Migalhas de Peso

A prova da regularidade trabalhista para participação no FIES

Para incentivar a regularidade trabalhista, o cadastramento no programa deve ser condicionado à "prova de inexistência de débitos inadimplidos perante a Justiça do Trabalho".

20/5/2016

As instituições de ensino superior passaram a se beneficiar enormemente com a criação do FIES – Fundo de Financiamento Estudantil pela lei 10.260/01, o que promoveu um crescimento extraordinário no número de alunos matriculados e, com isso, a ampliação dessas instituições e a incrível majoração de seus lucros.

Esse crescimento exponencial dos benefícios aos empresários do ramo de educação não veio acompanhado do respeito aos direitos trabalhistas, tendo ocorrido a adoção de diversos mecanismos para ocultar patrimônio e receitas, a fim de impedir a concretização de execuções trabalhistas que se avolumam aos montes contra diversas instituições de ensino no país.

Como grande parte da receita é oriunda de créditos decorrentes do FIES, em várias reclamações trabalhistas há o pleito pela penhora desses créditos que, no entanto, acabam frustradas por não ocorrerem exatamente ao tempo da disponibilidade de crédito ou, ainda, porque a prioridade de sua destinação é para o pagamento de tributos, somente ocorrendo a disponibilização de recursos efetivos ao empresário se ele optar pela recompra prevista no art. 13 da lei 10.260/01.

Esse procedimento seria simplificado – e a quitação de débitos trabalhistas seria incentivada – se a União cumprisse o disposto no art. 29, V da lei 8.666/93 e exigisse, para promover a recompra de certificados emitidos às instituições de ensino, a Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas – CNDT.

É o art. 37, XXVII da Constituição Federal que guarda a competência da União para editar “normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios”.

No exercício dessa competência, a União editou a lei 8.666/93 que, em seu art. 2º, conceitua o contrato administrativo como “todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada”.

Celso Antônio Bandeira de Mello¹ conclui, com esteio na doutrina francesa, que o contrato administrativo seria aquele que tivesse a marca de uma das seguintes características: receber tal qualificação por lei; ter por objeto a própria execução de um serviço público ou conter cláusulas exorbitantes.

Não que o contrato administrativo seja uma completa anomalia, tanto que a parte final do art. 54 da lei 8.666/93 dispõe a ele se aplicar, supletivamente, a teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado, o que reafirma sua natureza contratual e o afasta da ideia geral de ato administrativo.

É, afinal, pouco razoável esperar que os contratos celebrados pela Administração Pública, agindo nessa qualidade e representando a coletividade, fossem tratados pelo ordenamento jurídico com a idêntica prodigalidade dispensada aos ajustes privados, daí se compreender o mote subjacente às prerrogativas contratuais exclusivas da Administração Pública.

Essas cláusulas derrogatórias do direito privado, basicamente, são as que autorizam a imposição de sanções, permitem a rescisão e a alteração unilateral do contrato e relativizam a exceção do contrato não-cumprido, dentre outras que deixam claro o papel diferenciado que o ajuste reserva ao ente público.

No caso específico da relação mantida em decorrência da lei 10.260/01, embora se trate de um “financiamento estudantil”, na verdade há uma formação direta de vínculo entre a União e cada instituição de ensino superior na qual o aluno decida ingressar.

Essa realidade não afasta, em nada, as regras que gravitam em torno da lei 8.666/93, pois na prática se dá fenômeno aproximado ao do “credenciamento”.

O credenciamento, malgrado sem um tratamento legal específico, é uma hipótese de inexigibilidade (art. 25, caput, lei 8.666/93), porquanto impossível a competitividade, na medida em que para o órgão público não interessa selecionar uma única proposta vantajosa, mas a maior quantidade possível de fornecedores que cumpram os requisitos previamente estipulados.

MARÇAL JUSTEN FILHO², a respeito do tema, destaca que a ideia subjacente ao credenciamento é a de não-excludência:

“[...] A Administração deverá editar um ato de cunho regulamentar, fundado no reconhecimento da ausência de excludência de contratação de um número indeterminado de particulares para atendimento a certas necessidades, no qual serão estabelecidas as condições, os requisitos e os limites não apenas para as futuras contratações como também para que os particulares obtenham o credenciamento – ato formal por meio do qual o particular é reconhecido como em condições de contratação.[...]”

A sistemática foi também chancelada pelo Tribunal de Contas da União – TCU, na Decisão 656/95-Plenário:

“Consulta formulada pelo Exmo. Sr. Ministro interino da Educação sobre a possibilidade de se contratar serviços médico-assistenciais aos seus servidores e dependentes, por meio de credenciamento de entidades e profissionais na área de saúde.
Estudos desenvolvidos pelo Tribunal, quando da aprovação do Regulamento de seu Plano de Assistência Médica, demonstraram que o sistema de credenciamento atende aos princípios norteados da licitação. Conhecimento da Consulta para responder, em tese, que, até a edição do regulamento a que se refere o art. 230 da lei 8.112/90, é possível a adoção desse sistema.
Envio, ao interessado, de cópia da Decisão. Relatório e Voto. Arquivamento do processo.”

Feita essa digressão, vale observar que apenas as entidades cadastradas para esse fim no Ministério da Educação poderão receber alunos pelo FIES, nos termos do art. 4º da lei 10.260/01.

Não há disponibilização de recursos diretamente aos estudantes (financiamento bancário), mas o pagamento direto às instituições de ensino por serviço que, na prática e, portanto, está sendo prestado à União, que no futuro tentará reaver o valor pago dos estudantes beneficiados, mas sem que haja uma relação direta – nesse específico ponto – entre o beneficiário e a entidade.

Há requisitos próprios para o cadastramento das instituições de ensino (art. 9º da lei 10.260/01), condições especiais de execução do contrato (art. 5º, VI da lei 10.260/01), sanções (art. 4º, § 5º da lei 10.260/01) e forma especial de pagamento (art. 7º e 9º da lei 10.260/01), caracterizando cláusulas exorbitantes, tudo a evidenciar tratar-se de um autêntico contrato administrativo (celebrado por inexigibilidade), a despeito do nome que lhe seja dado.

Aliás, a pouca relevância quanto ao nome atribuído ao ato jurídico não é estranha ao Direito, que se ocupa de investigar os contornos próprios essenciais da relação jurídica e a disciplina legal que a regula, em detrimento do nome que se lhe apregoa.

No Direito Tributário, por exemplo, é irrelevante que a lei instituidora apelide o tributo de imposto se, ao investigar seu fato gerador, o intérprete se depara com situação típica de taxa ou contribuição. O próprio Código Tributário Nacional assim enuncia no inciso I do art. 4º.

O Direito Processual Civil tampouco atribui relevância aos nomes das “ações” que são ajuizadas (com exceção das típicas e nominadas no próprio Código), atendo-se à conjugação da causa de pedir e do pedido para se certificar do procedimento a ser adotado, conforme a inexcedível lição apreendida da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (REsp 113965- SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, 3ª Turma, DJ 13/10/98).

No mesmo sentido se colhe exemplo no Direito Penal (art. 383 CPP), exatamente para desprestigiar o nome e consagrar a norma.

Não por outro motivo que o art. 2º da lei 8.666/93 define o que é contrato administrativo, fazendo ao final a ressalva de que “seja qual for a denominação utilizada”.

Tratando-se de contrato administrativo, há incidência direta das regras gerais previstas na lei 8.666/93, dentre elas a inovação advinda com a lei 12.440/11, mais precisamente a prova de inexistência de débitos inadimplidos perante a Justiça do Trabalho, mediante a apresentação de certidão negativa (art. 29, V da lei 8.666/93³).

Essa exigência há de ser feita no momento do “cadastramento” da instituição de ensino superior (art. 4º da lei 10.260/01 c/c art. 29, V da lei 8.666/93) e verificada permanentemente durante a vigência do cadastro, por força do art. 55, XIII da lei 8.666/934.

Como a contraprestação das mantenedoras de instituição de ensino superior é, em regra, feita por intermédio da emissão de certificados do Tesouro Nacional (art. 9º da lei 10.260/01) e destinados ao pagamento (art. 10 da lei 10.260/01) das contribuições sociais previstas nas alíneas “a” e “c “ do parágrafo único do art. 11 da lei 8.212/91, bem como das contribuições previstas no art. 3º da lei 11.457/07, igualmente se deve exigir a prova da regularidade trabalhista quando o FIES resolver celebrar contrato de compra desses certificados, na forma do art. 13 da lei 10.260/015.

Fora desses parâmetros, o Ministério da Educação e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE, a quem incumbe a gestão do FIES, atuam à margem da disciplina legal, viabilizando a contratação pública sem a observância dos requisitos formais previstos em lei (art. 29, V da lei 8.666/93), podendo e devendo ensejar a devida responsabilização dos agentes públicos que assim procederem, por imposição do art. 116, III da lei 8.112/906; do art. 10, VIII da lei 8.429/927 e do art. 89 da lei 8.666/938.

___________________

Referências

1 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 570-
571.

2 JUSTEN FILHO. Marçal. Comentários à lei de Licitações e Contratos Administrativos, 13ª ed. Editora Dialética, pg. 47

3 Art. 29. A documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista, conforme o caso, consistirá em: […]V – prova de inexistência de débitos inadimplidos perante a Justiça do Trabalho, mediante a apresentação de certidão negativa, nos termos do Título VII-A da Consolidação das leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-lei no 5.452, de 1o de maio de 1943.

4 Art. 55. São cláusulas necessárias em todo contrato as que estabeleçam:[…] XIII - a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação.

5 Art. 13. O Fies recomprará, no mínimo a cada trimestre, ao par, os certificados aludidos no art. 9o, mediante utilização dos recursos referidos no art. 2o, ressalvado o disposto no art. 16, em poder das instituições de ensino que atendam ao disposto no art. 12

6 Art. 116. São deveres do servidor: […] III - observar as normas legais e regulamentares;

7 Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente: […] VIII - frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente

8 Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

___________________

*Wesley Bento é advogado, procurador do DF e sócio do escritório Bento, Muniz & Monteiro Advocacia.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024

Transtornos de comportamento e déficit de atenção em crianças

17/11/2024