Migalhas de Peso

Para tão longo amor, tão curta a vida

Dr. Lírio e D. Acácia nos deram a opção de sorrir ou de chorar. Mal sabiam que era possível escolher as duas, já que chorei de alegria por saber que um dia um amor como este foi vivido. Que foram felizes independente das tristezas. E que nada superava um grande e verdadeiro amor. Nem mesmo a morte.

10/6/2016

São Francisco de Assis nunca foi associado ao amor. Os apaixonados sempre preferiram se devotar a outro santo, o Antonio de Pádua (ou de Lisboa, como preferirem). Mas foi ao passo do Largo do primeiro que temos o personagem da romântica história de hoje.

Sim, Migalheiros e Migalheiras: é junho, mês dos enamorados! E, dali das Arcadas, como saíram românticos! E não me refiro apenas a Aluísio Azevedo e Lygia Fagundes Telles. Em 1969 colou grau o jovem Lírio*, que, apesar do renome de sua faculdade, não chegou muito a advogar.

Busque Amor, novas artes, novo engenho1

Sua especialidade mesmo era amar. Foi assim que se encantou por dona Acácia* e, como de costume, a cortejou, namorou e com ela se casou. Tiveram filhos, tiveram netos.

Maior a levo eu de ser vencido

Se o Cravo brigou com a Rosa, por que a dona Acácia e o Doutor Lírio não brigariam? Brigavam, claro. Mas faziam as pazes. De anormal nada tinham. Mas nunca foram um casal qualquer.

O desejo que se estende,
Ao menos se concede,
Sobre vós pede e pretende
Como o doente que pede

A bela dona Acácia recebeu o resultado que ninguém quer receber. Tinha câncer. Lutou, venceu e passou a se dedicar como voluntária à causa. Até que, passados mais uns anos, outro comunicado: mais um câncer - e este veio para valer. Ela continuou a trabalhar, a amar e, o inesperado, a se preparar. Preparar, no caso, era estudar.

A Faculdade Psicologia da Universidade de São Paulo, por meio de seu programa Universidade Aberta à Terceira Idade, recebeu uma nova acadêmica. Lá estava dona Acácia, cursando Psicologia da Morte. Depois, ganhou um colega, o doutor Lírio.

E assim aprenderam.
Transforma-se o amor na cousa amada

Ninguém sabe o que ali aprenderam. Se foram inspirados por Tristão e Isolada ou Abelardo e Heloísa. O que sabermos é que decidiram que o tempo não seria empecilho e, independente da data, queriam ser enterrados juntos. Aos 69 anos, lá se foi a dona Acácia. Era 2003. O funeral, respeituoso e afeituoso, teve a presença do doutor Lírio.

Em 2011, chegou a hora do doutor Lírio. Antes disso, porém, ele fez um desenho e deixou aos seus o que ele e a amada esposa decidiram como epitáfio muitos anos antes:

"Você pode chorar por nós
Ou pode sorrir por nós
Pois tivemos uma longa vida juntas
E compartilhamos um grande amor"

No mundo quis o Tempo que se achasse
O bem que por acerto ou por sorte vinha;

Esta singela escriba aprendeu com o rei Salomão que "melhor é ir à casa em que há luto do que ir à casa aonde há banquete; porque naquela se vê o fim de todos os homens e os vivos o aplicam ao seu coração” (Eclesiastes, 7:2) e por isso, em uma manhã fria de maio, fui ao funeral da sogra de uma amiga do Mais Mulheres do Direito. No caminho para a cerimônia, me deparei com a mensagem.

Doutor Lírio e dona Acácia nos deram a opção de sorrir ou de chorar. Mal sabiam eles que era possível escolher as duas já que chorei de alegria pelo fato de saber que um dia um amor como este foi vivido. Que foram felizes independente das tristezas. E que nada superava um grande e verdadeiro amor. Nem mesmo a morte.

Conversei com uma das filhas do casal, que confirmou o que senti ao vê-los. Ela estava impressionada, pois era a primeira vez que alguém se interessava desta forma pela família. Depois, pela forma como “acertei” como eles eram: um casal que muito se respeitava. E que, mesmo após a morte, continuam nos dando grandes lições de vida.

Por respeito à família, troquei o nome deles. Escolhi o de flores pois era isso que eram. É isso que são: quem lê o que li, sente a doce alegria que só as flores são capazes de nos trazer. Não é com um toque de mão que conhecemos uma pessoa. Como bem escreveu Camões, o Tempo teve o que queria: que nos encontrasse-mos, doutor Lírio, dona Acácia e eu. Não posso dizer que sou amiga do casal. Mas que conheci que o amor tudo ultrapassa, inclusive a morte, ah, isso posso dizer que eles me ensinaram.

“Sete Anos de Pastor Jacó” sempre foi meu poema favorito do poeta lusitano. Graças ao doutor Lírio e dona Acácia, finalmente pude entender o que ele quis dizer com meu trecho escolhido para este texto:

Para tão longo amor, tão curta a vida.

E que vida, meus caros e minhas caras! Que vida!

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1 Todos os intertítulos são extraídos de poemas de Camões.
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*

Ivy Farias é jornalista e estudante de Direito. Militante dos Direitos Humanos e dos Animais e co-fundadora do Movimento Mais Mulheres no Direito.


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