Migalhas de Peso

O perfil genético como prova criminal

E a liberdade do cidadão, como é legalmente resguardada, somente pode ser limitada em nome de outra liberdade mais prevalente, no critério estabelecido por seres iguais e livres, com liberdade de escolha.

24/7/2016

Sherlock Holmes, personagem do romance policial criado por Arthur Conan Doyle, é um detetive consultor que prestou muitos serviços de investigação à Scotland Yard, principalmente nos casos mais complicados e que não deixavam qualquer pista para iniciar uma investigação policial. Utilizava em seus trabalhos, além da indução e dedução, métodos da pesquisa científica, com os meios técnicos existentes à época, assim como experiências laboratoriais. Seus livros prendiam a atenção do leitor de tal forma que a todo instante surgia um suspeito e o detetive científico, para aguçar o interesse e curiosidade do leitor, propositadamente deixava a revelação do crime somente no final do livro. Se vivesse nos tempos atuais ficaria satisfeito em ver que sua proposta de desvendar um crime de difícil elucidação, utilizando para tanto dados científicos e laboratoriais, vem ganhando cada vez mais espaço e proporcionando resultados satisfatórios.

Basta ver que no ano de 2014, em Goiânia, ocorreu o estupro de uma menina de 12 anos de idade e somente agora foi descoberta a autoria do crime, graças ao trabalho laboratorial da Polícia Técnico-Científica que, após confrontar os vestígios encontrados no corpo da vítima com os dados inseridos no banco de dados de perfis genéticos, chegou ao autor do crime, hoje preso pela prática de outro ilícito e na época foragido da Justiça1.

No Brasil foi editada a lei 12.654/2012, que prevê a coleta de perfil genético como forma de identificação criminal e determina em seu artigo 9º-A "que os condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no art. 1º da lei 8.072, de 25 de julho de 1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA – ácido desoxirribonucleico, por técnica adequada e indolor".

Foi, posteriormente, regulamentada pelo decreto 7.950, de 12 de março de 2013, que instituiu o Banco Nacional de Perfis Genéticos e a Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos, que possibilitarão o compartilhamento e a comparação dos dados dos bancos de perfis genéticos da União, Estados e Distrito Federal. A regulamentação explicitou que o material coletado não será utilizado somente para a identificação criminal e sim também para a identificação de pessoas desaparecidas.

Traduzindo a intenção da lei, todo o vestígio encontrado no corpo da vítima, em consequência de crime grave, será confrontado com o material disponível no banco de dados de DNA e, ocorrendo a coincidência e igualdade do material do perfil genético, tem-se uma prova inconcussa de autoria, principalmente levando-se em consideração que nos crimes sexuais praticados com violência ou grave ameaça, como é o caso de Goiânia, em regra, não há prova testemunhal.

O grande entrave da lei será a proibição constitucional de não permitir que a pessoa produza prova contra si mesma, consistente no procedimento invasivo da extração de sangue, em razão do princípio garantido pelo dogma do direito ao silêncio, norteado pela regra do nemo tenetur se detegere, garantia assegurada nas constituições democráticas, conforme se constata da norte-americana, no instituto do privilege against self-incrimination.

Para muitos juristas, o exercício desse direito não pode ser visto como uma penalização, um suplício, um antídoto da liberdade consagrada e, consequentemente, salta aos olhos a inconstitucionalidade da lei. E a liberdade do cidadão, como é legalmente resguardada, somente pode ser limitada em nome de outra liberdade mais prevalente, no critério estabelecido por seres iguais e livres, com liberdade de escolha.

A matéria já bateu às portas do Supremo Tribunal Federal e o ministro Gilmar Mendes, examinando recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais2,  entendeu que se trata de questão constitucional com indiscutível relevância jurídica e social e votou para reconhecer a repercussão geral da alegação de inconstitucionalidade do art. 9º-A da lei 12.654/12, que prevê a identificação e o armazenamento de perfis genéticos de condenados por crimes violentos ou crimes hediondos.

O imbróglio, desta forma, ganha foro constitucional, espaço em que será discutida, de um lado, a aparente violação à vida privada do cidadão, com a inclusão do seu perfil genético em banco de dados e, do outro, a intromissão estatal proporcional, levando-se em consideração que o material genético do condenado por crime grave pode ser útil na investigação de crime de autoria desconhecida.

Tarefa de difícil elucidação. Se fosse encaminhada para Sherlock Holmes, certamente encontraria uma solução adequada para o caso e, ao final, acomodando sua inseparável lupa no bolso do casaco, com ar vitorioso, diria ao seu assistente, dr. Watson: "Elementar, meu caro Watson".

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1 Polícia Técnico-Científica desvenda crime de estupro por análise de DNA.

2 STF.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.




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