A cobrança de tributos, não raras vezes, foi vista na história de forma odiosa, sendo o agente exacional uma figura famigerada na sociedade. Isto decorria, evidentemente, do caráter arbitrário e vexatório que as imposições fiscais apresentaram em inúmeros momentos de destaque na história das grandes civilizações.
Dada a íntima "relação entre a organização política dos Estados e sua organização financeira, as quais com o passar dos anos se modificam constantemente junto com as imposições fiscais" (BALTHAZAR, 2005, p. 20), estas passaram a ostentar, ao invés do insustentável caráter predatório e a fraqueza das donações voluntariosas, a legitimidade da racionalidade legal. E em um Estado de Direito, a tributação não poderia apresentar um caráter diverso: o Direito Moderno deve ser legítimo, racionalmente aceitável e, somente assim, válido.
Um Direito Tributário somente se qualifica enquanto tal em um contexto recente de limitação do poder através da lei, quando deixa de ser uma estrutura de opressão para se caracterizar como sistema de direitos e deveres, com princípios, regras e institutos próprios, disciplinando a relação jurídica entre o Estado e o particular, no que tange à cobrança de tributo. Trata-se de inegável avanço civilizatório, pautado na presença imponente de uma Constituição no topo do ordenamento jurídico.
As agruras históricas que envolvem o fenômeno da tributação devem ser sempre rememoradas antes de lançarmos nosso olhar de intérprete para os problemas do presente e as soluções do futuro. Afinal, como alerta José Ortega Y Gasset (2013), "O passado tem razão, a sua. Se não se lhe dá essa que tem, voltará a reclamá-la, e de passagem a impor a que não tem". Mas no Direito interpretamos e aplicamos textos. O princípio é sempre o VERBO. E qualquer estudo jurídico-dogmático e especialmente sobre o Direito Tributário deve ser iniciado a partir de uma análise da textura constitucional que lhe serve de fundamento.
Neste sentido, quem se dispõe a aflorar pretensões cognoscentes diante do Direito, a fim de aplicá-lo, deve observância tão-somente à compreensão dos textos prescritivos, independentemente das suas motivações íntimas.
Do texto constitucional, portanto, iniciamos nossa análise. O art. 149, § 2º, inciso III, “a”, da Constituição da República estabelece, dentre outras materialidades, a competência exclusiva da União para a instituição de contribuição social, com alíquota, sobre o valor aduaneiro, em caso de importação.
O próprio constituinte tratou de determinar, então, de forma expressa uma única base de cálculo para os referidos tributos: o valor aduaneiro, grandeza que mede de forma adequada a operação tributada (de importação). Em decorrência da previsão constitucional, bem como do limite estabelecido no art. 110, do CTN, a legislação ordinária, ao instituir tais contribuições, não pode eleger base de cálculo distinta, seja instituindo outra qualquer, seja alargando ou distorcendo a definição de valor aduaneiro. A modificação dos elementos intrínsecos ao instituto corresponderia a eleger qualquer outra base de cálculo que se assemelharia ao valor aduaneiro apenas nominalmente, o que acarretaria em violação direta à Constituição.
Essa questão foi devidamente apreciada pelo STF, que, no julgamento do RE 559.937, submetido à sistemática da repercussão geral, assim afirmou:
Ao dizer que a contribuição ao PIS/PASEP- Importação e a COFINS-Importação poderão ter alíquotas ad valorem e base de cálculo o valor aduaneiro, o constituinte derivado circunscreveu a tal base a respectiva competência. (RE 559937, Rel. Min. Ellen Gracie. Rel. Para Acórdão Min. Dias Toffoli. Tribunal Pleno, julgado em 20/03/2013, Repercussão Geral – mérito. Dje 17/03/2013).
Firmada essa premissa, é imprescindível compreender, então, a definição do conceito de valor aduaneiro. O próprio STF tratou de estabelecer no mesmo julgamento, afirmando tratar-se de expressão com “sentido técnico inequívoco”, na medida em que já utilizada de forma reiterada pela própria legislação tributária, quando da definição da base do Imposto de Importação:
(...) 5. A referência ao valor aduaneiro no art. 149, § 2º, III, a , da CF implicou utilização de expressão com sentido técnico inequívoco, porquanto já era utilizada pela legislação tributária para indicar a base de cálculo do Imposto sobre a Importação. 6. A Lei 10.865/04, ao instituir o PIS/PASEP -Importação e a COFINS-Importação, não alargou propriamente o conceito de valor aduaneiro, de modo que passasse a abranger, para fins de apuração de tais contribuições, outras grandezas nele não contidas. O que fez foi desconsiderar a imposição constitucional de que as contribuições sociais sobre a importação que tenham alíquota ad valorem sejam calculadas com base no valor aduaneiro, extrapolando a norma do art. 149, § 2º, III, a, da Constituição Federal. (...) 9. Inconstitucionalidade da seguinte parte do art. 7º, inciso I, da Lei 10.865/04: “acrescido do valor do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS incidente no desembaraço aduaneiro e do valor das próprias contribuições , por violação do art. 149, § 2º, III, a, da CF, acrescido pela EC 33/01. 10. Recurso extraordinário a que se nega provimento. (RE 559937, Rel. Min. Ellen Gracie. Rel. Para Acórdão Min. Dias Toffoli. Tribunal Pleno, julgado em 20/03/2013, Repercussão Geral – mérito. Dje 17/03/2013).
Como se depreende da ementa transcrita, o STF afastou, por inconstitucionalidade, parte do inciso I do art. 7° da lei 10.865/04, que incluía na base de cálculo do PIS-importação e da Cofins-importação valores que não integram a definição de valor aduaneiro.
Restou consignado, portanto, que, seja pela análise do texto constitucional, seja por aplicação da decisão proferida pelo STF em recurso representativo da controvérsia, não pode o legislador ordinário prescrever base de cálculo distinta do valor aduaneiro, acrescendo-lhe elementos que não integram esse conceito.
Ressalte-se que, independentemente de tratar-se de importação de bens ou de serviços, o STF determinou a base de cálculo das contribuições sociais incidentes sobre importação. E este delineamento proporciona a segurança que o Sistema Tributário necessita para ser manejado.
No referido julgamento, o STF prescreveu que valor aduaneiro, para fins de incidência de PIS-importação e Cofins-importação deve ser aquele definido no art. 2° do decreto-lei 37/66, que dispõe sobre a base de cálculo do imposto de importação.
Este dispositivo, com a redação alterada pelo decreto-lei 2.472/88, prescreve:
Art.2º - A base de cálculo do imposto é:
II - quando a alíquota for "ad valorem", o valor aduaneiro apurado segundo as normas do art.7º do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio - GATT.
Consultando as disposições do GATT sobre o valor aduaneiro (arts. 1°, 7° e 8°), verifica-se que ele corresponde ao valor da transação, ou seja, ao preço efetivamente pago como contraprestação pela importação. No caso da importação de serviços, incluem-se nesta definição de valor aduaneiro, nos termos do GATT, os seguintes elementos:
(i) O preço efetivamente pago pelo serviço importado;
(ii) Comissões e despesas de corretagem;
(iii) Custo de seguro; e
(iv) Outros montantes que integrem o valor do serviço prestado (custos projetos, royalties e outros).
Não se incluem nessa definição, portanto, os tributos eventualmente devidos pelo importador. Ou, em outras palavras, não há nenhuma prescrição que autorize a inclusão do valor destinado ao pagamento de tributos como o ISS ou as próprias contribuições no conceito de valor aduaneiro.
É essa, portanto, a definição de valor aduaneiro que deve ser adotada para definição legal da base de cálculo do PIS-importação e da Cofins-importação, nos termos da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 559.937, sob pena de violação ao que prescreve o art.
Conforme já esclarecido, no exercício da competência constitucionalmente atribuída, o legislador previu a incidência da Contribuição ao PIS e da Cofins sobre a importação de mercadorias e serviços na lei 10.865/04. Este diploma legal, por sua vez, prescreve, em seu art. 7°, II, que a base de cálculo das contribuições em comento sobre a importação de serviço é:
Ao verificar a base de cálculo fixada pelo dispositivo, verifica-se que estes valores não correspondem ao valor aduaneiro, nos termos definidos pelo Supremo Tribunal Federal.
Isso porque, como já explicado, apenas os valores efetivamente pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos para o exterior, que correspondem ao preço pago pelo serviço importado, equivalem ao valor da transação, como delimitado pelo GATT. Qualquer valor que exceda este montante não pode integrar a base de cálculo das contribuições incidentes sobre a importação de serviços, sob pena de inconstitucionalidade e desobediência ao entendimento expressamente positivados pelo STF em Recurso Extraordinário submetido à sistemática da repercussão geral.
Por isso, os valores destinados ao pagamento de ISS e das próprias contribuições não podem ser objeto de incidência das Contribuições instituídas pela lei 10.865/04. Afinal, não correspondem a uma contraprestação pela importação dos serviços, mas sim a tributos incidentes sobre a operação, que não integram o conceito de valor aduaneiro.
Não há que se falar muito menos que é o despacho aduaneiro, que formaliza a entrada da mercadoria no território nacional, o elemento fundamental para oferecer à base de cálculo da importação de bens a alcunha de “valor aduaneiro”. E que na importação de serviços, por não haver tal despacho, seria outra a base de cálculo do tributo incidente sobre esta operação. Por mais que pareça óbvia a afirmação, a administração pública usualmente desafia as obviedades, a fim de arrecadar e fiscalizar de formas abusivas. E o judiciário, infelizmente, não se mostra muito disposto a afastar os argumentos teratológicos do fisco.
O valor pago a título de importação de bens, assim como o valor pago para importação de serviços, é aduaneiro, pois é relativo à transposição da territorialidade do país. Refere-se à Aduana, ou Alfândega, repartição da administração pública que fiscaliza os pontos limítrofes do território pátrio. Não é o despacho emitido pelo fisco que define o valor remetido ao exterior como aduaneiro. Será valor aduaneiro qualquer valor direcionado ao território estrangeiro, pela aquisição de bens ou contratação de serviços que tenha origem alienígena.
No caso da importação de serviço, o valor que consubstancia o pagamento por esta operação é que será considerado valor aduaneiro. O valor do serviço, portanto, é a base de cálculo da contribuição social que incidir sobre esta importação.
A base de cálculo adotada para a importação de bens, portanto, em nada difere da base de cálculo da importação de serviços. Não por outra razão, a Constituição Federal somente faz alusão a uma expressão para definir aquele elemento quantitativo das contribuições sobre importação: o valor aduaneiro.
O legislador ordinário, no entanto, definiu bases de cálculos diversas no intuito de inserir nelas, além das próprias contribuições, na importação de bens, o ICMS (art. 7°, I, da lei 10.865/04) e na importação de serviços, o ISS (art. 7°, II, da lei 10.865/04). Não unificou as bases de cálculo, simplesmente, porque não poderia exigir que o PIS e a Cofins sobre importação incidissem em valor de ISS na aquisição de bens ou em valor de ICMS na aquisição de serviços.
Sendo demasiadamente eufemista, qualquer cobrança de tributos que seja patentemente destituída de fundamentos legais revela-se como confisco violento da propriedade privada. Não é admissível, portanto, que o Poder Judiciário tolere sua manutenção, ainda que onere parcela ínfima de riqueza. E aqui vale a lição do professor Tácio Lacerda Gama (2009, pág. 341): “A sanção pelo exercício ilícito da competência é a nulidade da norma. A consequência da nulidade é (...) a suspensão da vigência”. And that’s all, folks. É somente isto que o contribuinte espera do Judiciário.
O exercício da competência, como qualquer outro fato jurídico, se ilícito, deve ter como resposta uma sanção adequada. No caso, a declaração de nulidade do art. 7°, II, da lei 10.865/04 e, consequentemente, a suspensão da sua vigência é a resposta correta do Sistema Jurídico para a sua própria recomposição.
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Referências:
BALTHAZAR, Ubaldo Cesar. História do Tributo no Brasil. Florianópolis. Fundação. Boiteaux. 2005.
GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária. Fundamentos para uma teoria da nulidade. São Paulo. Noeses. 2009.
ORTEGA Y GASSET, José. Rebelião das Massas. Ruriak Ink. 2013
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