterossexual, homossexual, bissexual, totalmente divorciado da transexualidade. É a realidade.
Mas, por outro lado, deve ser rechaçada liminarmente a pretensão de morte assistida, estranha ao nosso ordenamento e sem qualquer aplicação ao caso ora comentado. O interesse de viver em sintonia com o verdadeiro sexo, plenamente ajustado ao binômio mente e corpo, que se traduz na realização do direito à felicidade, uma das vertentes do princípio da dignidade humana, por si só, espanca qualquer intenção suicida.
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1 Transexual pede morte assistida se não puder mudar nome e gênero.
2 TJ/SP, APL 0082646-81.2011.8.26.0002, Ac. 7145642, 8ª C. Dir. Priv., Rel. Des. Helio Faria, j. 30/10/2013). TJSP, APL 0082646-81.2011.8.26.0002, Ac. 7145642, 8ª C. Dir. Priv., Rel. Des. Helio Faria, j. 30/10/2013.