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Arbitragem por equidade: por que temos medo dela? – Breve análise no campo dos contratos incompletos

As pessoas receiam a maneira pela qual o árbitro entende que ela seja e como deve ser aplicada. Daí a preferência pela arbitragem de direito.

18/5/2016

“Honeste vivere, Alterum Non Laedere, Suum Cuique Tribuere” - “Viver honestamente, não prejudicar ninguém, dar a cada um o que lhe pertence.” (Ulpiano).

No meu tempo de acadêmico do curso graduação a frase da epígrafe acima era uma das mais repetidas durante os cursos de Direito Romano e Civil, a qual (como o ideal do direito em uma sociedade equilibrada e racional) poderia resumir segundo penso toda uma constituição escrita, sem a necessidade de mais palavras. Parece que no nosso Brasil dos últimos anos ela foi levada ao paroxismo com um sinal negativo: “viver desonestamente, prejudicar a quem for possível e tomar de todos os que lhes pertencem.” Vivendo agora novos tempos, depois do adeus a alguns nada queridos, quem sabe aquela equação não toma lugar entre nós, dentro de um ideário de justiça efetiva?

 

Quando nos voltamos para o instituto da arbitragem, sabemos que ela pode ser realizada de direito ou por equidade. No primeiro caso o árbitro deve aplicar a lei, pura e simplesmente. No segundo penso que ela expressa precisamente o terceiro elemento da epígrafe, quando a sentença atribuirá a cada parte aquilo que lhe pertence, no âmbito de cada caso concreto. Mas as arbitragens por equidade no Brasil têm tido uma aplicação praticamente inexistente e, segundo penso, isto se deve ao fato de que as partes têm muito medo dela. Melhor ainda, receiam a maneira pela qual o árbitro entende o que ela seja e como deve ser aplicada. Daí a preferência pela arbitragem de direito. Afinal de contas a lei é conhecida (ou deveria) e poder-se-ia esperar com algum grau de segurança e certeza qual seria o resultado da decisão que viesse a ser proferida em uma demanda, seja perante o Judiciário, seja via arbitragem.

 

Mas se o mundo do direito fosse tão previsível e de fácil entendimento e realização, qual a razão da existência de tantas doutrinas diversas sobre um mesmo tema e de tantas decisões que se contrariam na aplicação da lei? Como temos visto a jurisprudência nos mostra que as sentenças podem ir do “oriente ao ocidente”, tal como parece fazer o sol no seu aparente no seu transcurso diário pelos céus do nosso planeta.

 

Os motivos são os mais diversos possíveis, um deles, mais direto, diz respeito ao fato evidente de que o direito não é uma ciência exata e sua concepção legal, seguido de sua interpretação e aplicação, seguem processos lógicos extremamente complicados. Que o digam os sociólogos e exegetas jurídicos. De qualquer forma a arbitragem de direito encerraria (ou pareceria encerrar) evidentemente um nível de segurança muito maior do que deixar ao árbitro decidir segundo a equidade, com todo o eventual subjetivismo que na sua concepção pareceria (e poderia mesmo) estar presente.

 

Uma coisa é certa: não se pode confundir a equidade com a tal da função social da propriedade, da empresa ou do contrato. Cada vez que eu tenho diante de mim uma sentença que usa a função social dentro de um dos campos acima citados, adotando-a como o seu fundamento, eu tremo nas minhas bases e preciso urgentemente tomar um antialérgico jurídico bem eficaz. Isto porque o conceito de função social tem sido introduzido no direito brasileiro de forma casuística e oportunista, dentro de um modismo destinado a proteger não disfarçadamente aquela parte em uma relação jurídica na qual é considerada objetivamente como mais fraca (e isto somente porque a outra é “mais rica”), dando-lhe quase que automaticamente ganho na causa. Alô, alô, trabalhadores e consumidores e invasores de propriedades alheias.

 

Eu já afirmei em outra oportunidade que a história do nascimento da função social não é nada exemplar, tendo ela feito parte do Código Civil Italiano da era fascista, muito utilizada nos tempos do camarada Mussolini, em situação não por coincidência aparentada com o nazismo contemporâneo. Nos dois sistemas político/jurídicos estava presente a ideia (melhor dizendo, “desculpa”) do bem comum em favor do povo e do Estado, tão disfuncional quanto uma maçã na qual foi injetado um veneno. Que o diga Branca de Neve. Portanto, falando-se em função social, “modus in rebus”. Claro que não se pode defender o extremismo do capitalismo selvagem, como tem sido designada a exploração da atividade econômica isenta de qualquer nível de irresponsabilidade. Mas é também condenável o outro lado da moeda, defensora do Estado ilimitadamente paternalista que não vê fronteiras em sua irresponsabilidade fiscal. Será que alguém deseja amanhã ser a Venezuela de hoje?

 

Mas se a arbitragem por equidade pode trazer algum pavor, naquela de direito podemos encontrar alguns desvios na sua aplicação: (i) a utilização pelo julgador de uma eventual ideologia preconceituosa, causadora de distorção da norma utilizada; (ii) uma decisão pode ser o resultado da pura preguiça do julgador em estudar o caso com profundidade. Neste sentido, sabe-se como é fácil aplicar a jurisprudência dominante (ou alguma jurisprudência “especialmente selecionada”); (iii) o uso de uma súmula construída em um dado momento histórico do direito, mas que se torna rapidamente superada dentro de um dinamismo social e jurídico cada vez mais acentuado, especialmente no Direito Comercial; e (iv) como novidade palpitante do direito pátrio, a aplicação de um determinado enunciado, elaborado em alguma jornada jurídica qualquer durante um fim de semana ensolarado dentro de um resort cinco estrelas situado na beira da praia, realizada por um organizador nada isento.

 

Particularmente eu considero a utilização direta e gratuita de enunciados pelos julgadores como um verdadeiro crime jurídico praticado pelo juiz precipitado. Mas vejam que sua utilização estaria no campo da arbitragem de direito (ainda que torto) em completa frustração da segurança e certeza que dela seria de se esperar.

 

E sobre essa mesma arbitragem de direito, diz-se à boca pequena que em algumas decisões o árbitro procuraria dar um jeito de “equilibrar” uma situação que ele julgasse injusta sob algum aspecto em relação à parte perdedora. Em favor desta o árbitro procuraria fazer algum ajuste na sua decisão, fundada em algum preceito de direito positivo que entendesse ser suscetível de aplicação. Eu pessoalmente desconheço um caso em que se tenha adotado tal tipo de saída, na minha experiência pessoal que já passou de três lustros.

 

A questão é que o direito no seu sentido estrito não costuma se mostrar tão claro como deveria e isto se dá em uma enorme quantidade de situações apresentadas para uma solução, seja no Judiciário, seja no campo da arbitragem. Trata-se principalmente de questões nascidas na execução de contratos complexos de longa duração e que, por isto mesmo, se têm caracterizado como incompletos. Incompletos não segundo a teoria da imprevisão, mas na sua regulação consciente pelas partes no sentido de que, dados os elevados e insuportáveis custos de transação que estariam presentes em um clausulado exaustivo, não são e nem poderiam ser explicitados todos os problemas passíveis de aparecimento no futuro, ao lado da solução justa previamente acordada pelas partes. Muitas vezes uma tarefa como estas se revelaria tão impossível quanto se achar um politico “inteiramente” honesto.

 

Diante de um contrato incompleto, como ele seria resolvido por arbitragem segundo um dos seus dois modelos?

 

Na arbitragem de direito o árbitro procuraria verificar de forma estrita os termos da avença e sua eventual modificação pelas partes ao longo tempo de sua execução. Muito comum tem sido o caso da adoção nas relações contratuais duradouras no tempo de determinadas formalidades que as partes devem atender estritamente (notificações específicas dentro de determinados prazos sobre pontos da execução de uma obra civil de grande porte, v.g). Mas, encontrando-se as partes inicialmente de boa-fé (caráter que tende a desaparecer progressivamente conforme o andamento da carruagem se problemas surgirem) e considerada a dinâmica da obra, tais formalidades deixam aos poucos de serem feitas e exigidas de lado a lado. Isto significa, no fundo, que o contrato sofreu durante a sua execução alterações de aceitação recíproca pelas partes, ainda que de forma tácita. A prova neste sentido, muitas vezes é difícil e até mesmo irrealizável do ponto de vista efetivo, dando-se no plano dos chamados comportamentos conclusivos. A maneira pela qual as partes agem em muitas ocasiões não dá indícios seguros de que houve uma alteração contratual superveniente e em que sentido ela ocorreu.

 

Em tais situações, suponhamos que o contrato tenha sido efetivamente modificado de fato, do qual resultou um ônus não previsto para uma das partes, mas cuja prova não tenha sido feita nos autos em vista de alguma dificuldade concreta. A decisão de direito dos árbitros terá de obedecer aos termos originalmente estabelecidos, passando-se por cima do prejuízo experimentado por uma das partes o qual, inclusive, poderá levar ao inadimplemento das obrigações fundamentais do acordo com a frustração do negócio e até mesmo a futura quebra da empresa prejudicada. Este resultado evidentemente não é bom para o mercado em razão do desaparecimento de uma unidade produtiva. Assim, não se realiza o negocio ou a obra encomendada e perdem com tal resultado as duas partes e a economia como um todo.

 

É neste momento que o árbitro, mesmo que dentro de uma arbitragem de direito, pode ser indevidamente levado a procurar uma solução de justiça equitativa e desobedecer à determinação prévia das partes quanto ao tipo de solução com a qual expressamente concordaram. Para isto ele terá de distorcer os termos do contrato ou de uma lei, de alguma maneira que não seja acintosa. Mas dificilmente a percepção de que isto aconteceu escapará à parte prejudicada em detrimento da confiança no instituto da arbitragem. E esta percepção não ficará no âmbito privado das partes em vista do sigilo do processo, mas passará para o conhecimento do mercado em geral se aquela que perdeu a causa vier a buscar satisfação perante o Judiciário, com ou sem razão, diante das hipóteses legais previstas em numerus clausus de anulação da sentença arbitral.

 

Se, por outro lado, a arbitragem tivesse sido escolhida na modalidade de equidade, as situações de desequilíbrio nascidas durante a mudança dos fundamentos econômicos de base no curso da execução de um contrato incompleto, seriam reconduzidas pelo árbitro a um ponto que não permitisse os efeitos negativos acima mencionados, preservando-se o acordo para que atingisse a finalidade originalmente estabelecida. No fundo, a decisão buscaria verificar a solução em favor da qual as partes – desde que boa-fé e considerando os riscos naturais inerentes ao negócio - teriam optado, caso tivesse sido prevista a eventualidade negativa (fato que, como vimos, deixou de ser feito no exemplo dado em função dos custos de transação), levando assim o acordo a bom termo.

 

Este exercício do árbitro seria feito não na base do achômetro, mas fundado em elementos objetivos, tais como perícias técnicas e contábeis, e realizável mesmo que o conjunto probatório não fosse suficiente para uma decisão fundada no direito, se este tivesse sido o caminho adotado.

 

Mas também um caminho seguro para o árbitro na arbitragem por equidade seria a adoção, por analogia, de dois pontos presentes na conhecida business judgement rule: (i) verificar se os efeitos danosos do contrato teriam se manifestado ainda que a parte causadora tivesse agido com base nas informações disponíveis e que tivessem sido razoavelmente adequadas diante de uma decisão que tenha sido tomada; e que (ii) a mesma decisão tivesse sido adotada como a mais adequada na situação concreta de um determinado contrato, segundo parâmetros racionais do exercício da atividade empresarial. Tais orientações informariam a decisão por equidade, ainda que viesse a contrariar a letra expressa do acordo.

 

Evidentemente na arbitragem por equidade não têm os árbitros o direito de passar por cima de atos de culpa grave ou de dolo da parte que causou a quebra do contrato, tendo acarretado prejuízos para a sua contraparte. De outro lado, a culpa leve poderia ser considerada justamente para minorar a responsabilidade do causador de um dano, sempre tendo em conta um princípio razoável de equidade. Por exemplo, nas circunstâncias segundo as quais a parte culpada tenha buscado um determinado nível de informações para uma tomada de decisão, que depois se mostrasse abaixo do padrão mínimo aceitável para tal finalidade.

 

Ou seja, a arbitragem por equidade quando realizada segundo o principio de que se deve dar a cada um o que lhe pertence, não constitui um bicho papão do qual o mercado possa ter assim tanto medo. Tirar de alguém o que é seu mediante uma ação judicial ou arbitragem consistiria, isto sim, em uma indesejável expropriação privada.
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados e professor Sênior do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.


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