Migalhas de Peso

Você e sua medula óssea

A doação de medula óssea pode ser realizada por qualquer pessoa em benefício de outra qualquer, sem necessidade de autorização judicial.

29/5/2016

Machado de Assis, com sua sensibilidade descritiva aguçada, mestre da observação psicológica, romântico e parnasiano-realista, querendo satisfazer uma curiosidade a respeito da influência do sangue no ser humano, fez uma incursão na área do xenotransplante. Pela experiência narrada, Stroibus e Pítias, dois amigos filósofos e cientistas descobriram que se a pessoa ingerir o sangue do rato irá tornar-se ratoneiro, da coruja, sábia, da aranha, arquiteta, da cegonha, da andorinha, viajante, da rola, fidelidade conjugal, do pavão, vaidade. Tomaram o sangue de rato. Foram presos na corte de Ptolomeu e condenados à morte por seguidos furtos de raras obras literárias da biblioteca de Alexandria.¹

É certo que a ficção científica nunca foi o campo preferido do Bruxo do Cosme Velho, mas faz ver que o homem sempre se interessou por aventuras biológicas relacionadas com o sangue. Tamanha verdade que a própria ciência médica entabulou os procedimentos envolvendo transplantes sanguíneos com inquestionáveis sucessos para a saúde humana. E assim é possível caracterizar o homem como proprietário de um imenso latifúndio, chamado corpo humano e, ao mesmo tempo em que representa um patrimônio individualizado, carrega a semente universal, que irá proporcionar a continuidade da humanidade.

A doação de órgãos e tecidos no Brasil é feita inter vivos, modalidade em que qualquer pessoa capaz poderá consentir e, na impossibilidade, seu representante legal, desde que se trate de órgãos duplos (rins, por exemplo) ou partes renováveis do corpo humano, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge, parentes consanguíneos até o quarto grau, ou qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. Sempre e sempre a título gratuito, em razão do disposto no artigo 199 § 4.º da Constituição Federal e da Lei 9.434/97, em seu art. 1º. Percebe-se, pelo relato legislativo, que a pessoa não divide com o Estado a legitimidade de doar sua medula óssea e pode fazê-lo a quem lhe aprouver, prevalecendo sua autonomia.

Foi sancionada a Lei n° 13.289, de 20 de maio de 2016, que cria o Selo Empresa Solidária com a Vida, destinado às empresas que desenvolvem programa de esclarecimento e incentivo aos seus funcionários para que sejam doadores de sangue e medula óssea². Na realidade, a doação deveria ser ato de comunhão, de alteridade, levando-se em consideração que a natureza humana tem como sustentáculo o altruísmo. O sangue que circula no corpo ou se aloja na medula óssea de uma pessoa, tem compatibilidade para se transferir para outro corpo e restaurar uma vida atingida por doenças que afetam as células, como as leucemias. É, por um lado, uma doação representando um gesto de extrema solidariedade, com rápida reconstituição do material doado e, por outro, a única chance de vida para o doente receptor.

Para ser doador de sangue basta ter boas condições de saúde e ter entre 16 e 69 anos, desde que a primeira doação tenha sido feita até os 60 anos e pesar no mínimo 60 kg. A lei permite a doação feita por adolescente, mas exige o termo de autorização assinado por um dos pais ou pelo responsável legal.

A doação de medula óssea, por sua vez, pode ser feita por qualquer pessoa entre 18 a 55 anos de idade, no gozo de boas condições de saúde. O procedimento é invasivo e se resume na retirada do sangue do interior dos ossos da bacia, mediante punções. O material coletado irá determinar as características genéticas que são exigidas para a compatibilidade entre doador e paciente, por meio de um sistema que realiza o cruzamento de informações entre ambos, visando a realização do transplante. Em caso de compatibilidade, o doador será comunicado e nasce daí a necessidade de se fazer a atualização constante do cadastro, quando se submeterá a exames complementares.

Tamanha é a importância do procedimento que o transplante também pode ser realizado com a utilização de células-tronco de cordão umbilical de recém-nascidos, preservadas e doadas voluntariamente pelas mães.

Geralmente o doador é procurado na família. Se a busca não der resultado positivo, faz-se a consulta ao Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea (REDOME) que, por sua vez, age articulado com o cadastro mundial, sendo as buscas realizadas simultaneamente no Brasil e nos bancos internacionais. Assim, quanto maior o número de pessoas inscritas, maior a possibilidade de se encontrar doador compatível.

Respeitadas as condições exigidas, qualquer um pode ser doador. Basta procurar pelo hemocentro mais próximo e manifestar o interesse. É, sem dúvida, um ato de estremada solidariedade, revelador de um sentimento humanitário digno de todo respeito e admiração, demonstrando que a natureza humana proporciona o bem estar àquele que é saudável e acode o vulnerável com os recursos do corpo humano alheio.
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Referências

1 Conto Alexandrino, escrito em 1884.
https://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000202.pdf.

2 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13289.htm
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em Direito Público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp e membro ad hoc da CONEP/CNS/MS.

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