Após intensos debates e diversas consultas públicas, foi editado pelo Governo Federal o decreto 8.771/16, que regulamenta o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14). Passados mais de 2 (dois) anos da publicação da lei que disciplina o uso da Internet no Brasil, a norma adquire, enfim, eficácia plena, em sua inteireza.
A nova regulamentação, embora muito aguardada pelo setor, trouxe menos certezas e um pouco mais de insegurança jurídica para aqueles que ofertam bens e serviços na Internet (i.e., provedores de aplicação) ou operam meios que viabilizam o acesso de usuários à rede mundial (i.e., os prestadores de serviços de telecomunicações, inclusive provedores de conexão). O Governo Federal optou por uma linguagem aberta, em alguma forma principiológica, que dá margens a diferentes interpretações pelos diferentes órgãos tidos como competentes para regulação, fiscalização e apuração de infrações ao Marco Civil da Internet.
Logo em seus primeiros dispositivos, o decreto limita seu âmbito de aplicação, excetuando da disciplina normativa (i) os serviços de telecomunicações que não se destinam ao provimento de conexão de Internet e (ii) os "serviços especializados".
Na primeira hipótese, nada mais intuitivo: se o decreto regulamenta o Marco Civil da Internet, é de se pressupor que somente serão alcançados pela sua disciplina serviços de telecomunicações que possibilitem o acesso à Internet. Em outras palavras, serviços de telecomunicações que não viabilizam a navegação na web naturalmente não são alcançados pela legislação que se presta a regulamentar o uso da Internet no país.
Na segunda hipótese, i.e. os chamados "serviços especializados", optou o Governo Federal por importar um conceito presente na legislação americana e europeia, cujos elementos não estão ainda uniformemente delimitados. Nos termos do decreto, "serviços especializados" são prestações – não se sabe se de telecomunicações ou não – "otimizadas por sua qualidade assegurada de serviço, de velocidade ou de segurança, ainda que utilizem protocolos lógicos TCP/IP ou equivalentes, desde que (a) não configurem substituto à Internet em seu caráter público e irrestrito e (b) seja destinados a grupos específicos de usuários com controle estrito de admissão".
Do conceito de "serviços especializados" que consta do decreto sobressai a necessidade de combinação de rotinas lógicas que permitam a dedicação de recursos específicos para a prestação do serviço e de rotinas físicas, isto é, de telecomunicações, que deem suporte à experiência do usuário. Exemplos de serviços especializados, nessa linha, incluiriam IPTV e telemedicina.
Com relação às regras da neutralidade de redes estabelecidas no art. 9º do Marco Civil da Internet, o decreto, preenchendo a reserva de regulamentação prevista na Lei, reitera a condição de "medidas excepcionais" de práticas de discriminação ou degradação de tráfego, que somente poderão decorrer de requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada de serviços e aplicações ou da priorização de serviços de emergência.
E nesse sentido, o decreto avança para elencar, de forma exaustiva, as hipóteses que autorizam intervenção dos prestadores de telecomunicações no fluxo de pacotes de dados que trafegam em suas redes, quais sejam: (i) o tratamento de questões de segurança de rede, tais como restrição ao envio de mensagens em massa (spam) e controle de ataques de negação de serviço; e (ii) tratamento de situações excepcionais de congestionamento de rede.
Como já era esperado, a regulamentação do Marco Civil da Internet legitima o gerenciamento das redes de telecomunicações em nome da prestação adequada de serviços e aplicações na Internet, tudo com vistas a preservar a estabilidade, segurança e funcionalidade das infraestruturas de suporte à navegação dos usuários. Tal gerenciamento, nos termos do decreto, deve ser compatível com os melhores padrões internacionais e se dar observados parâmetros regulatórios expedidos pela Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, consideradas as diretrizes fixadas pelo CGI.br.
Ainda sobre o tema da neutralidade de redes, um dos pontos mais polêmicos do novo decreto é a limitação a acordos comerciais entre prestadores de telecomunicações e provedores de aplicação, quando haja potencialidade de comprometimento do caráter público e irrestrito da Internet ou de discriminação/priorização de pacotes de dados. A redação do decreto, tal como publicada no Diário Oficial, deixa ao intérprete a difícil missão de estabelecer, nos casos concretos, os limites da liberdade de modelos de negócios na Internet, princípio central e caro do Marco Civil.
No que toca ao eixo do decreto que trata da proteção aos registros, aos dados pessoais e às comunicações privadas, a regulamentação avança sobre terra ainda descoberta: a proteção da privacidade e da intimidade na Internet.
Não tendo emplacado uma legislação sobre proteção de dados, o Governo Federal, no apagar das luzes da gestão Dilma Rousseff, fez constar da regulamentação do Marco Civil da Internet normas específicas de proteção da privacidade, inclusive com definições não pacíficas para os termos "dado pessoal" e "tratamento de dados pessoais".
Em seu art. 13, o decreto estabelece "diretrizes" sobre padrões de segurança a serem observados na guarda, armazenamento e tratamento de dados pessoais e comunicações privadas. Embora se pretenda, sob a alcunha de "diretrizes", reduzir o impacto de uma imposição, pela via regulamentar, de obrigações técnicas a serem suportadas pelos diferentes agentes que atuam no ecossistema da Internet – a exemplo de mecanismos de autenticação para acesso a bases de dados e encriptação de informações armazenadas –, a verdade é que o decreto parece sim impor um ônus à iniciativa privada. Em outras palavras, quer parecer tratar-se menos de uma recomendação, uma "boa prática", e mais de uma imposição cujo descumprimento poderá levar ao chicote da autoridade competente: a Secretaria Nacional do Consumidor.
O decreto que regulamenta o Marco Civil da Internet, por certo, é norma nova e, como tal, estará sujeito à ampla reflexão dos juristas e dos aplicadores do Direito ao longo dos próximos meses e anos. Muitos de seus termos serão definidos na prática, isto é, no exercício da submissão da hipótese legal ao fato.
É justamente a impossibilidade de se extrair diretamente da norma toda a sua amplitude que traz certa angústia para o mercado. Ao não se prestar a trazer certezas, o decreto reforça a já conhecida possibilidade de que o mundo da Internet seja refém do acaso, de interpretações mirabolantes e de atalhos para ação de "super juízes".
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*Tomás Filipe Schoeller Paiva é doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Paris 1 – Panthéon-Sorbonne, professor universitário e advogado associado de Mundie e Advogados.