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O RERCT e os esclarecimentos fornecidos pela Receita Federal do Brasil: perdeu-se a oportunidade de dar respostas claras e maior segurança aos contribuintes

O Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária pode se tornar um verdadeiro fracasso se não for emitida uma regulamentação clara por parte da Receita Federal do Brasil.

3/6/2016

O Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (também conhecido como “RERCT” ou simplesmente “anistia”) pode se tornar um verdadeiro fracasso se não for emitida uma regulamentação clara por parte da Receita Federal do Brasil.

Em 23/5/16, as autoridades fiscais tentaram esclarecer alguns pontos controversos do regime, editando uma nova versão do "Manual de Perguntas e Respostas" que trata da anistia. O Manual, porém, deixou contribuintes, operadores do direito e agentes do mercado ainda mais inseguros sobre a regularização.

Não há dúvidas de que a edição de novos esclarecimentos por parte da Receita Federal do Brasil, na forma de resposta a casos práticos, seja o melhor caminho para se resolver as lacunas interpretativas deixadas pela legislação que trata da anistia. Tais esclarecimentos, porém, devem ir de encontro com as disposições da Lei 13.254/16, complementando-a sem alterá-la.

No presente artigo, comentaremos os três pontos mais relevantes do Manual de Perguntas e Respostas divulgado pela Receita Federal do Brasil, examinando-os à luz da legislação em vigor e das soluções encontradas pelo Governo italiano ao lidar com questões similares quando da implementação do regime italiano de anistia fiscal.

O valor presumido dos ativos no caso de ausência de saldo ou patrimônio não mais existente em 31/12/14

Um dos aspectos mais polêmicos do regime se refere à regularização de ativos inexistentes ou com saldo zero em 31/12/14. As autoridades fiscais brasileiras trataram do assunto nos itens 26 e 39 do Manual.

A resposta ao item 26 diz que os bens para os quais não haja mais saldo, propriedade, posse ou titularidade em 31/12/14 devem ser declarados pelo seu valor presumido em 31/12/14, conforme apontado por documento idôneo, fazendo referência ao item 25 para maiores esclarecimentos sobre qual seria o documento idôneo e o valor a ser declarado para cada tipo de ativo.

Uma análise literal do artigo 25, leva ao entendimento de que ativos financeiros (tais como depósitos bancários, investimentos em fundos, obrigações, ações, etc.) deveriam ser declarados pelo saldo existente em 31/12/14, conforme documento disponibilizado pela instituição financeira custodiante. Portanto, na ausência de saldo, presume-se que os bens seriam declarados por valor zero, sem incidência de imposto ou multa de regularização (já que a base de cálculo do imposto e da multa seria zero), devendo o contribuinte unicamente descrever as condutas ilícitas praticadas para que lhe fosse garantida a anistia. Tal resposta estaria em linha com o critério estabelecido pela Lei 13.254/16, que pede ao contribuinte uma “fotografia” de sua situação patrimonial em 31/12/14, e exige o pagamento do imposto e multa de regularização sobre os valores existentes naquela data.

O uso de 31/12/14 como data-base desse "retrato patrimonial" pode ser vantajoso ou desvantajoso para o contribuinte, dependendo do caso. Para os contribuintes que tiveram seu patrimônio consumido antes de 31/12/14, o critério estabelecido na lei mostra-se sem dúvida vantajoso. Pensemos, porém, nos contribuintes que investiam em ações, e que sofreram uma forte redução de seu patrimônio em 2015 e 2016, devido às oscilações do mercado financeiro. Tais contribuintes acabarão por pagar tributo sobre um valor muito maior que aquele existente hoje. Em alguns casos o Fisco perde, mas em outros ganha. Esse foi o critério adotado pelo legislador ao criar a anistia. E essa era a linha seguida na resposta aos itens 25 e 26.

Mas ao editar a nova versão do Manual de Perguntas e Respostas, inserindo o item 39, o Fisco afastou-se dessa interpretação.

Com base na resposta à pergunta 39, não basta que o contribuinte faça uma análise de seu patrimônio em 31/12/14. Ele deve fazer uma análise retrospectiva, identificando valores já consumidos, independentemente do valor remanescente em 31/12/14. Não restou claro, porém, a partir de qual data deve ser feita essa análise, nem quais seriam os valores sujeitos a tributação.

O contribuinte deveria obter extratos bancários de quantos anos para comprovar sua declaração? Mas e o critério da fotografia patrimonial em 31/12/14? Foi esquecido?

De repente, com a edição do novo Manual de Perguntas e Respostas, a fotografia parece estar se tornando um filme. Um filme editado, parcial. Estaria o Fisco abandonando a situação patrimonial em 31/12/14 como critério para regularização e adotando um novo critério, o da recomposição dos gastos e fluxos de renda para concessão de anistia? Se é assim, por que não permitir que o contribuinte seja tributado apenas sobre seus reais rendimentos? Por que não permitir a tomada de créditos e deduções? Por que não disciplinar aqueles casos em que os ativos do contribuinte perderam valor?

A intenção do legislador brasileiro não era reconstruir o fluxo de renda dos contribuintes nos últimos anos. O legislador tentou, na verdade, simplificar a regularização, estabelecendo uma data-base (31/12/14) para que o patrimônio do contribuinte fosse mapeado. E essa foi uma escolha voluntária, pensada. Outros países que criaram um regime de anistia adotaram um caminho oposto. Na Itália, por exemplo, o legislador exigiu que o contribuinte identificasse cada transação realizada nos últimos 5 amos, tributando-as de acordo com as alíquotas ordinárias aplicáveis na legislação fiscal. Se quisesse seguir o mesmo caminho, o legislador brasileiro o teria feito expressamente.
Com seu entendimento, o Fisco brasileiro posiciona-se contra a vontade do legislador nacional,  deixando mais inseguros os contribuintes que pretendem regularizar sua situação e aproveitar os benefícios da lei.

Regularização dos investimentos detidos através de trusts

De acordo com o item 34 do Manual de Perguntas e Respostas, tanto o settlor como o beneficiário deveriam regularizar investimentos detidos através de um trust no exterior. Muitas vezes, o sujeito que criou o trust no exterior ainda aparece como beneficiário do patrimônio gerido pelo trustee. Nesses casos, a solução é simples. Não há dúvidas de que a declaração de regularização deve ser feita pelo contribuinte que criou a estrutura no exterior e continua a aparecer como beneficiário. Mas o que ocorre quando o settlor e o beneficiário não são a mesma pessoa?

A resposta do Fisco dá a entender que deveria ocorrer uma dupla regularização (e uma dupla tributação) do patrimônio passado ao trustee. Tanto o settlor como o beneficiário deveriam aderir ao programa para obter os benefícios garantidos pela lei. Em tais condições, o regime lembra muito mais um programa de confisco que um programa de anistia, já que 60% do patrimônio detido no exterior acabaria nas mãos do Fisco.

A resposta ao item 35 torna ainda mais difícil a regularização dos trusts. Ali o Fisco deixa claro que mesmo contribuintes que desconheçam ser beneficiários de trusts no exterior poderão vir a ser responsabilizados no futuro caso não façam a adesão ao programa e o Fisco venha a descobrir a existência desse patrimônio no exterior. Quais seriam os motivos para sancionar um sujeito que não cometeu qualquer conduta ilícita, que não criou nenhuma estrutura no exterior e desconhece a existência desse patrimônio? Apenas os beneficiários que receberam rendimentos desse patrimônio no exterior e conheciam a sua existência poderiam ser responsabilizados pela falta de declaração.

É preciso lembrar que o trust nada mais é que um contrato, através do qual o settlor dá a um terceiro (trustee) a gestão de seu patrimônio, exigindo que tais bens sejam geridos em benefício de alguém. O Fisco questiona os contratos de trust por vê-los como mero artifício para que uma terceira pessoa seja interposta entre um patrimônio não declarado e o seu verdadeiro dono. Se isso é verdade, a única pessoa que pode ser responsabilizada pelo suposto artifício é o settlor, ou seja, a pessoa que instituiu o trust e tentou, na opinião do Fisco, distanciar-se desse patrimônio. O Fisco deveria concentrar-se no sujeito que cometeu os atos considerados ilícitos, deixando de lado terceiros que sequer tinham conhecimento sobre o contrato.

Foi essa a linha seguida pelo legislador italiano ao lidar com trusts, fundações e offshores. Tais estruturas eram vistas como meros instrumentos ou figuras interpostas entre o patrimônio não declarado e o seu verdadeiro dono. O foco era na pessoa que escondeu o patrimônio e não na figura utilizada, nas particularidades da estrutura ou terceiros envolvidos.

O Fisco brasileiro deveria seguir o mesmo caminho.

Contas correntes: como tratar a figura do procurador?

Embora a regulamentação do programa deixe claro como tratar contas detidas por mais de um titular, ainda restam dúvidas sobre como deve ser tratada a figura do procurador. Do ponto de vista jurídico, o procurador não se qualifica nem como beneficiário nem como titular de uma conta corrente, muito embora detenha poderes para movimentá-la, agindo por conta e ordem do beneficiário efetivo. Ao que parece, por não ser titular nem beneficiário de uma conta, o procurador não precisaria fazer qualquer declaração no âmbito do RERCT. Todavia, seria interessante um esclarecimento do Fisco sobre o tratamento dessa figura, esclarecendo que não se trata nem de um condômino nem de um beneficiário efetivo (ainda que haja poderes de dispor dos ativos), tendo em vista que o procurador age base em um mandato. Na normativa italiana, os procuradores não tinham qualquer obrigação de fazer declarações em nome próprio ou participar da anistia. Cabia ao beneficiário efetivo fazer as declarações, e o nome dos procuradores era apenas mencionado na declaração desses beneficiários, como uma informação a mais que permitia ao Fisco identificar exatamente quem eram as pessoas com poderes para movimentar os ativos não declarados.

Conclusões

É importante que o Fisco e o Governo Federal adotem uma posição clara sobre a regularização, o mais rápido possível. As incertezas normativas e as explicações desencontradas dadas pelo Fisco estão deixando contribuintes, advogados e agentes do mercado inseguros quanto ao regime, atrasando a adesão de uma série de pessoas que gostariam de participar da regularização.

Nesse momento, seria necessário dar ao contribuinte as garantias de que ele precisa para se auto-denunciar e acertar suas contas com o Poder Público. O prazo de 5 anos para que o Fisco  venha a rever a declaração do contribuinte, examinar seu patrimônio e pedir esclarecimentos é extremamente longo e mostra-se, por si só, um peso para o contribuinte. Nos programas de anistia estrangeiros, tal como o programa italiano, o Fisco mantinha-se aberto a esclarecer dúvidas sobre casos práticos, não hesitando em oferecer soluções concretas que pudessem assegurar os contribuintes e premiar sua boa-fé. Além disso, foram estabelecidos prazos mais breves para que o Fisco local validasse a adesão ao programa.

Programas de anistia não podem ser regulamentados e gerenciados com meias-palavras e declarações imprecisas. Por serem programas temporários, de caráter extraordinário, com implicações na esfera penal, eles devem ser implementados com maior transparência e clareza. O RERCT não é apenas uma oportunidade para que os contribuintes venham a regularizar seu patrimônio com um anistia penal. 'Trata-se também de uma oportunidade única para que o Fisco venha a re-equilibrar o seu caixa e passe a tributar uma riqueza que até então permanecia oculta. Garantir a adesão dos contribuintes é fundamental. A Receita Federal do Brasil não pode se esquecer disso.

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*Carlo Lorusso é consultor para questões de impostos e tributos internacionais do escritório Tess Advogados. Especialista em Direito Tributário Internacional.

 

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