Mecanismo de desenvolvimento limpo e questões florestais
Giovanni Barontini*
Entre as questões a serem dirimidas pela próxima Conferência das Partes à Convenção Quadro sobre Mudanças Climáticas, que ocorrerá na cidade italiana de Milão, em dezembro deste ano, sobressai o debate acerca da definitiva elegibilidade dos projetos de florestamento e reflorestamento, para o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), previsto pelo Protocolo de Kyoto.
Trata-se de harmonizar, em última análise, uma série de visões divergentes, com suas delicadas implicações de cunho estratégico, político e diplomático, sobre a efetiva contribuição dos projetos florestais ao abrandamento dos fenômenos do aquecimento global e da mudança climática, para geração de créditos de natureza compensatória, que poderão ser transacionados junto aos países que, ao integrarem o Anexo I do Protocolo de Kyoto, assumiram compromissos vinculantes de redução das suas emissões de gases de efeito estufa, tal como o dióxido de carbono (CO2).
No Brasil, que pertence ao leque de países com maior potencial de implementação de projetos florestais, acendeu-se um interessante debate sobre a possível inserção de projetos de reconstituição das matas ciliares e da reserva legal, dentro do contexto do MDL, frente à existência de uma obrigatoriedade, sancionada por lei, que privaria tais projetos dos necessários requisitos de adicionalidade e voluntariedade, claramente exigidos pelo Protocolo de Kyoto.
De fato, segundo uma primeira leitura, a presença de uma normativa nacional, que obriga à preservação das matas ciliares ou cria o instituto da reserva legal, viria incidir negativamente sobre a “espontaneidade” dos projetos de florestamento, que visassem se beneficiar do MDL, impedindo a prefiguração de um cenário diferente daquele imaginável, na ausência do mesmo projeto.
Esta argumentação, que já seria questionável na linha dos princípios, pois a existência de um incentivo ao cumprimento da lei (a geração de “créditos de carbono”) não esvazia de significado, certamente, sua pontual e correta observância, parece não resistir, de toda forma, a pelo menos três considerações.
A primeira delas alimenta-se na teoria geral do Direito, sendo claro que várias correntes doutrinárias identificam uma das características proeminentes da lei na sua “eficácia”. Isto significa que, na hipótese em que seja possível demonstrar a total ineficácia do dispositivo legal, por carência, por exemplo, como no caso da legislação tocante às matas ciliares, de qualquer regulamentação que permita sua efetiva observância ou discipline sua fiscalização, haveria defeito de um dos elementos constitutivos da lei (sua “eficácia”), sendo possível defender sua conseqüente, prática “inexistência”.
A ineficácia, por outro lado, poderá decorrer também, mais simplesmente, de uma insuficiente fiscalização e cobrança, por parte dos órgãos prepostos, evidenciando, como no âmbito da reserva legal, o caráter “adicional” e “voluntário” de projetos, que, visando participar do mercado de MDL, implementem iniciativas de florestamento, que não seriam provavelmente exigidas, nem fiscalizadas, nem tampouco cobradas, pelas autoridades competentes.
A objeção, baseada no caráter absolutamente “patológico” da inobservância da lei, não parece possuir o devido respaldo: inúmeros são os exemplos, no âmbito nacional e internacional, de dispositivos legais que, por carecerem de suficiente vontade política ou sofrerem pressões de cunho econômico, não logram o efeito almejado; na civilizada Suécia, por exemplo, é notória a problemática da ineficácia de algumas normas na área ambiental, que permaneceram, simplesmente, inobservadas.
Do ponto de vista do direito internacional público, cumpre rejeitar uma objeção de caráter geral, freqüentemente oposta à elegibilidade de projetos de recomposição da mata ciliar e da reserva legal no MDL, baseada no requisito da “voluntariedade”. O Protocolo de Kyoto preconiza a participação “voluntária” dos países, que não integram o Anexo I, ao Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. Este requisito tem sido confundido com o da adicionalidade dos projetos, levando a censurar, como “não voluntários” ou “não espontâneos”, os projetos florestais agora analisados.
Mesmo prescindindo deste equívoco conceptual, cabe lembrar que nenhum acordo, convenção ou tratado internacionais têm induzido o Brasil a criar institutos como a reserva legal ou as áreas de preservação permanente (que abrangem a proteção das matas ciliares). Isto significa que o equívoco mencionado, mesmo aceito como premissa válida, nos levará ao mesmo resultado (respeito pleno do pretendido requisito da “voluntariedade”), já que fica patente o livre exercício de soberania, realizado pelo Brasil, ao criar uma normativa interna sobre APP's, matas ciliares e reserva legal, desvinculada de qualquer suposta obrigatoriedade, no plano internacional.
Mas será ao nos debruçarmos, verdadeiramente, sobre o tema da adicionalidade, que será possível identificar a elegibilidade dos projetos considerados, para o MDL. Com efeito, a verificação da adicionalidade dos projetos, no arcabouço do Protocolo de Kyoto, passa através de uma análise sobre o assim definido “business as usual”, isto é, a conduta efetivamente praticada na realidade atual, que prefigura um cenário futuro, na ausência do projeto, a ser comparado com o cenário oriundo da implementação do próprio projeto.
Deste ponto de vista, seria relativamente fácil demonstrar que, no tocante, por exemplo, à reserva legal, em áreas insuficientemente fiscalizadas, o percentual de cumprimento do requisito legal ficaria inalterado (suponhamos, a título de exemplo, 7 do 20% exigido). Qualquer projeto, portanto, que visasse reconstituir o percentual vinculante de reserva legal, teria uma clara adicionalidade (13%, na hipótese formulada).
Assim, nas regiões respectivas, projetos de reconstituição da reserva legal, em áreas totalmente desprovidas da mesma, viriam a possuir um percentual de “business as usual” (não elegível para o MDL e para geração de créditos de carbono ou, na hipótese acima, a parcela de 0 a 7%) e um percentual de adicionalidade (elegível para o MDL e para geração de créditos de carbono ou, na hipótese acima, a parcela de 8 a 20%).
Além do raciocínio desenvolvido, por fim, cabe apontar uma recente tendência de alguns proprietários rurais, que, tendo adquirido suas respectivas propriedades antes da data de promulgação do Código Florestal, não se reconhecem obrigados à recomposição das áreas de mata nativa (reserva legal), além do percentual existente na época da aquisição. A tese, que encontrou um isolado respaldo num acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 2002, deixa prefigurar ulteriores espaços de argumentação, em favor do enquadramento no MDL.
O último ato das negociações diplomáticas, ocorrido em Bonn no mês passado, produziu um texto preliminar de decisão, a ser submetido à próxima Conferência das Partes, sobre definições e modalidades para inclusão das atividades de florestamento e reflorestamento no MDL. As alternativas de texto, ainda sob exame, não parecem conter qualquer vedação expressa à hipótese aqui formulada, favorável à inclusão no MDL dos projetos florestais discutidos.
________________
* Advogado do escritório De Rosa, Siqueira, Almeida, Mello, Barros Barreto e Advogados Associados
__________________