Migalhas de Peso

Punctum contra punctum

Enumeram-se supostas novidades, para justificar a aprovação de um projeto que nasceu torto e, por consequência, só pode morrer torto.

5/8/2016

Ao menos agora alguém reconhece que o Código Comercial de 1850, na parte relativa ao comerciante, aos contratos mercantis e às sociedades comerciais, não mais se encontra em vigor, pois foi revogada pelo Código Civil de 2002, que se encontra vigendo há pouco mais de 13 anos. Entrou em vigor em 2003...

Até recentemente, contudo, em autêntica empulhação, propagava-se que o Código Comercial era de 1850 e, portanto, precisava ser renovado. Em debate a que compareci no começo de julho na TV Câmara, a apresentadora, nas vinhetas que antecediam o início do programa, dizia isso e acrescentava: “... de 1850, quando não existiam shopping centers, automóveis, etc.” Chamei a atenção da apresentadora dizendo que isso não era verdade, mas mesmo assim ela abriu o programa dessa forma. Mais ou menos duas semanas depois, assisti a um programa na TV Cultura e a apresentadora dizia, substancialmente, a mesma coisa! Uma campanha de embuste1.

E agora enumeram-se supostas novidades, para justificar a aprovação de um projeto que nasceu torto e, por consequência, só pode morrer torto. Não tem conserto, como eu sempre disse.

Entre as novidades, aponta-se, por exemplo uma supostamente melhor disciplina das sociedades limitadas, que rigorosamente só tem de nova a alteração dos quóruns deliberativos, que agora passam a ser um só: maioria absoluta (art. 147)2. No mais, tudo que ali está ou é cópia do Código Civil ou da Lei de S/A. A unipessoalidade já existe com a Eireli. A emissão privada de debêntures pela sociedade limitada já é autorizada pela CVM. No tocante à liquidação da quota e apuração de haveres, remeto os leitores para o pequeno livro que escrevi, demonstrando a mixórdia da disciplina introduzida no Código de Processo Civil3, transplantada do próprio Antiprojeto, sendo que aquele diploma, que acabou de entrar em vigor, agora será derrogado nessa parte apenas para que se reproduza exatamente o que ali está escrito no corpo deste último – ou seja, no corpo do próprio Antiprojeto de Código Comercial (art. 778). Um jogo de vai e vem com as leis.

Supostamente favorável à liberdade do empresário, o Antiprojeto elimina tipos societários, sob a excelente justificativa de estarem em desuso. Mas mantém a sociedade em nome coletivo! Essa autopropalada novidade é simplesmente contrária – totalmente contrária – à liberdade empresarial. Como todos sabem, os tipos societários são dispostos em numerus clausus. A liberdade de associação é irrestrita (CF art. 5º, incisos XVII e segs.), mas os tipos societários não entram no âmbito da autonomia da vontade (art. 983 do Código Civil) pelo mesmo motivo que a lei impede a criação de direitos reais pelos particulares. Como disse meu caro amigo e notável jurista José Alexandre Tavares Guerreiro, "a razão de ser dessa atitude do Código, contrária às sociedades inominadas, prende-se ao mesmo motivo que o leva a discriminar os direitos reais em numerus clausus (art. 1.225). Como explica um tratadista, da mesma forma como os terceiros devem conhecer sem hesitação os direitos de um proprietário ou de um usufrutuário, os terceiros devem poder saber quais são os traços essenciais de tal ou qual forma de sociedade, sem necessitar se dispor a efetuar complexas investigações"4.

Essa excelente novidade do Antiprojeto, assim, veio coarctar a autonomia do empresário, que agora não pode, por exemplo, constituir uma sociedade em comandita simples (por que não admitir, como ponderou o Prof. Alfredo de Assis Gonçalves Neto, que uma sociedade profissional, em que não seja proibida a adoção de tipos empresariais, adote essa forma, albergando sócios investidores, sendo os sócios profissionais ilimitadamente responsáveis?), uma sociedade em comandita por ações (segundo o ex-presidente da Junta Comercial, Armando Rovai, há pelo menos umas dez registradas na Junta Comercial de São Paulo; um aluno meu descobriu uma constituída em 2011), ou uma sociedade simples. E a proibição é taxativa (art. 781, inciso III, do Antiprojeto5). Por que impedir que o empresário adote o tipo que melhor lhe convém, esteja ou não esteja em desuso? Ele não pode criar um tipo novo.

Por outro lado, a alegada eliminação da “bifurcação” entre sociedades simples e empresárias é, com a devida vênia, mais uma bravata: o que é uma sociedade cooperativa, de acordo com o inefável documento? E uma sociedade de advogados? Seriam sociedades empresárias?6

No cerne do direito societário, porém, vinha aquele dispositivo que eu comentei em meu último artigo nesse prestigiado jornal eletrônico (24.6.16), a saber, o art. 141, que tinha a seguinte – e primorosa – redação:

“Art. 141. A sociedade por quotas constitui-se por contrato social celebrado entre os sócios”.

Eu me baseava na versão do Antiprojeto de 13.6.16.

Sucede que, uma das solertes táticas que vêm sendo adotadas para desnortear os críticos dessa maravilha legislativa é a de mudar constantemente a redação dos artigos para, então, dizer que o detrator não leu a última versão.

E agora aconteceu uma coisa muita curiosa. Eu fiz uma crítica ao dispositivo supracitado, mas eu estava errado. Como o redator ou redatores do artigo que censurei parecem não ter pensamento próprio, erraram também, não é fantástico?

Vejam lá o comentário que fiz em 24.6.16:

“Começo por um artigo central para o direito societário, o artigo 141, que diz o seguinte:

‘Art. 141. A sociedade por quotas constitui-se por contrato [social] celebrado entre os sócios’. (acrescentei colchetes)

Percebam os leitores que ele vem eliminar grave dúvida que existia a propósito do assunto e enfaticamente afasta de vez quaisquer querelas.
O contrato social = contrato de sociedade = é assinado pelos sócios!

Havia divergências doutrinárias e jurisprudenciais sobre se o contrato de sociedade, por exemplo, podia ser assinado entre compradores e vendedores. O dispositivo supratranscrito corta cerce a controvérsia”.

Diante dessa ironia, menos de um mês depois, em 13.7.16 (data da última versão), o art. 141 mudou de redação, ficou menos pleonástico:

‘Art. 141. A sociedade por quotas constitui-se por contrato entre os sócios’.

Acontece, como dito, que eu estava enganado!

A sociedade não é constituída por contrato entre os sócios. A sociedade é constituída por contrato entre as partes, que se tornam sócias após a sua assinatura... A não ser, por óbvio, que anteriormente já fossem sócias de uma sociedade verbal.

Se quem escreveu ambas as versões desse dispositivo, entretanto, tivesse um pouquinho de humildade, poderia recorrer ao disposto na lapidar redação do art. 997 do Código Civil, que eu também trouxe à baila no meu artigo de 24.6.16, in verbis:

“Eu gostaria de saber por qual insondável motivo não foi aproveitada a redação do Código Civil:
‘Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará...’

Compreenderam os leitores? É escrito exatamente como em português”.

Relativamente à disciplina do direito marítimo, o Antiprojeto é tão ruim que o Instituto Ibero-Americano de Direito Marítimo, uma ONG existente em 25 países ibero-americanos, além de Alemanha, França e Estados Unidos, dedicada exclusivamente ao estudo do direito marítimo, após examinar durante um ano a estrovenga constante do projeto do Senado (repetida quase que ipsis litteris no da Câmara), encaminhou ao Senador Renan Calheiros (relator do Projeto do Senado) um relatório nos seguintes termos:

A conclusão do Relatório, portanto, é a de que seja mantido o Código Comercial de 1850 na parte de direito marítimo, ainda em vigor!

Foram identificados, por exemplo, erros de redação em artigos replicados de leis anteriores (!), erros de tradução de artigos de convenções internacionais (!), artigos meramente didáticos ou invasivos da autonomia da vontade (!), uma barafunda sem rumo, tudo na pressa de inchar o monstro:

Passemos às sociedade anônimas. Insiste-se mais uma vez em que o Antiprojeto não intervém na Lei de S/A. Eu não acredito, realmente, que se possa negar o óbvio de uma forma tão afrontosa.

Eu vou citar alguns artigos do incrível documento, que regulam integralmente as operações societárias de incorporação, fusão e cisão, para que os leitores cheguem às suas próprias conclusões.

Basta verificar os dispositivos que cuidam das disposições comuns a todas essas operações:

“Art. 227. (...)

§ 2.º Os sócios ou acionistas das sociedades incorporadas, fundidas ou cindidas receberão, diretamente da sociedade de que passam a fazer parte as ações ou quotas que lhes couberem.

Art. 228. As condições da incorporação, fusão ou cisão com versão de patrimônio para sociedade existente constarão de protocolo firmado pelos órgãos de administração ou sócios das sociedades interessadas, que incluirá:

I – o número, espécie e classe das ações ou quotas que serão atribuídas em substituição dos direitos de sócios que se extinguirão e os critérios utilizados para determinar as relações de substituição;

(...)

IV – a solução a ser adotada quanto às ações ou quotas do capital de uma das sociedades possuídas por outra;

Art. 229. As operações de incorporação, fusão e cisão serão submetidas à deliberação das sociedades interessadas mediante justificação, na qual serão expostos:

(...)

II – as ações ou quotas que os acionistas preferenciais receberão e as razões para a modificação dos seus direitos, se prevista;

III – a composição, após a operação, segundo espécies e classes das ações ou quotas, do capital das sociedades que deverão criar participações societárias em substituição às que serão extintas;

IV – o valor de reembolso das ações ou quotas a que terão direito os acionistas ou sócios dissidentes.

Art. 230. As operações de incorporação, fusão e cisão somente poderão ser efetivadas nas condições aprovadas se os peritos nomeados determinarem que o valor do patrimônio ou patrimônios líquidos a serem vertidos para a formação de capital social é, ao menos, igual ao montante do capital a realizar.

§ 1.º As ações ou quotas do capital da sociedade a ser incorporada que forem de propriedade da incorporadora poderão, conforme dispuser o protocolo de incorporação, ser extintas, ou substituídas por ações ou quotas em tesouraria da incorporadora, até o limite dos lucros acumulados e reservas, exceto a legal.

§ 2.º O disposto no § 1.º aplicar-se-á aos casos de fusão, quando uma das sociedades fundidas (sic!) for proprietária de ações ou quotas de outra, e de cisão com versão de patrimônio para sociedade existente, quando a companhia receptora for proprietária de ações ou quotas do capital da cindida.”

A pergunta é inevitável: a quem se está querendo enganar aqui? Julgam-nos completamente estúpidos? Ou iletrados? Por acaso haverá segurança jurídica após a publicação desse malfadado Antiprojeto? O que prevalecerá? As suas disposições ou as da LSA?

E o pior, caríssimos leitores, é que isso tudo foi feito sob a solene promessa dos fautores do extravagante diploma, de que não interviriam na nossa magnífica Lei 6.404/76 – redigida pelos eminentes juristas Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira!

Observe-se agora o que dispõe o Antiprojeto sobre as “ligações societárias”, tratando das sociedades coligadas, controladoras e controladas:

“Art. 250. É vedada a participação recíproca entre a sociedade e suas coligadas ou controladas.

§ 1º O disposto neste artigo não se aplica ao caso em que ao menos uma das sociedades participa de outra com observância das condições em que a lei autoriza a aquisição das próprias ações ou quotas.

§ 2º As ações ou quotas do capital da controladora, de propriedade da controlada, terão suspenso o direito de voto.

§ 3º No caso do § 1º, a sociedade deve alienar, dentro de seis meses, as ações ou quotas que excederem do valor dos lucros ou reservas, sempre que esses sofrerem redução.

(...)

§ 5º. No caso de coligadas, salvo acordo em contrário, deverão ser alienadas as ações ou quotas de aquisição mais recente ou, se da mesma data, que representem menor porcentagem do capital social.

§ 6º A aquisição de ações ou quotas de que resulte participação recíproca com violação ao disposto neste artigo importa responsabilidade civil solidária dos administradores da sociedade.

(...)

Art. 253. A sociedade controladora e suas controladas podem constituir, nos termos deste Capítulo, grupo de sociedades, mediante convenção pela qual se obriguem a combinar recursos ou esforços para a realização dos respectivos objetos, ou a participar de atividades ou empreendimentos comuns.

§ 1º. A sociedade controladora, ou de comando do grupo, deve exercer, direta ou indiretamente, e de modo permanente, o controle das sociedades filiadas, como titular de direitos de sócio ou acionista, ou mediante acordo com outros sócios ou acionistas.

(...)

Art. 255. O grupo de sociedades é constituído por convenção aprovada pelas sociedades que o compõem, a qual deve conter:

(...)

§ 3º. Os sócios ou acionistas dissidentes da deliberação de se associar a grupo têm direito a retirar-se da sociedade com o reembolso de suas ações ou quotas nos termos deste Código.

Art. 256. Considera-se constituído o grupo a partir da data do arquivamento, no Registro Público de Empresas da sede da sociedade de comando, dos seguintes documentos:

(...)

III - declaração autenticada do número das ações ou quotas de que a sociedade de comando e as demais sociedades integrantes do grupo são titulares em cada sociedade filiada, ou exemplar de acordo de acionistas que assegura o controle de sociedade filiada.

Art. 257. A convenção deve definir a estrutura administrativa do grupo de sociedades, podendo criar órgãos de deliberação colegiada e cargos de direção-geral.

Parágrafo único. A representação das sociedades perante terceiros, salvo disposição expressa na convenção do grupo, arquivada no Registro Público de Empresas e publicada, cabe exclusivamente aos administradores de cada sociedade, de acordo com os respectivos estatutos ou contratos sociais.

(...)

Art. 262. As sociedades, sob o mesmo controle ou não, podem constituir consórcio para executar determinado empreendimento, observado o disposto neste Capítulo.

(...)

Art. 263. O consórcio é constituído mediante contrato aprovado pelo órgão da sociedade competente para autorizar a alienação de bens do ativo não circulante, do qual constarão:...”

Alguém pode ter alguma dúvida sobre se o Antiprojeto intervém na LSA? É inacreditável que se pretenda negar isso. É absolutamente inacreditável e, com a devida vênia, um insulto à inteligência alheia!

No tocante ao regime do agronegócio, valho-me da contribuição de meu amigo e notável civilista Cristiano de Souza Zanetti, professor associado da Faculdade de Direito da USP, que qualifica a disciplina de caótica:

“Em primeiro lugar, o art. 8º, § 1º, não esclarece como nem em que medida deve ser ‘protegida a finalidade econômica’ da cadeia que compõe o agronegócio.

O texto do projeto não revela, em particular, se a consideração de tal cadeia permitiria intervir no domínio do pactuado para mais bem promover a finalidade econômica que a anima, hipótese em que a autonomia privada restaria aviltada, ou se, pelo contrário, sua proteção se dá justamente pela tutela dos negócios que a compõem, hipótese em que a referência à ‘cadeia produtiva agroindustrial’ seria inútil, pois ninguém discute que os contratos devem ser interpretados tendo em vista a respectiva finalidade.

A dificuldade em compreender a orientação proposta pelo projeto é incrementada pelo art. 8º, § 2º, que não deixa claro se o princípio do agronegócio é a manutenção ou a revisão do pactuado.

A mesma perplexidade é suscitada pela leitura do art. 462. De um lado, o artigo dispõe que a ‘distribuição dos riscos associados a negócios jurídicos livremente pactuados na cadeia agroindustrial não pode ser alterada’. Pouco adiante, no entanto, reza que ‘deve-se observar que não haja o repasse de riscos não previstos no negócio jurídico pactuado para a parte contratante mais vulnerável economicamente’.

Diante disso, a eventual aprovação do código tornaria necessário responder a ao menos três perguntas, a saber:

a) Qual é o conceito de parte mais vulnerável economicamente?

b) O que se deve entender por riscos não previstos no negócio jurídico?

c) O que ocorre se tais riscos forem repassados para a parte mais vulnerável? Pode, então, haver intervenção no domínio do pactuado?

São todos problemas que o projeto cria e deixa sem solução. Em acréscimo, o art. 465 permite a indexação dos contratos do agronegócio pela moeda estrangeira. Para tanto, basta que o contrato remeta a ‘índices divulgados por instituições reconhecidamente idôneas e de ampla referência no mercado internacional de produtos e insumos agrícolas, pecuários e florestais’.

De acordo com a minha percepção, ao liberar a indexação por moeda estrangeira, o projeto pode conduzir a efeitos deletérios para os pequenos agricultores que, a partir de então, ficarão diretamente expostos aos efeitos da variação cambial, sem que dela possam se proteger”.

No tocante à plena vinculação dos contratantes aos contratos empresariais, verdadeiro truísmo, o reputado civilista assim se manifestou:

“Ao dispor sobre a revisão dos contratos comerciais, tanto os arts. 6º, inc. III, §§ 2º e 3º, como o 288 repetem o que se extrai dos arts. 317 e 478 do CC. Não há qualquer acréscimo relevante à disciplina hoje em vigor, pois a verificação dos riscos pactuados não permite a intervenção no domínio do pactuado, como sobejamente reconhecido pela doutrina7.

O fato de que a revisão não pode ter lugar sem que seja extrapolado o risco contratualmente assumido foi, inclusive, reafirmado pelos estudiosos reunidos na IV Jornada de Direito Civil, realizada em 20068.

Tendo em vista o disposto no Código Civil, a I Jornada de Direito Comercial, realizada em 2012, também esclareceu que, nos contratos empresariais, as partes podem dispor a propósito dos parâmetros necessários à intervenção no domínio do pactuado9.

Na V Jornada de Direito Civil, realizada em 2011, e na I Jornada de Direito Comercial, realizada em 2012, foi ainda reiterada a necessidade de se ter presente a natureza do contrato celebrado, a fim de que a intervenção no domínio do pactuado somente tenha lugar se tiver sido extrapolada a álea que lhe é própria10.

Se, conforme afirma o texto, ‘o Judiciário nem sempre tem clareza das diferenças entre imprevisibilidade e riscos empresariais’ não será a repetição das regras que já constam do Código Civil que virá a solucionar o problema. A ‘verdadeira distorção do instituto’, de que dá notícia não se deve, assim, à falta de regramento, mas à sua insuficiente compreensão”.

É o que sucede, aliás, com a desconsideração da personalidade jurídica. O Antiprojeto nada inova em relação ao art. 50 do Código Civil, redigido, diga-se de passagem, por quem mais entende do métier: ninguém menos do que o eminente Prof. Fábio Konder Comparato, reconhecidamente um divisor de águas do nosso direito societário... Está tudo ali, o problema é a insuficiente compreensão do instituto. E que agora, no plano procedimental, já se encontra regrado pelo Código de Processo Civil de 2015, por meio do incidente de desconsideração da personalidade jurídica (arts. 133 a 137).

Ainda no tocante aos contratos, cumpre afastar a infundada crítica que se faz ao Código Civil, de que alegadamente não teria previsto normas relativas a contratos empresariais: convido o leitor a examinar, entre outros, os arts. 528, 529 e segs., 534 e segs., 591, 628, 649 e 651, 658, 693 e segs., 710 e segs., 722 e segs., 730 e segs., 757 e segs., art. 816.

Relativamente à falência transnacional, trago para os leitores texto de meu colega de Departamento de Direito Comercial da USP – e renomado especialista na matéria – o professor Francisco Satiro de Souza Junior, sobre a justificativa contraponteada, já apresentada anteriormente por um sequaz do Antiprojeto:

“A surpresa vem na justificativa. Afirma que o dispositivo segue a orientação dada pelo art. 13 da Lei Modelo da UNCITRAL sobre Insolvências Transfronteiriças, que teria inspirado todo o regime previsto no Projeto. Desse modo, segundo ele, investidores estrangeiros estariam ‘há décadas’ conformados em ser tratados de maneira discriminatória nos países onde investem.

Ocorre que basta uma única leitura do art. 13 da Lei Modelo da UNCITRAL para constatar que ele estabelece exatamente o contrário do que prevê o Projeto de Código Comercial, ou seja, que o crédito do credor estrangeiro não pode ter sua classificação afetada pelo fato de ser estrangeiro, e, notadamente, não pode ser classificado abaixo do crédito nacional sem privilégio, ou seja, o quirografário. A única exceção permitida dá-se quando, por sua natureza, o crédito seria subordinado mesmo que fosse nacional11. Apesar de desnecessário nesse caso por conta da clareza da redação, a própria UNCITRAL publica um ‘guia’ - isso mesmo, um ‘manual’ - sobre como adaptar a Lei Modelo ao ordenamento de cada país. O ‘Guia’ de implementação da Lei modelo explica didaticamente que o artigo 13 incorpora o princípio de que credores estrangeiros não podem ser tratados de forma pior do que credores nacionais (‘should not be treated worse than local creditors’12). É a consagração do ‘Princípio da não discriminação’,13 um dos pontos basilares da existência de uma lei modelo de coordenação de autoridades de diferentes países para um melhor resultado em procedimentos de insolvência. A concessão de tratamento igualitário a credores nacionais e estrangeiros é uma preocupação antiga. Há décadas procura-se eliminar até mesmo as diferenças materiais entre eles, tal como as dificuldades de credores estrangeiros obterem a documentação adequada para habilitarem seus créditos, se fazerem representar nos processos de insolvência e se comunicarem em uma língua não nativa. O propósito da cooperação internacional é justamente promover, tanto quanto possível, a eficiência, a justiça e a uniformidade na arrecadação e distribuição dos ativos do devedor insolvente, o que contrasta radicalmente com o tratamento discriminatório proposto no Projeto de Código Comercial. Aliás, seria incoerente imaginar-se que uma Lei Modelo de cooperação proporia a proibição do tratamento equitativo entre credores de diferentes países. A discriminação, o paroquialismo, a xenofobia, não precisam de incentivos legais; o inverso sim.

A oportunidade traz à reflexão alguns pontos. O primeiro é que não se pode esperar condescendência generalizada com ‘equívocos’ como esse, que podem abalar severamente a imagem externa de seriedade do país. Na sessão da Comissão Central da UNCITRAL ocorrida no final de junho, delegados de países de tradicionais investidores questionavam qual seria a interpretação correta da mensagem que o país pretenderia passar com a inclusão de um dispositivo discriminatório do investimento estrangeiro no projeto do mais importante marco regulatório da atividade empresarial no país. O que revela não só o interesse dos investidores na evolução institucional no Brasil, mas que a simples inclusão de um dispositivo como esse num documento legislativo oficial, mesmo que não venha a tornar-se norma, tem o enorme potencial de sinalizar negativamente e afastar novos investimentos estrangeiros. Não há qualquer preocupação da parte deles em disputas pessoais, elemento que vem sendo reiteradamente utilizado para desqualificar as críticas, mesmo que legítimas. É em fatos concretos (como a efetiva redação do art. 188-L), no arcabouço institucional projetado e nos seus reflexos para o ambiente de negócios que se concentra seu interesse. Na recuperação judicial recém-ajuizada da Oi, por exemplo, os cerca de 11 bilhões de dólares representados por notas emitidas no exterior (bonds), de acordo com a redação do art. 188-L do projeto, deveriam ser tomados como subordinados aos quirografários. Não é difícil identificar o interesse e projetar a repercussão negativa de uma situação como essa.

O segundo ponto é que essa não é a primeira vez que esse dispositivo surge no Projeto de Código Comercial. Mesmo quando o capítulo sobre insolvência transnacional não era ‘inspirado’ na Lei Modelo da UNCITRAL, o art. 1075 da minuta produzida pela comissão de juristas do Projeto de Lei do Senado Federal trazia redação semelhante. É possível, assim, que o objetivo do legislador seja realmente dar prioridade aos credores locais sobre os estrangeiros. Mas nesse caso, é de se perguntar se foram sopesadas as consequências caso outros países decidissem aplicar um regime semelhante aos credores brasileiros. O projeto de Código Comercial formaliza um regime discriminatório do crédito estrangeiro que de certa forma sinaliza valores do Estado brasileiro.

Finalmente, a Lei Modelo da UNCITRAL foi completamente alterada na redação proposta no Projeto. Pequenas adaptações podem ser bem-vindas. Mas por que um país se proporia a adotar uma Lei Modelo - cuja incorporação com o mínimo de modificações está na essência de sua utilidade - alterando-os significativamente? Sem justificativa aparente, contudo, o projeto inova em conceitos essenciais como o de centro de interesses principais, por exemplo, e estabelece regras que não só não pertencem à Lei modelo, como não parecem fazer sentido mesmo se analisadas somente sob o enfoque nacional: imagine-se que pelo art. 188-S (sem nenhum paralelo na Lei Modelo, obviamente) o Ministério Público passa a poder requerer a falência de uma empresa brasileira, independentemente de qualquer hipótese de insolvência, caso seja aberto um processo falimentar no exterior. Se o dispositivo já estivesse em vigor à época da crise da General Motors nos Estados Unidos, ela poderia ter sua falência decretada também no país, com consequências perniciosas à General Motors do Brasil, empresa solvente e viável economicamente. A par do resultado negativo interno, as alterações nos institutos essenciais do modelo são criticáveis também sob o ponto de vista do relacionamento internacional, uma vez que o foro competente para a apresentação de críticas e propostas de mudança é justamente a sessão pública da UNCITRAL”.

Por aí se vê mais um dos absurdos do Antiprojeto, trazido como “novidade” (sic!).

No tocante às demais supostas novidades, nem paga a pena se alongar: nenhuma delas justifica, obviamente, a edição de um “código” paralelo ao Código Civil, mas apenas eventuais intervenções tópicas, como a regulação de atos jurídicos em suporte eletrônico.

Outras são de esconder, como a questão da prescrição e da decadência e da diminuição dos prazos. O legislador brasileiro, para começar – e com todo o respeito –, parece nem sequer dominar a distinção entre decadência e prescrição, como apontei no artigo de início assinalado, publicado neste justamente prestigiado jornal.

Aqui também, aliás, ocorreu uma mudança de redação da penúltima versão do Antiprojeto para a última, de 13.7.16. Mas, como parece que eu não errei, o redator acertou... Só que, em parte (vamos lá, também não é assim de uma hora para outra!).

Repito o que disse no artigo anterior:

“O Antiprojeto assim dispõe:

‘Art. 40. [Enquanto não prescrita a pretensão], o prejudicado pode pleitear a anulação judicial de inscrição de nome empresarial feita com violação da lei ou do contrato’. (acrescentei colchetes)

Eu pensei que a anulação de um ato estivesse ligada a prazos de decadência e não de prescrição. Foi o que aprendi com os grandes civilistas. E a matéria me pareceu ter sido bem resolvida pelo Código Civil.

Mas me enganei, vejam só:

“Art. 99...

Parágrafo único. É de seis meses o prazo de decadência para:

(...)

IV - para cobrar dividendos ou qualquer outra forma de participação nos resultados da sociedade, contado da data em que tenham sido postos à disposição do sócio ou acionista” (grifei).

Em face dessa crítica, o art. 40 passou agora a ter a seguinte redação:

“Art. 40. O prejudicado pode pleitear a anulação judicial de inscrição de nome empresarial feita com violação da lei ou do contrato”.

Em compensação, o inciso IV do art. 99 que estampa um evidente prazo prescricional, foi mantido.

Pergunto: o que dirão os juristas de outros países sobre isso?

Para terminar por hoje, entre as novidades contraponteadas, não foram apontadas algumas realmente inéditas e inauditas.

Uma delas diz respeito ao estabelecimento empresarial – esta sim, uma grande novidade –, constante do art. 43:

“Art. 43. Trespasse é o contrato de alienação do estabelecimento empresarial”.

Barbaridade, é mesmo? Ah vá! Eu acho que nem o grande Carvalho de Mendonça sabia disso. Esse antiprojeto é verdadeiramente uma grande lição de Direito Comercial! Com artigos inteiramente funcionais, diga-se de passagem.

Mas a grande e insuperável novidade, sem qualquer dúvida, é a seguinte:

“Art. 267. Em caso de inadimplemento, o empresário credor pode exigir judicialmente o cumprimento da obrigação”.

É de se perguntar, naturalmente, se os credores não empresários, então, em uma interpretação a contrario sensu, estariam proibidos de fazê-lo.

Um primor de dispositivo legal, que pode ser intuído por uma criança de 10 anos. Qualquer credor tem o direito de exigir judicialmente o adimplemento da obrigação. Não pode esmurrar ou esfolar o devedor, nem vendê-lo como escravo Transpinheiros ou Transtietê14.

Com toda a sinceridade, o Brasil merece isso?!

___________________

1 Não estou dizendo, evidentemente, que as apresentadoras participam dessa campanha, mas apenas que repercutem o que vem sendo, há tempos, insistentemente “martelado” na mídia pelos acólitos do Antiprojeto.

2 Mantenho minha opinião no sentido de que um único quórum de maioria absoluta não protege suficientemente a minoria, já que o recesso é um remédio ruim para a minoria e para a própria sociedade, que deve pagar o valor das quotas. Nas deliberações estruturais, o quórum deveria ser qualificado como, aliás, o faz a LSA (arts. 129 e 136). Nesse sentido são os (excelentes) ordenamentos alemão e português, por exemplo.

3 Da ação de dissolução parcial de sociedade – Comentários breves ao CPC/2015, em coautoria com Marcelo Vieira von Adamek, Malheiros Editores, 2016.

4 Comentários ao Código Civil, no prelo, apud Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França, A sociedade em comum, Malheiros, 2013, p. 135.

5 Não bastasse a revogação da disciplina societária do Código Civil, o Antiprojeto tautologicamente ainda dispõe: “Art. 781. A partir da entrada em vigor deste Código: I – as ‘sociedades empresárias’ passam a denominar-se simplesmente ‘sociedades’; II – a expressão ‘sociedade’ passa a designar qualquer pessoa jurídica de fins econômicos; e III – é vedada a constituição de sociedade simples, sociedade em comandita simples e sociedade em comandita por ações e de empresa individual de responsabilidade limitada”.

6 Veja-se o que diz o art. 12, § 2º, do próprio Antiprojeto: “Art. 12. (...) § 2º. A sociedade cooperativa não é empresária e rege-se exclusivamente pela legislação especial”... Não é um primor?

7 Nota do original: MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. v. V. t. I: Do direito das obrigações. Do adimplemento e da extinção das obrigações. 2ª ed., 2ª tir., Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 306/310; e ASSIS, Araken de; ANDRADE, Ronaldo Alves de; ALVES, Francisco Glauber Pessoa. Comentários ao Código Civil. v. V. Rio de Janeiro: Forense, 2007, pp. 722/723; LOPEZ, Teresa Ancona. Princípios contratuais; DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Onerosidade excessiva e revisão contratual no direito privado brasileiro, ambas in: Wanderley Fernandes (coord.). Fundamentos e princípios dos contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 32/37 e 363/364, respectivamente; VILLELA, João Baptista. Equilíbrio do contrato: os números e a vontade. In: RT 900:108/109; ZANETTI, Cristiano de Sousa. O risco contratual, in Teresa Ancona Lopez; Patrícia Faga Iglecias Lemos; Otavio Luiz Rodrigues Junior (coord.), Sociedade de risco e direito privado, São Paulo, Atlas, 2013, pp. 459/461.

8 Nota do original: Trata-se do Enunciado 366, cujo teor é o seguinte: “Art. 478. O fato extraordinário e imprevisível causador da onerosidade excessiva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação”.

9 Nota do original: Eis o teor do enunciado 23: “Em contratos empresariais, é lícito às partes contratantes estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação dos requisitos de revisão e/ou resolução do pacto contratual”.

10 Nota do original: Eis o texto do enunciado 439, aprovado na V Jornada de Direito Civil: “Art. 478. A revisão do contrato por onerosidade excessiva fundada no Código Civil deve levar em conta a natureza do objeto do contrato. Nas relações empresariais, observar-se-á a sofisticação dos contratantes e a alocação dos riscos por eles assumidas com o contrato. O enunciado 25 dado à luz na I Jornada de Direito Comercial é praticamente idêntico: “A revisão do contrato por onerosidade excessiva fundada no Código Civil deve levar em conta a natureza do objeto do contrato. Nas relações empresariais, deve-se presumir a sofisticação dos contratantes e observar a alocação dos riscos por eles acordada”.

11 Nota do original: “Article 13. Access of foreign creditors to a proceeding under [identify laws of the enacting State relating to insolvency]

1. Subject to paragraph 2 of this article, foreign creditors have the same rights regarding the commencement of, and participation in, a proceeding under [identify laws of the enacting State relating to insolvency] as creditors in this State.

2. Paragraph 1 of this article does not affect the ranking of claims in a proceeding under [identify laws of the enacting State relating to insolvency], except that the claims of foreign creditors shall not be ranked lower than [identify the class of general non-preference claims, while providing that a foreign claim is to be ranked lower than the general non-preference claims if an equivalent local claim (e.g. claim for a penalty or deferred-payment claim) has a rank lower than the general non-preference claims]”(grifamos).

12 Nota do original: “With the exception contained in paragraph 2, article 13 embodies the principle that foreign creditors, when they apply to commence an insolvency proceeding in the enacting State or file claims in such a proceeding, should not be treated worse than local creditors”. (grifamos)

13 Nota do original: “Paragraph 2 makes it clear that the principle of non-discrimination embodied in paragraph 1 leaves intact the provisions on the ranking of claims in insolvency proceedings, including any provisions that might assign a special ranking to claims of foreign creditors.”

14 Lex Poetelia Papiria de 326 A.C., com adaptações!

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*Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França é professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e advogado.


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