Migalhas de Peso

Discussão acerca da cláusula de renovação automática em tempos de crise

Analisa-se como o Judiciário tem entendido a cláusula de renovação automática à luz dos princípios da autonomia da vontade, liberdade contratual e força obrigatória dos contratos.

27/6/2016

I – Contextualização do Tema

A atual crise econômica vivenciada pelo Brasil fez – e ainda faz - com que as empresas repensem o modo de executar as suas atividades, das mais simples às mais complexas, em busca de uma eficiência capaz de as diferenciar dos concorrentes e mantê-las no mercado.

No atual cenário de instabilidade econômica, as metas de redução de custos são agressivas e tem levado as empresas a realizarem auditoria em seus contratos com o objetivo de reavaliar o interesse nas relações comerciais estabelecidas, notadamente considerando o custo-benefício de cada uma delas.

A partir desta análise surge uma questão que tem se tornando cada vez mais frequente nestes tempos de crise: rediscussões contratuais no âmbito do judiciário que visam anular/revisar cláusulas livremente estipuladas ou até mesmo rescindir contratos em vigência para atingir a desejada redução de custos.

Dentro da abordagem ora tratada, o presente artigo pretende analisar a cláusula de renovação automática do contrato com prazo de aviso prévio, que reiteradamente tem sido levada para apreciação do Poder Judiciário.

A cláusula de renovação automática é comumente prevista em contratos de execução continuada e ordinariamente reveste-se de caráter de imprescindibilidade especialmente quando o contrato contempla serviço ou fornecimento essencial às atividades do contratante. Em casos em que tais, a referida cláusula tem o condão de proteger ambas as partes da futura extinção do vínculo, permitindo ao contratante buscar, em tempo hábil, novo parceiro para garantir a continuidade do objeto contratual, sob pena de colocar em risco a própria atividade desenvolvida e ao contratado programar sua demanda e logística.

Assim, observa-se a existência de referida cláusula principalmente em contratos de compra e venda, fornecimento de produtos, locação/comodato e prestação de serviços, tendo como objetivo primordial garantir a estabilidade das obrigações assumidas pelas partes como instrumento da preservação da função social do contrato.

Neste contexto, passa-se a analisar como o Poder Judiciário tem entendido a cláusula de renovação automática à luz dos princípios da autonomia da vontade, liberdade contratual e força obrigatória dos contratos.

II – Da Validade da Cláusula de Renovação Automática

A autonomia da vontade, a liberdade contratual e a força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) constituem princípios basilares que regem as relações privadas e estabelecem que as partes podem escolher livremente com quem contratar e as cláusulas contratuais que determinarão os parâmetros nos quais o vínculo será pautado.

Uma vez pactuadas as cláusulas - sendo o contrato válido e eficaz – as partes têm o dever de cumpri-las em nome da segurança jurídica e da intangibilidade do contrato, eis que o acordo de vontades faz lei entre as partes.

Se por um lado as partes são obrigadas a cumprir o contrato nos termos firmados, por outro as partes têm a liberdade de contratar (ou a não contratar) com quem bem entenderem e é neste contexto de aparente conflito de princípios que paira a validade/abusividade da cláusula de renovação automática do contrato com discussões frequentes no Poder Judiciário acerca do tema.

Sabe-se que no ordenamento jurídico pátrio em casos de colisão de princípios caberá ao intérprete da lei – e em última análise ao judiciário ou ao árbitro – definir o princípio que prevalecerá no caso concreto, não obstante ambos continuem válidos e coexistindo. Nesse sentido, os ensinamentos de Robert Alexy (apud ROTHENBURG, 1999, p. 32)1:

“Já quando princípios colidem, um deles tem que ceder ante o outro. Porém, isto não significa declarar inválido o princípio afastado nem que o princípio afastado tenha que se introduzir uma cláusula de exceção. O que sucede, mais exatamente, é que, sob certas circunstâncias, a questão da precedência pode ser solucionada de maneira inversa. E isto que se quer dizer, quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm diferente peso e que prevalece o princípio com maior peso. Os conflitos de regras resolvem-se na dimensão de validade; a colisão de princípios – como só podem entrar em colisão princípios válidos – tem lugar para ele da dimensão de validade, na dimensão de peso”.

No caso do conflito suscitado (força obrigatória dos contratos x liberdade de contratar), o que se observa é que o princípio da função social dos contratos (art. 421 do Código Civil) é utilizado como elemento solucionador do problema, notadamente nos casos em que não há má-fé na contratação, orientando o Poder Judiciário na decisão de um caso concreto.

A questão da validade da cláusula de renovação automática de fato é complexa, pois, se por um lado a empresa em crise pretende a proteção do Judiciário e se apega ao fato de que necessita da revisão/rescisão contratual para continuar a exercer suas atividades, não se pode desguarnecer o outro polo que se programou para dar cumprimento ao contrato - especialmente em um cenário em que a crise afeta a ambas as partes, como ocorre na atualidade.

Na prática, a existência da cláusula de renovação automática se justifica porque tanto o contratado necessita de mecanismo contratual que o possibilite planejar suas atividades de acordo com a projeção de demanda e capacidade de atendimento ou estoque, quanto o contratante precisa se assegurar de que sua demanda será suprida e não haverá interrupção inesperada do fornecimento de produtos/cessão de equipamentos/prestação de serviços de maneira imotivada.

Desta forma, ao se considerar as especificidades da cláusula de renovação automática a jurisprudência pátria majoritária tem reiteradamente endossado sua validade considerando, especialmente, o fato que a inexistência de tal previsão acaba por trazer instabilidade a ambas as partes.

Inclusive, verifica-se que o STJ compactua com referido entendimento e recentemente manteve decisão que considerou válida a cláusula de renovação automática, conforme se infere dos seguintes trechos do acórdão:

“De outra banda, conforme sustentado na sentença, "as cláusulas apontadas pela autora como abusivas visaram, tão somente, oferecer segurança contratual para ambos os contratantes, no tocante tanto à duração do contrato de fornecimento de gases quanto das quantidades mínimas a serem disponibilidades". Ainda, "Na verdade, verifica-se que as cláusulas pactuadas entre as partes que estabeleceram prazo de validade do contrato, renovação automática - caso nenhuma das partes tenha entendido pela sua descontinuidade - e fornecimento mensal mínimo de gases, embora não tenham sido totalmente favoráveis à parte autora, acabaram por proporcionar à parte autora um preço mais vantajoso na aquisição dos gases e, por via de consequência, um preço final mais vantajoso e um lucro maior na comercialização dos extintores, inexistindo, assim, qualquer abusividade nas cláusulas existentes no contrato havido entre as partes". (e-STJ fls. 338/342) (...). Em face do exposto, nego provimento ao agravo. Publique-se. Intimem-se. Brasília (DF), 22 de maio de 2015. MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI Relatora (STJ - AREsp: 649641 RS 2015/0002098-0, Relator: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Publicação: DJ 29/05/2015)

III – Conclusão

Pelo exposto, conclui-se que o posicionamento jurisprudencial é no sentido de que não se configura abusiva a cláusula de renovação automática, já que ela protege ambas as partes e visa preservar a função social do contrato, conferindo estabilidade às obrigações.

______________

1 ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre. 1999.

2 Ação de despejo por denúncia vazia. Sentença de procedência. Cláusula contratual na qual ajustada a vigência da locação por cinco anos, de 1º/03/2009 a 28/02/2014, automaticamente prorrogada pelo mesmo período, salvo disposição contrária expressa denunciada por escrito e no prazo de 210 dias do seu termo final. Renovação automática ocorrida em 1º/03/14. Notificação com expresso interesse de denunciar a locação datada de 04/04/14. Impossibilidade. Anteriores comunicações datadas de 17/10/13 e 13/01/14 que somente se referiam ao interesse de renegociar valores. Contrato atualmente vigente por prazo determinado. Denúncia vazia descabida. Improcedência do pedido. Apelo provido. (TJSP - Relator(a): Soares Levada; Comarca: Sorocaba; Órgão julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 01/06/2016; Data de registro: 02/06/2016)

EMBARGOS DO DEVEDOR – EXECUÇÃO - CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO – TÍTULO EXECUTIVO LÍQUIDO, CERTO E EXIGÍVEL – CLÁUSULA DE RENOVAÇÃO AUTOMÁTICA – VALIDADE – UTILIZAÇÃO DO CRÉDITO – CONCORDÂNCIA COM AS CONDIÇÕES DE RENOVAÇÃO – JUROS – CAPITALIZAÇÃO EXPRESSAMENTE PACTUADA – VALIDADE – SÚMULA 539, STJ – EMBARGOS IMPROCEDENTES - APELAÇÃO PROVIDA. (TJSP - Relator(a): Matheus Fontes; Comarca: São José do Rio Preto; Órgão julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 28/01/2016; Data de registro: 14/02/2016)

______________

*Paola Karina Ladeira Bernardes é sócia do escritório Chenut Oliveira Santiago Sociedade de Advogados, responsável pelo departamento de contencioso empresarial e cível. Graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais e especialista em direito de empresa pela PUC Minas.




*Laura de Almeida Machado é advogada do escritório Chenut Oliveira Santiago Sociedade de Advogados, integrante do departamento de contencioso empresarial e cível. Graduada pela Universidade Mineira de Educação e Cultura e especialista em direito empresarial pela FGV.

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