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Inconstitucionalidade da resolução STJ/GP 3/16

Há que se reconhecer a ineficácia da resolução, por manifesta inconstitucionalidade, parecendo-nos inevitável que os Tribunais de Justiça venham a suscitar conflitos negativos de competência para conhecerem de tais reclamações.

24/6/2016

Em 8/4/16, foi publicada a resolução STJ/GP 3/16, que “dispõe sobre a competência para processar e julgar as Reclamações destinadas a dirimir divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual ou do Distrito Federal e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça”.

A competência do STJ para preservar a autoridade dos seus julgados por meio de Reclamação tem matriz constitucional, no artigo 105 I, “f” da Carta Magna:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

I - processar e julgar, originariamente:
a) (...)
f) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões;
Grifos nossos)

O alcance do sobredito dispositivo às decisões proferidas pelas Turmas Recursais dos Juizados Especiais Estaduais foi reconhecido pelo STF, por ocasião do julgamento dos Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário nº 571.572-8/BA, como forma de suprir lacuna da Lei 9099/95 quanto a um órgão uniformizador da jurisprudência, ao menos até a criação deste, conforme a ementa a seguir:

“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AUSÊNCIA DE OMISSÃO NO ACÓRDÃO EMBARGADO. JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. APLICAÇÃO ÀS CONTROVÉRSIAS SUBMETIDAS AOS JUIZADOS ESPECIAIS ESTADUAIS. RECLAMAÇÃO PARA O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. CABIMENTO EXCEPCIONAL ENQUANTO NÃO CRIADO, POR LEI FEDERAL, O ÓRGÃO UNIFORMIZADOR.

1. No julgamento do recurso extraordinário interposto pela embargante, o Plenário desta Suprema Corte apreciou satisfatoriamente os pontos por ela questionados, tendo concluído: que constitui questão infraconstitucional a discriminação dos pulsos telefônicos excedentes nas contas telefônicas; que compete à Justiça Estadual a sua apreciação; e que é possível o julgamento da referida matéria no âmbito dos juizados em virtude da ausência de complexidade probatória. Não há, assim, qualquer omissão a ser sanada.

2. Quanto ao pedido de aplicação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, observe-se que aquela egrégia Corte foi incumbida pela Carta Magna da missão de uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional, embora seja inadmissível a interposição de recurso especial contra as decisões proferidas pelas turmas recursais dos juizados especiais.

3. No âmbito federal, a lei 10.259/01 criou a Turma de Uniformização da Jurisprudência, que pode ser acionada quando a decisão da turma recursal contrariar a jurisprudência do STJ. É possível, ainda, a provocação dessa Corte Superior após o julgamento da matéria pela citada Turma de Uniformização.

4. Inexistência de órgão uniformizador no âmbito dos juizados estaduais, circunstância que inviabiliza a aplicação da jurisprudência do STJ. Risco de manutenção de decisões divergentes quanto à interpretação da legislação federal, gerando insegurança jurídica e uma prestação jurisdicional incompleta, em decorrência da inexistência de outro meio eficaz para resolvê-la.

5. Embargos declaratórios acolhidos apenas para declarar o cabimento, em caráter excepcional, da reclamação prevista no art. 105, I, f, da Constituição Federal, para fazer prevalecer, até a criação da turma de uniformização dos juizados especiais estaduais, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça na interpretação da legislação infraconstitucional1.

(Grifos nossos)

Na ocasião, o STJ não tardou em editar a resolução 12/09, publicada em 6/12/09, que dispunha sobre o processamento das reclamações destinadas a dirimir divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a jurisprudência daquela Corte Especial.

Desde então, milhares de Reclamações foram propostas, processadas e julgadas pelo STJ, a despeito de alguns autores terem sustentado a inconstitucionalidade da referida Resolução, por entenderem que, ao editá-la, o Superior Tribunal de Justiça teria legislado sobre matéria processual, cuja competência privativa é da União Federal, a teor do artigo 22 I da Constituição Federal:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;

No entanto, tal entendimento não prevaleceu, pois não se pode dizer que o ato tenha propriamente criado a Reclamação ao STJ (cuja previsão é constitucional, conforme já dito), mas tão somente disciplinado sua aplicabilidade às decisões das Turmas Recursais dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais, na esteira do entendimento da Corte Suprema.

A resolução 12/09 encontrou plena guarida no novo Código de Processo Civil, especificamente no artigo 988 § 1º:

§ 1º A reclamação pode ser proposta perante qualquer tribunal, e seu julgamento compete ao órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir. (Grifos nossos)

Ou seja: quis o legislador infraconstitucional atribuir ao Tribunal cuja autoridade deseja preservar, in casu, ao STJ, a competência para o julgamento das Reclamações contra decisões que violem sua jurisprudência dominante, fazendo coro com a diretriz constitucional, como não podia deixar de ser.

Nesse sentido, merece transcrição o sempre elucidativo ensinamento de Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha:

“Ao STJ compete uniformizar a jurisprudência nacional em matéria de legislação federal. Essa é uma de suas atribuições constitucionais. Se os órgãos dos Juizados Estaduais estão a deixar, sistematicamente, de seguir a orientação ministrada pelo STJ, cabe a reclamação constitucional, a fim de garantir a incolumidade da principal função daquela Corte Superior. E, pela teoria dos poderes implícitos, deve-se conferir ao STJ a atribuição de fazer impor sua autoridade de órgão jurisdicional destinado a uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional”2.

Ainda nas palavras dos sobreditos doutrinadores:

“Reclamação para fazer valer orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, como assinalou o Supremo Tribunal Federal, não nos parece apenas cabível: trata-se de medida extremamente recomendável, principalmente no âmbito dos Juizados Especiais Estaduais, que não podem tornar-se "ilhas" de interpretação do direito federal, ignorando os posicionamentos consolidados do STJ”3.

No entanto, entendendo de forma diversa, o STJ primeiramente revogou a Resolução nº 12/2009 por meio da Emenda Regimental nº 22/2016, publicada em 18/03/16, até que em 08/04/16 sobreveio a Resolução STJ/GP nº 3/2016, contendo a seguinte redação:

Art. 1º Caberá às Câmaras Reunidas ou à Seção Especializada dos Tribunais de Justiça a competência para processar e julgar as Reclamações destinadas a dirimir divergência entre acórdão prolatado por Turma Recursal Estadual e do Distrito Federal e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, consolidada em incidente de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas, em julgamento de recurso especial repetitivo e em enunciados das Súmulas do STJ, bem como para garantir a observância de precedentes.

Art. 2º Aplica-se, no que couber, o disposto nos arts. 988 a 993 do Código de Processo Civil, bem como as regras regimentais locais, quanto ao procedimento da Reclamação.

Art. 3º O disposto nesta resolução não se aplica às reclamações já distribuídas, pendentes de análise no Superior Tribunal de Justiça.

Art. 4º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.
(Grifos nossos).

Salta aos olhos a afronta literal da referida Resolução ao artigo 105 I “f” da Constituição Federal, que expressamente incumbe ao STJ a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões, como também ao artigo 988 § 1º do CPC, pelo qual o julgamento da Reclamação compete ao próprio Tribunal cuja superioridade se deseja garantir.

Além disso, ao pretender que as referidas Reclamações sejam julgadas por autoridade que não a constitucionalmente competente, a Resolução em exame viola o Princípio do Juiz Natural, corolário do Devido Processo Legal, positivados no artigo 5º LIII e LIV da Carta Magna, sucessivamente:

LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

Alexandre Câmara, com a clareza que lhe é peculiar, não deixa dúvidas a tal respeito, ao doutrinar:

“O que a Carta Magna quer assegurar é que os processos tramitem perante juízos cuja competência constitucional é preestabelecida. A Constituição, como se sabe, fixa a competência de diversos órgãos jurisdicionais, como se verifica, por exemplo, nos arts. 102 (competência do Supremo Tribunal Federal), 105 (competência do Superior Tribunal de Justiça), 108 (competência dos Tribunais Regionais Federais), 109 (competência dos juizes federais), além de muitos outros. Tais regras devem ser observadas em todos os processos (...)”4.

Não há dúvidas de que o legislador ordinário não está tratando a criação das turmas unificadoras da jurisprudência dos Juizados Especiais estaduais com as merecidas importância e agilidade, mas salvo melhor juízo, não justifica a edição da Resolução em comento, ao arrepio da Constituição Federal.

Portanto, há que se reconhecer a ineficácia da Resolução STJ/GP nº 3/2016, por manifesta inconstitucionalidade, parecendo-nos inevitável que os Tribunais de Justiça venham a suscitar conflitos negativos de competência para conhecerem de tais Reclamações. A conferir.

__________


1 STF – Plenário – Embargos de Declaração em Recurso Extraordinário nº 571.572-8/BA, rel. Min. Ellen Gracie, j. 26.08.2009.

 

2 DIDIER JR., F.; CUNHA, L.C. Curso de Direito Processual Civil. 11ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2013. 521 p.

 

3 (ibid., p. 525)

4 CÂMARA, A.F. Lições de Direito Processual Civil. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2013. 52 p.

__________

*Eduardo Macedo Leitão é sócio do Siqueira Castro Advogados, coordenador da unidade de Minas Gerais.


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