Migalhas de Peso

O poente da cortesia

Ao insistir na valorização da cordialidade profissional, o que propugno não é uma inútil volta ao passado, ou um estéril saudosismo, mas sim o resgate pela classe forense.

15/7/2016

Invocando, entre outros motivos, que “as mudanças na dinâmica social exigem a inovação na regulamentação entre os indivíduos”, e forte na “necessidade de modernização e atualização das práticas advocatícias”, o egrégio Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) baixou a Resolução nº 2, de 2015, instituindo o Código de Ética e Disciplina, que, revogando o análogo édito de 1995, vigerá a partir de 4 de maio do corrente ano.

Foi dito, a tal propósito, que a edição desse novo estatuto deontológico era dispensável, apenas traduzindo expressão da permanente e incorrigível vontade, inata à cultura e às tradições tupiniquins, de trocar as regulações tão logo atinjam a adolescência vivencial, frequentemente antes mesmo da puberdade... Afinal, acentuaram os partidários dessa convicção, não se poderia proclamar a senilidade regulatória de um código ético que, como o de 1995, agora agonizante, completaria uma só década de regência.

Enfrentando dilema semelhante quando se discutia a conveniência em revisar o precedente normativo, àquela altura cinquentenário, o doutor Mauro Cunha, com a autoridade oriunda de sucessivas e profícuas presidências do Tribunal de Ética da OAB-RS, verberou inexistir “nenhuma urgência nessa eventual reformulação”, acrescentando que o saudável proceder advocatício não se resumia à observância daquilo que posto na codificação específica, mas também subordinado às preceituações das leis instrumentais, notadamente o Código de Processo Civil, e aos comandos cogentes do Estatuto da Ordem, circunstância esta que, na óptica do ilustre gaúcho, tornava adiável qualquer precipitada revisão (CUNHA, 1989, p. 54).

Guardada a vênia, dessa visão não comungo. Antes de tudo, porque refuto a ácida ideia de Millôr Fernandes (2007, p. 176) no sentido de que “a era da ética já terminou. A era do humanismo está definitivamente morta. Entramos nos tempos do pragmatismo, pior, do casuísmo, que é o pragmatismo degenerado”.

Ainda preliminarmente, mesmo reduzindo-o ao plano do jus jocandi, repudio o anárquico conceito de Nelson Rodrigues (1997, p. 12), para quem o advogado teria “[...] de ter um pouco de opereta, de óperabufa, para impressionar a besta do cliente. Um pouco de ridículo, bem dosado, é útil na profissão”. Nem sequer me impressiona a bem humorada assertiva do icônico Carlos Drummond de Andrade (1997, p. 90), poeta maior de minha geração, no sentido de que “A quase totalidade das leis, como sucede aos espermatozoides, não é aproveitável”.

Nada disso, malgrado a elevada origem, consegue sensibilizar-me. Por amor à esperança, pela confiança na boa-fé que, como norma propedêutica, quero acreditar instigue a classe jurídica, e rendendo-me à perspectiva otimista de um futuro crescentemente cobrador da eticidade que a população brasileira hoje reclama nas ruas, penso serem bem-vindos códigos como aquele que, após um triênio de cuidadosa atenção e acurados estudos, os nossos conselheiros federais promulgaram. Certos eles estiveram ao perceber que a “dinâmica social”, a cada vez mais célere nas transformações da cidadania e das gentes, forçava mergulhar nas questões recentes que tocam a advocacia e sobre as quais pairava o vazio e o nada, ou, ao menos, na mais risonha das perspectivas, eram dominadas por zonas cinzentas.

Por isso, preocupados com as novas e complexas realidades, colhendo sugestões e submetendo-se a audiências com seus pares e com especialistas, os nossos inspirados colegas do Conselho Federal resolveram, no Código prestes a viger, disciplinar, por exemplo, o patrocínio pro bono, ditar restrições mais severas à publicidade no exercício da profissão e, ajustando-se ao que é contemporâneo, até permitir a cobrança de honorários via cartão de crédito.

Contudo, do mesmo modo que aplaudo e rendo homenagens à decisão do egrégio Conselho Federal de regrar, inspiradamente e com razoabilidade, fatos e situações advocatícios surgidos nos últimos tempos, não resisto em lastimar haja o recente édito perdido o ensejo de, no Capítulo IV do seu texto, versar, com mais realidade, senso prático, largueza e minudência, as relações dos advogados com os seus colegas de profissão. Nesse ponto, o dever da urbanidade e da consideração recíprocas viu-se relegado a três solitários e aligeirados artigos contendo fórmulas rasas e abstratas, a maior parte delas encontradiças na Lei de Processo Civil e no Estatuto da Advocacia. Portanto, simples e inócua repetição.

Voltando ao doutor Mauro Cunha (1989, p. 50), um código ético serve para “[...] coibir o abuso, a deslealdade, a desídia, a inadimplência – todos os males que viciam e enodoam a atividade humana e que são afinal, na expressão de Evaristo da Veiga, a partilha da humanidade que cabe a cada um de nós”.

Lembre-se que, na previsão da Lei nº 8.906, ao enunciar os objetivos das codificações desse quilate, o legislador estatutário incluiu expressamente, entre os deveres do advogado, aqueles ligados ao seu relacionamento com “o outro profissional”, ligação esta qualificada pela tônica “geral de urbanidade” (Estatuto, art. 33, parágrafo único).

No exercício da advocacia, “a cortesia é uma regra absoluta”, ensinava no livro clássico Jean Lemaire, battonier da corporação parisiense. A confiança, a lealdade e a fidalguia devem constituir “a disposição habitual do advogado para com seus colegas, aos quais facilitará a solução de impedimentos momentâneos que não lhes sejam imputáveis, como ausência, dor, enfermidade e outros semelhantes” (PARRY, 1940, p. 228). Ao lado da “dignidade”, frisou por seu turno o mais respeitado dos monografistas portenhos, a “delicadeza”, a “mútua estima”, a “cortesia”, a “cordialidade”, a “afetuosa tolerância” e a “confraternidade” – esta última vocalizando o liame de companheirismo estribado no “sentimento de solidariedade profissional” – estão na base da atividade profissional correta (PARRY, 1940, tomo II, p. 211, 277, 229 e 231, trad. livre).

O advogado pode fazer da sua missão “a mais nobre de todas as profissões, ou o mais vil de todos os ofícios”. Por isso, prosseguia Couture (1999, p. 11 e 53), ao pregar a tolerância entre os adversos, o advogado deve ser a um só tempo “[...] enérgico, como o requer a defesa, e cortês, como o exige a educação [...]”.

Fiel a tais recomendações, o Código de Ética de 1995 ordenava ao advogado o compromisso da “lhaneza”, substantivo que designa a qualidade de quem seja afável, simples e delicado, atributos esses que, nas petições e nos atuais arrazoados, são progressiva e geometricamente relegados ao ostracismo e lançados às urtigas. O secular data venia é abandonado como algo sem valia e, ainda, se eventualmente utilizado, caracteriza singelo protocolo formal que, conquanto manejado, licencia subsequentes agressões e grosserias. A cordialidade cede lugar ao vocabulário chinfrim, às frases dos botequins, ao vozerio próprio das desinteligências no trânsito e às afirmações comuns nos embriagados coléricos.

As brutalidades antiéticas têm variados e concorrentes nascedouros. A uma, e em primeiríssimo lugar, aquilo que, nessa sede impotentes, os estatutos deontológicos não conseguem suprir: a má educação pessoal e a estupidez relacional que o ambiente familiar não se empenhou em corrigir. A duas, a benevolência com a qual os tribunais corporativos disciplinares encaram as deselegâncias e os vitupérios achavascadamente endereçados aos causídicos contrários. A três, mas com igual gravidade, a renitente leniência dos juízes, monocráticos e colegiados, em sancionar tais abusos ao desdenharem, sob o pálio do “calor do debate”, a sadia providência processual da “riscadura” das expressões contumeliosas, ou a cassação, quando inútil a anterior advertência, da palavra ofensiva de um tribuno. A quatro, e com idêntica influência, o descaso das instituições universitárias e das faculdades quanto ao ensino do escorreito comportamento forense.

Tudo isso, somado e filtrado, conduz ao indigente quadro ético averiguado nas relações intra-advocacia. E um dos mais emblemáticos exemplos dessa realidade vem sendo a egoística postura de certos advogados referentemente aos pleitos de adiamento das sessões de julgamento dos tribunais, naquelas oportunidades em que seja permitida a sustentação oral. Retome-se o mestre Lemaire (1975, p. 372, trad. livre): um advogado não deve peticionar qualquer adiamento “sem que haja oportunamente prevenido o seu adversário visando a evitar-lhe incômodos e perda de tempo”.

No mesmo diapasão, Parry (1940, p. 242) acentuou ser obrigação do advogado “avisar ao colega qualquer suspensão de audiências”. Ainda mais enfático foi o alerta do lusitano Orlando Guedes da Costa (2005, p. 291): “O dever de especial correção e urbanidade impõe ao Advogado que responda às comunicações de colegas e que os informe da sua intenção de faltar a qualquer diligência, a fim de evitar a sua deslocação desnecessária, dever de cortesia do advogado também em relação aos Juízes”.

Ora, assistente assíduo das sessões judicantes do tribunal paulista – o que, objetivando o aprendizado jurídico, faço há meio século –, tenho verificado com imensa tristeza, e não menor irritação, a atitude de alguns insensíveis mandatários que, no limiar do julgamento, muitas vezes na própria data de sua realização, requerem o adiamento pretextando produzir defesa oral, com isso surpreendendo e frustrando os colegas adversos, alguns deles com essa finalidade vindos de longínquas comarcas interioranas e que não receberam, do procurador oponente, a rudimentar delicadeza da prévia comunicação. O espetáculo deprimente que assim se presencia, porque atentatório ao respeito e à basilar cortesia profissional, é mais uma faceta, deplorável faceta, do declínio da ética advocatícia.

Aliás, caso quisessem, também os colegiados judiciários poderiam obstar essa reprovável prática, bastando que inserissem, nos seus regimentos, a obrigatoriedade de que das petições de adiamento, além do fundamento da procrastinação decisória, constasse a prova da ciência expressa do oponente contrário.

O meu querido, saudoso e admirado professor de Ética Advocatícia, Ruy de Azevedo Sodré (1967, p. 337), quando na monumental obra-referência versou a “noção de confraternidade” orientadora do tratamento urbano entre os colegas de profissão, lembrou que, ao adotá-la, “[...] o advogado não é apenas um homem honrado; êle se torna um homem afável e cortês”.

Pessoal e profissionalmente, dessas afabilidade e cortesia sinto grande falta. Ao insistir na valorização da cordialidade profissional, o que propugno não é uma inútil volta ao passado, ou um estéril saudosismo, mas sim o resgate pela classe forense, mirando o presente, dos valores e das virtudes que sustentaram, abnegadamente e a duras penas, a harmônica convivência entre os contrários irmanados, embora em posições antagônicas, por um desiderato uníssono: a aplicação da Justiça ao caso concreto.

Com isso não almejo a prevalência, nos escritos e falas dos advogados, dos leguleios, rapapés e salamaleques próprios aos ambientes acadêmicos e, mais autenticamente, aos casais recém-enamorados. O que busco é a razoabilidade, o bom senso, o meio-termo que, evitando as demasias vernaculares e as redações embrutecidas, possa impedir o féretro da civilidade nos juizados e pretórios.

Para tanto não será preciso chegar ao exagero da autocensura, nem tolher a saudável e leal combatividade que é requisito fundamental do patrocínio. Nem sequer indispensável seria chegar ao extremo de recato como aquele, nos dias de hoje inimaginável, alvitrado pelo eminente Herotides da Silva Lima (1925, p. 120) ao cogitar das relações entre a advocacia e a magistratura:
“Falta a um princípio elementar da ética profissional o advogado que, tendo alguma arguição contra um juiz, deixa de visitá-lo para o prevenir [...]”.

Em suma, o acaso da cordialidade advocatícia é monocórdico fenômeno apenas não enxergado por quantos se mantêm distantes da diuturnidade das lides judiciais e dos colégios arbitrais, ou então pelos que, sem embargo vivenciando-os, carregam uma indomesticável agressividade congênita, ou cedem à raiva e à animosidade que seriam naturais e compreensivas nos seus enfurecidos constituintes, todavia nunca neles mesmos.

Daí a minha decepção em não ter o novo Código de Ética da Advocacia, com a mesma proficiência empregada noutros temas, alguns deles importantes mas de óbvia inferior magnitude – v.g. o pagamento de honorários por meio de cartões de crédito –, sido menos avaro e lacunoso na abordagem das relações intestinas entretidas pelos advogados nos processos ou procedimentos em que atuem. Desperdiçou-se, destarte, preciosa oportunidade, mercê desse esbanjamento, sacrificando-se ainda mais aquilo que, graças à corriqueira majoritária absolvição dos autores dessas abusividades, já era e permanece sendo moribundo e mortiço: a cordialidade forense.

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Bibliografia

ANDRADE, Carlos Drummond de. O Avesso das Coisas. Rio de Janeiro: Record, 1997.

COSTA, Orlando Guedes da. Direito Profissional do Advogado. 3. ed. Porto: Almedina, 2005.

COUTURE, Eduardo Juan. Os Mandamentos do Advogado. Tradução de Ovídio A. Baptista da Silva e Carlos Otávio Athayde. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, Reimpressão.

CUNHA, Mauro. Elogio do Advogado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989.

FERNANDES, Millôr. Millôr Definitivo – A Bíblia do Caos. Porto Alegre: L&PM Editores, 2007.

LEMAIRE, Jean. Les Regles de la Profession d’Avocat et les Usages du Barreau de Paris. Paris: Lib. Générale de Droit et Jurisprudence, 1975.

LIMA, Herotides da Silva. O Ministério da Advocacia. São Paulo: Ed. A Palavra, 1925.

PARRY, Adolfo E. Etica de la Abogacia. Buenos Aires: Editorial Juridica Argentina, 1940.

RODRIGUES, Nelson. Flor de Obsessão. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. SODRÉ, Ruy de Azevedo. O Advogado, seu Estatuto e a Ética Profissional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967.

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*O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, Ano XXXVI, de Abril de 2016, nº 129.

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*Manuel Alceu Affonso Ferreira (Affonso Ferreira Advogados) é membro do Conselho do IASP. Foi conselheiro, Federal e estadual (SP), da OAB, secretário de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo e conselheiro da AASP.

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