O princípio da individualização da pena está expresso no art. 5º, XLVI, da CF, nos seguintes termos: “a lei regulará a individualização da pena...”.
Cabe ao Poder Legislativo Federal proceder à individualização formal da pena, e aos magistrados é conferida a individualização diante do caso concreto, vale dizer: efetivar a denominada individualização judicial da pena.
No caminhar individualizador, quando o magistrado proferir condenação e fixar pena privativa de liberdade deverá verificar se na hipótese se revela cabível a substituição desta por restritivas de direitos.
Nos precisos termos do art. 43 do Código Penal, as penas restritivas de direitos são: 1). prestação pecuniária; 2). perda de bens e valores; 3). prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas; 4). interdição temporária de direitos; e 5). limitação de fim de semana.
O art. 44 do Código Penal estabelece balizas para a aplicação das penas restritivas de direitos, e de seu § 2º retiramos que:
1). Na condenação em que se imponha pena privativa de liberdade igual ou inferior a um ano, esta poderá ser substituída por uma pena de multa, ou por uma pena restritiva de direito (uma ou outra; alternativamente), conforme se revelar adequada e proporcional na hipótese.
2). Na condenação em que se imponha pena privativa de liberdade superior a um ano, esta poderá ser substituída por uma pena restritiva de direito e multa, ou por duas restritivas de direitos (sempre cumulativas).
Presentes os requisitos legais, em qualquer das situações tratadas, a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos traduz direito subjetivo do réu, e, portanto, poder-dever conferido ao julgador. Não se trata de simples discricionariedade outorgada ao magistrado.
O art. 2º da lei 13.281/16, entre outras providências, acrescentou dispositivo novo ao Código de Trânsito Brasileiro, nos seguintes termos:
Art. 312-A. Para os crimes relacionados nos arts. 302 a 312 deste Código, nas situações em que o juiz aplicar a substituição de pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, esta deverá ser de prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas, em uma das seguintes atividades:
I - trabalho, aos fins de semana, em equipes de resgate dos corpos de bombeiros e em outras unidades móveis especializadas no atendimento a vítimas de trânsito;
II - trabalho em unidades de pronto-socorro de hospitais da rede pública que recebem vítimas de acidente de trânsito e politraumatizados;
III - trabalho em clínicas ou instituições especializadas na recuperação de acidentados de trânsito;
IV - outras atividades relacionadas ao resgate, atendimento e recuperação de vítimas de acidentes de trânsito.
Em linhas gerais, a regra nova determina que a pena restritiva de direito aplicada em substituição à privativa de liberdade seja sempre pena de prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas (CP, art. 43, IV), e fixa o tipo de atividade a ser desempenhada pelo condenado, o que inegavelmente restringe os contornos da individualização judicial, mas não enseja declaração de inconstitucionalidade, já que pensar de forma contrária implicaria entender igualmente inconstitucional toda e qualquer cominação qualitativa de pena.
A intenção do legislador é clara – fazer com que o apenado cumpra a reprimenda em permanente contato com pessoas acidentadas, vítimas do trânsito, de modo a sensibilizá-lo em relação ao grave problema –, mas a redação do tipo padece de injustificável equívoco.
De início cumpre observar que, nos moldes do art. 312-A, se a pena privativa de liberdade for igual ou inferior a um ano, caso venha a ser substituída por uma restritiva de direito, esta deverá ser cumprida em conformidade com as atividades listadas.
Igual raciocínio se impõe se a privativa de liberdade for superior a um ano e então substituída por uma restritiva de direito e multa.
Até aqui nenhum problema aparente.
Sabido que nos contornos do art. 44, § 2º, do Código Penal, se a condenação resultar na imposição de pena privativa de liberdade superior a um ano o juiz também poderá substituí-la por duas restritivas de direitos, surge a seguinte indagação: ainda é possível assim proceder em face de condenação por crime tipificado no Código de Trânsito?
Entendemos que sim.
É verdade que o art. 312-A se refere à pena restritiva de direito no singular (esta deverá...), e com isso parece sugerir que em qualquer caso será apenas uma restritiva aplicada em substituição à privativa de liberdade, mas tal compreensão, lastreada em insuficiente interpretação gramatical (na hipótese), resulta em indevida violação ao disposto no art. 44, § 2º, do Código Penal.
A melhor interpretação leva à conclusão no sentido de que permanece possível, na condenação por crime tipificado no Código de Trânsito em que seja fixada pena privativa de liberdade superior a um ano, a substituição desta por duas restritivas de direitos.
É importante verificar que o art. 312-A se refere à forma de cumprimento da pena restritiva de direito – prestação de serviço à comunidade ou entidades públicas – e diz respeito às atividades que devem ser desempenhadas. No que pertine à substituição, sob o enfoque tratado – pena privativa de liberdade superior a um ano – os parâmetros de individualização continuam fixados no § 2º do art. 44 do Codex.
Para uma primeira conclusão, combinadas as regras acima invocadas, é força convir que, nas condenações por crimes tipificados no Código de Trânsito, em que se imponha pena privativa de liberdade superior a um ano:
1) Poderá o julgador substituir a pena privativa de liberdade por uma restritiva de direito, a ser cumprida na forma do art. 312-A, e multa, cumulativamente;
2) Poderá o julgador substituir a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos, sendo que uma delas deverá ser cumprida com atenção ao que determina o art. 312-A.
Mas o art. 312-A também remete a outras reflexões.
Frente ao caso concreto, na individualização da pena de prestação de serviços à comunidade ou entidades públicas o julgador deve levar em conta as tarefas ou atividades que serão desempenhadas e, para tanto, dentre outras norteadoras, aquilatar as habilidades profissionais do sentenciado, seu nível sociocultural, limitações de cognição etc., de modo a permitir, inclusive, melhor eficácia execucional. Não é por razão diversa que o art. 46, § 3º, do Código Penal, determina que as tarefas correspondentes à pena de prestação de serviço à comunidade ou a entidade pública serão atribuídas conforme as aptidões do condenado.
Na individualização da pena de prestação de serviços é imperioso que se observe as diretrizes apontadas (art. 5º, XLVI, da CF. c.c. o art. 46, § 3º, do CP).
É sem sentido lógico imaginar, por exemplo, que em condenação pela prática do crime tipificado no art. 302 do Código de Trânsito, sendo o réu pessoa absolutamente rústica; desprovida de qualquer habilidade profissional específica; com alguma dificuldade motora; sem qualquer aptidão ou capacidade de desenvolver atividades cognitivas, ou resida em área rural distante de qualquer centro urbano, a ele se imponha pena de prestação de serviço a ser cumprida mediante o exercício de tarefa listada no art. 312-A.
Impende considerar, ainda, que não raras vezes o cumprimento da pena restritiva, em qualquer das formas indicadas no art. 312-A, será absolutamente impossível em razão da inexistência de estrutura ou local adequado para tal tipo de prestação, ou como consequência da impossibilidade de acolhimento e inserção do apenado na estrutura existente, e é certo que não se revela juridicamente possível obrigar determinada entidade a receber e incluir qualquer apenado em seus quadros laborais.
Por tais razões, concluímos que o art. 312-A, caput, deveria estar assim redigido: “Para os crimes relacionados nos arts. 302 a 312 deste Código, nas situações em que o juiz aplicar a substituição de pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, a prestação de serviço à comunidade ou a entidade pública eventualmente fixada deverá ser cumprida, preferencialmente, em uma das seguintes atividades:”.
De qualquer modo, a deficiente redação do dispositivo em comento autoriza seja o mesmo interpretado conforme a sugestão de redação que aqui apresentamos, e isso decorre de sua necessária adequação ao sistema normativo vigente, tal como analisado.
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*Renato Marcão é membro do MP/SP, mestre em Direito Político e Econômico. Doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.