O presente artigo visa uma breve reflexão a respeito da possibilidade do árbitro, ao solucionar um conflito a ele confiado, fundamentar sua decisão com base em fundamentos não alegados pelas partes.
Inicialmente, importa destacar o artigo 18 da Lei de Arbitragem (lei 9.307, de 23 de setembro de 1996), o qual confere ao árbitro a qualidade de juiz de fato e de direito. Assim, o princípio iura novit curia, isto é, que o juiz conhece a lei, aplica-se não só aos juízes de direito, mas também aos árbitros.
A parte da doutrina favorável à aplicação do referido princípio nos procedimentos arbitrais justifica seu posicionamento no fato de não ser o árbitro adstrito aos fundamentos alegados pelas partes. Nesse sentido entende Carreira, ao afirmar que:
"Quando a arbitragem é de direito, a atividade do árbitro se equipara à atividade do juiz togado, com a única diferença de ser um julgamento convencional, nos limites do que houverem as partes disposto na convenção arbitral. (…) Determinando as regras legais ao juiz que valore o fato de acordo com as normas legais, essa valoração implica numa escolha entre a multiplicidade de normas estabelecidas pelo legislador; escolha que é, a um só tempo, vinculada – porque o juiz não pode escolher norma fora do campo legislativo –, e livre, porque nesse campo ele pode mover-se com inteira liberdade. A fórmula da mihi factum, dabo tibi ius significa que, além da reconstrução (histórica) dos fatos, para o que depende muitas vezes da atividade das partes (onus probandi incubit ei qui dixit), o juiz atua por si mesmo na sua valoração jurídica desses mesmos fatos (iura novit cúria)." (J. E. CARREIRA ALVIM, Comentários à Lei de Arbitragem, Lei 9.307, de 23.9.1996, 2ª edição, Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2004, p. 35).
Em sentido oposto, a parte da doutrina contrária à possibilidade do árbitro utilizar em sua decisão fundamentos distintos daqueles alegados pelas partes, tem como um dos seus principais argumentos a violação do princípio do contraditório, por não ser dada às partes a oportunidade de se manifestarem acerca dos fundamentos alegados na decisão arbitral.
O TJ/SP, em acordão proferido em 7 de novembro de 2013, entendeu pela possibilidade dos árbitros fundamentarem sua decisão com base em argumentos não mencionados pelas partes, vejamos:
"Além disso, no Brasil, não é adotado o processo de tipo fundamentalmente dispositivo, como alertava João Bonumá (Direito Processual Civil, Saraiva, São Paulo, 1946, Vol.2º, p.431), em que o Juiz apenas considerará o que for alegado Pelas partes, prevalecendo o princípio da Livre apreciação e da iniciativa da produção da prova, em que a "capacidade funcional" do Julgador é ampla, sem, porém, ser arbitrária, Sendo os artigos 130, 131 e 262 do CPC expressão de tal realidade (Ovídio A. Baptista Martins e Fábio Luiz Gomes, Teoria Geral do Processo Civil, RT, São Paulo,1997, p.48).
A adoção de fundamentos distintos daqueles esposados pelas partes, portanto, não vicia o julgamento, não se podendo ter como violado o contraditório quando, ao dizer o direito, o julgador aprecia o conjunto de elementos fáticos de forma diferente da proposta e esboça solução consentânea com o ordenamento jurídico, qualificando os fatos de maneira tida como mais adequada e efetiva do que o constante das alegações particularizadas de cada uma das partes.
Está correta a sentença apelada quando invoca o princípio "jura novit cúria (...)". (Apelação 0133123-71.2012.8.26.0100).
O STJ ainda não se manifestou quanto ao acórdão supramencionado, estando atualmente o processo concluso para decisão.
Em direito comparado, importante ressaltar a recente decisão do Tribunal de Apelação de Paris, de 15 de março de 2016, o qual anulou a sentença proferida em arbitragem institucional CCI no caso "De Sutter P. – K., DS2 S.A., et al. v. Republic of Madagascar". O Tribunal justificou sua decisão alegando ter o árbitro utilizado argumentos diferentes daqueles alegados pelas partes e não ter concedido a elas o direito de se manifestarem acerca dos fundamentos utilizados na decisão, violando, assim, o princípio do contraditório.
Esse posicionamento não é, no entanto, o do Tribunal Federal Suíço, o qual decidiu no caso "Tvornica", em 15 de abril de 2015, que o direito ao contraditório refere-se somente aos fatos e que o direito das partes de se manifestarem sobre questões legais da ação é limitado.
Assim, o Tribunal Suíço entendeu que, pela aplicação do princípio iura novit curia, o tribunal arbitral é livre para decidir com base em fundamentos distintos daqueles alegados pelas partes. Ainda, o Tribunal reafirmou que as partes devem ter o direito de se manifestar somente se “o tribunal arbitral considerar que a sua decisão baseia-se em dispositivos legais não discutidos durante o procedimento e os quais as partes não pudessem ter suspeitado serem relevantes”.
Em âmbito nacional, tal divergência não tem mais lugar. Isso porque o Novo Código de Processo Civil de 2015 dispõe em seu artigo 10 que:
"Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício".
Dessa forma, com o advento do Novo Código de Processo Civil, pode-se concluir que pela aplicação do princípio iura novit curia, no Brasil, os árbitros podem sim decidir com base nos fundamentos que julgarem mais apropriados, não estando, assim, adstritos aos fundamentos alegados pelas partes. No entanto, nesses casos, para garantia da eficácia da decisão arbitral, deverá ser dado às partes o direito de se manifestarem sobre os novos argumentos sobre os quais o tribunal arbitral desejar pautar sua decisão, mesmo que isso venha a prolongar e tornar o procedimento arbitral mais custoso.
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Daniela Ghader e Silva é advogada do escritório Chenut Oliveira Santiago Sociedade de Advogados.