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A competência originária do Supremo Tribunal Federal para processo e julgamento de crimes

Foro privilegiado é um ranço autocrático e aristocrático que não se coaduna com os modernos princípios democráticos.

26/4/2016

I

INTRODUÇÃO

O propósito deste trabalho é analisar a competência criminal originária do Supremo Tribunal Federal, na fase republicana brasileira, tendo em vista, principalmente, o modelo inspirador do nosso órgão de cúpula do Poder Judiciário: a Suprema Corte dos Estados Unidos da América. O estudo comparativo dos dois ordenamentos jurídicos nos conduz à verificação de que, desde o início da República, o legislador constitucional brasileiro se afastou de sua fonte de inspiração, no que tange à competência originária criminal do Supremo Tribunal Federal, em especial no que diz respeito às ações penais originárias. A razão primordial da disparidade de tratamento sobre o tema constitui o cerne destas considerações, que se baseiam, primordialmente, na diversidade cultural dos dois Estados soberanos desde suas origens. Uma advertência introdutória: além da bibliografia que serviu de suporte a estas reflexões, elas resultam, também e principalmente da experiência vivida pelo autor, durante mais de três lustros, perante as Turmas e o Plenário de nossa excelsa Corte, em matéria penal, no período de 1978 a 1995, como membro do Ministério Público Federal, inclusive como Procurador-Geral da República. As conclusões, portanto, traduzem o pensamento personalíssimo do autor sobre o papel a ser exercido pelo Supremo Tribunal Federal, ainda que, para tanto, se torne imprescindível emenda à Constituição da República Federativa do Brasil, em virtude das mudanças sugeridas na esfera da competência criminal de nosso Tribunal Maior. É provável que as sugestões de alteração constitucional encontrem resistência intransponível, por dependerem de mutação cultural. Podem ser, pois, sugestões utópicas. Mas, quem sabe, um dia, a utopia, de um projeto quimérico, se torne realidade, com o advento de um Parlamento composto de eleitos compromissados, apenas, com os postulados do regime democrático!!!

II
A COMPETÊNCIA CRIMINAL DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA


A Constituição dos Estados Unidos da América foi redigida pela Convenção Federal de 1787, presidida por G. Washington, delegado da Virginia, com a finalidade de criar o sistema de Governo Federal que começou a funcionar na América em 1789. Eis seu preâmbulo:

“Nós, o povo dos Estados Unidos, visando formar uma união mais perfeita e estabelecer a justiça, assegurar a tranquilidade doméstica, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral e garantir os benefícios da liberdade para nós próprios e a nossa posteridade, ordenamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América”.

Seguem seus 7 (sete) artigos originais e, até hoje, apenas 26 (vinte e seis) emendas foram ratificadas, sendo que as 10 (dez) primeiras foram aprovadas em 1791 e conhecidas como Bill of Rights.1

As disposições que tratam de matéria criminal, mormente sobre competência, merecem, aqui, serem transcritas, para melhor compreensão do tema. No sistema legislativo bicameral norte-americano, a Constituição reservou somente ao Senado o julgamento dos crimes de responsabilidade. Eis o que dispõe o art. I, Seção 3, incisos 6 e 7:

“6. Só o Senado poderá julgar os crimes de responsabilidade (impeachment). Reunidos para esse fim, os Senadores prestarão juramento ou compromisso. O julgamento do Presidente dos Estados Unidos será presidido pelo Presidente da Suprema Corte. E nenhuma pessoa será condenada a não ser pelo voto de dois terços dos membros presentes.

7. A pena nos crimes de responsabilidade não excederá a destituição da função e a capacidade para exercer qualquer função pública, honorífica ou remunerada, nos Estados Unidos. O condenado está sujeito, no entanto, a ser processado e julgado, de acordo com a lei”.

Relativamente, ao Poder Judiciário norte-americano, a Suprema Corte tem competência jurisdicional originária para as “questões relativas a embaixadores, outros ministros e cônsules, e naquelas em que se achar envolvido um Estado. Nos demais casos supracitados, a Suprema Corte terá jurisdição em grau de recurso, pronunciando-se tanto sobre os fatos como sobre o direito, observando as exceções e normas que o Congresso estabelecer” (art. III, Seção 2, inciso 2).

Assim, a competência originária da Suprema Corte está limitada a questões que implicam diplomatas e envolvimento de um Estado, nos termos postos acima, sem nenhuma alusão a matéria penal.

Por isso, o “julgamento de todos os crimes, exceto em casos de impeachment, será feito por júri, tendo lugar o julgamento no mesmo Estado em que houverem ocorrido os crimes; e, se não houverem ocorrido em nenhum dos Estados, o julgamento terá lugar na localidade que o Congresso designar por lei” (art. III, Seção 2, inciso 3).

Fica claro, portanto, que os Estados Unidos da América, em sua Constituição, não atribuem competência originária criminal à Suprema Corte, órgão máximo do seu Poder Judiciário. Nem mesmo seus juízes, eventualmente apontados como autores de crime, serão julgados por ela, mas por juiz ou júri do local onde o fato delituoso ocorreu.

Ressalte-se que o julgamento, pelo Senado, do crime de responsabilidade do Presidente da República, embora seja presidido pelo Presidente da Suprema Corte, como assinalado acima, não constitui exercício de jurisdição penal desta, mas do Poder Legislativo, por uma de suas Casas.

Quando em visita ao Brasil, Sandra Day Oconnor, Juíza da Suprema Corte norte-americana, então em atividade, foi indagada pelo Ministro Celso de Mello, da Suprema Corte brasileira, sobre o Juízo competente para o julgamento de Juiz da mais alta Corte de Justiça estadunidense, quando acusado pela prática de crime comum. A resposta foi de que o juiz competente seria o do local onde o fato delituoso tiver sido praticado. Assim, qualquer juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, porventura autor de crime comum, é submetido a processo e julgamento perante Juiz de instância inferior.

A conclusão é, pois, de que não há e nunca houve, no âmbito do órgão de cúpula do Poder Judiciário norte-americano, foro por prerrogativa de função em matéria penal, ainda que o resultado seja a inversão da hierarquia na organização judiciária daquele Estado soberano. Lá, não se confunde hierarquia interna das instituições com prerrogativas ou privilégios decorrentes da posição funcional dos agentes públicos, incompatíveis com o regime democrático.

Merece destaque o fato de que o júri popular tem papel relevante na distribuição da Justiça penal, não se restringindo a julgar crimes dolosos contra a vida, como entre nós. A participação popular mais intensa é reflexo do alto grau de democracia lá existente. Por isso, nenhuma perplexidade causa o fato de um Juiz da Suprema Corte ser julgado criminalmente por juiz togado ou por júri popular, em primeiro grau de jurisdição.

A COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA CRIMINAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DESDE SUA INDEPENDÊNCIA

NA CONSTITUIÇÃO IMPERIAL


Colônia de Portugal até setembro de 1822, o Brasil tornou-se Estado soberano. Diferentemente da Constituição Americana, escrita pelo povo, por meio dos delegados dos Estados, a primeira “Constituição Política do Império do Brasil” nos foi outorgada, em 25 de março de 1824, por obra e graça de Dom Pedro I, “em nome da Santíssima Trindade”. Nela está dito: “A pessoa do Imperador é inviolável e sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma” (art. 99). A competência originária para o julgamento dos crimes porventura cometidos por membros da família imperial, por ministros e conselheiros de Estado, por senadores, assim como por deputados, durante o período da Legislatura, era exclusiva do Senado. Eis aí a primeira instituição de foro por prerrogativa de função, no Brasil independente, não obstante o órgão julgador seja ramo do Poder Legislativo. E, a evidenciar, ainda mais, o caráter autocrático do novel Estado soberano, esse mesmo foro especial, o Senado, era o único competente para julgar, penalmente, os membros da família imperial (art. 47).

O Poder Judicial, posto que declarado independente (art. 151), era subordinado ao Imperador, pois este tinha poder de suspender os juízes de Direito de suas funções (art. 154). Relativamente ao órgão de cúpula do Poder Judiciário, rectius, Poder Judicial, a Constituição imperial outorgada instituiu o Supremo Tribunal de Justiça, cuja competência originária em matéria penal foi assim posta no inciso 2°) do art. 164: “Conhecer dos delitos e erros de ofício que cometerem os seus Ministros, os das Relações, os empregados no corpo diplomático e os Presidentes das Províncias”. Levando-se em conta a organização estatal brasileira de hoje, a competência originária penal do Supremo Tribunal Federal seria para processar e julgar seus próprios Ministros, os desembargadores dos Tribunais de Justiça e os governadores dos Estadosmembros, bem como os diplomatas.

Mais uma vez, é estampada, na nossa primeira Constituição de Estado soberano, o traço cultural autocrático, herdado de Portugal, a explicar – mas não a justificar – o foro por prerrogativa de função cuja existência não se coaduna com o regime democrático.

NA PRIMEIRA CONSTITUIÇÃO REPUBLICANA

Proclamada a República, sua primeira Carta Constitucional, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, denominada Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, continuou a prever foro por prerrogativa de função, ao estatuir que o Supremo Tribunal Federal, privativamente, tinha competência para processar e julgar o Presidente da República, nos crimes comuns, (art.59, a); os ministros de Estado nos crimes comuns e de responsabilidade (art. 52. § 2º); os ministros Diplomáticos, nos crimes comuns e de responsabilidade (art. 59, b) e os juízes federais inferiores nos crimes de responsabilidade (art. 57, § 2º).

Convém observar que a primeira Constituição Republicana não previa qual o órgão judiciário competente para processar e julgar os Juízes do Supremo Tribunal Federal.

As emendas incorporadas em 1926 em nada modificaram o texto originário, no que concerne à competência originária de nossa excelsa Corte para o processo e julgamento de crimes comuns e de responsabilidade.

NA CONSTITUIÇÃO DE 1934

Após a ruptura democrática de 11 de novembro de 1930 e da subsequente Revolução Constitucionalista de 1932, sobreveio a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934. Nela, o Supremo Tribunal Federal passou a se chamar “Corte Suprema” (art. 63, a) e seus integrantes passaram a ser denominados ministros, ao invés de, simplesmente, juízes.

Quanto à competência, o artigo 76, em seu inciso 1), previa que a Suprema Corte era competente, originariamente, para processar e julgar “o Presidente da República e os Ministros da Corte Suprema, nos crimes comuns” (alínea a); “os Ministros de Estado, o Procurador-Geral da República, os Juízes dos Tribunais Federais e bem assim os das Cortes de Apelação dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, os Ministros do Tribunal de Contas e os Embaixadores e Ministros diplomáticos nos crimes comuns e nos de responsabilidade, salvo, quanto aos Ministros de Estado, o disposto no final do § 1º do art. 61” (alínea b) e “os Juízes federais e os seus substitutos, nos crimes de responsabilidade” (alínea c).
O mencionado § 1º do art. 61, estava assim posto: “Nos crimes comuns e nos de responsabilidade, os Ministros serão processados e julgados pela Corte Suprema, e, nos crimes conexos com os do Presidente da República, pelo Tribunal Especial”.

Havia, também, a seguinte previsão constitucional: “Nos crimes de responsabilidade, os Ministros da Corte Suprema serão processados e julgados pelo Tribunal Especial a que se refere o art. 58”.

O aludido art. 58, caput, tinha a seguinte redação: “O Presidente da República será processado e julgado nos crimes comuns, pela Corte Suprema, e nos de responsabilidade, por um Tribunal Especial, que terá como presidente o da referida Corte e se comporá de nove Juízes, sendo três Ministros da Corte Suprema, três membros do Senado Federal e três membros da Câmara dos Deputados. O Presidente terá apenas voto de qualidade”. Esse Tribunal Especial não era órgão do Poder Judiciário.

De tudo que se viu acima, atinente à Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1934, o foro por prerrogativa de função abrangia, agora, muitas outras pessoas ocupantes de cargos, quer na órbita federal, quer na estadual. Cada vez mais, fica clara a cultura aristocrática brasileira, a distinguir ocupantes de cargos públicos hierarquicamente superiores, diferenciando-os dos demais cargos e funções estatais considerados inferiores e ocupados pela maioria dos servidores públicos.

NA CONSTITUIÇÃO DE 1937

Pouco mais de três anos de vigência da Constituição de 1934, sobreveio a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, imposta aos brasileiros em 10 de novembro de 1937. Nela, voltou-se a denominar nosso Tribunal Maior de Supremo Tribunal Federal, mantendo-se o título de Ministro a seus membros (artigos 90 e 97).

Em tema de ação penal originária, ao Supremo Tribunal Federal foi outorgada competência para processar e julgar seus próprios Ministros (art. 101, I, a) e os Ministros de Estado, o Procurador-Geral da República, os Juízes dos Tribunais de Apelação dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, os Ministros do Tribunal de Contas e os Embaixadores e Ministros diplomáticos nos crimes comuns e nos de responsabilidade, salvo quanto aos Ministros de Estado e aos Ministros do Supremo Tribunal Federal, o disposto no final do § 2º do art. 89 e no art. 100” (art. 101, I, b). O § 2º do art. 89 refere-se, tal como na Constituição de 1934, aos crimes dos ministros de Estado conexos com os do Presidente da República, a serem julgados pela autoridade competente para o julgamento deste. Já o art. 100, também aludido, estatui que os Ministros do Supremo Tribunal Federal, nos crimes de responsabilidade serão processados e julgados pelo Conselho Federal. Tal Conselho, órgão estranho ao Poder Judiciário, era composto de representantes dos Estados e de dez membros nomeados pelo Presidente da República, com mandato de seis anos (art. 50).

A única alteração substancial da Constituição de 1934 foi a omissão quanto ao processo e julgamento do Presidente da República nos crimes comuns. A omissão talvez se justifique pela disposição contida no art. 87 da Constituição de 1937, no sentido de que o “Presidente da República não pode, durante o exercício de suas funções, ser responsabilizado por atos estranhos às mesmas”, fonte de inspiração do § 4º do art. 86 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988 (“O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”).

NA CONSTITUIÇÃO DE 1946

Findo o período ditatorial, promulga-se nova Constituição dos Estados Unidos do Brasil em 18 de setembro de 1946, em que o Supremo Tribunal Federal figura como órgão de cúpula do Poder Judiciário (art. 94), com competência para processar e julgar, originariamente, o Presidente da República nos crimes comuns (art. 101, a); os seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República nos crimes comuns (art. 101, b); os Ministros de Estado, os Juízes dos Tribunais superiores federais, os Desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, os Ministros do Tribunal de Contas e os Chefes de Missão Diplomática em caráter permanente, assim nos crimes comuns como nos de responsabilidade, ressalvado, quanto aos Ministros de Estado, o disposto no final do art. 92”.

Como se constata, nenhuma novidade há quando se estabelece cotejo com a Constituição de 1934, no que tange à competência originária do Supremo Tribunal Federal para o processo de julgamento de crimes comuns e de responsabilidade.

NA CONSTITUIÇÃO DE 1967

Passados menos de vinte anos da Constituição de 1946, nova ruptura do regime democrático advém com a edição do Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964. Somente em 24 de janeiro de 1967, nova Constituição do Brasil é promulgada pelas Mesas da Câmara e do Senado, com entrada em vigor em 15 de março do mesmo ano.

Nela, a competência originária do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar crimes aumentou, pois, além de manter a competência anterior quanto a crimes comuns praticados pelo Presidente da República, pelos próprios Ministros da Suprema Corte e pelo Procurador-Geral da República, (art.114, I, a), acrescentou todos os magistrados da Justiça do Trabalho, bem como os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal (art. 114, I, b).

Cada vez mais, o número de pessoas com foro por prerrogativa de função, junto ao Supremo Tribunal Federal, aumentava.

NA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 1, DE 17 DE OUTUBRO DE 1969

Nova ruptura constitucional, com a imposição do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, o Supremo Tribunal Federal viu seu número de Ministros reduzido de dezesseis para onze, por força Ato Institucional n° 6, de 1° de fevereiro de 1969, mas viu, também, aumentada sua competência originária para processar e julgar crimes comuns, com o advento da Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, imposta pelos Ministros de Estados das três forças armadas.

Assim é que, a par de ter competência para processar e julgar, nos crimes comuns, o Presidente da República, os Ministros de Estado e o Procurador-Geral da República, como nos textos constitucionais anteriores, houve acréscimo do Vice-Presidente da República, dos deputados e dos senadores (art. 119, I, a), embora tenham sido excluídos os magistrados, exceto os membros dos tribunais superiores e dos tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, bem como excluídos foram os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal (art. 119, I, b).

É fácil a constatação de que a ausência de democracia é inversamente proporcional ao número de pessoas submetidas ao julgamento originário do Supremo Tribunal Federal, quando praticam crime comum. É a exacerbação do regime autoritário, autocrático e aristocrático, em detrimento do regime democrático.

Convém pôr em destaque que, somente com a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, deputados e senadores passaram a ter foro no Supremo Tribunal Federal para processo e julgamento de crimes comuns que, porventura, cometessem.

NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a atual Constituição da República Federativa do Brasil, elaborada por representantes do povo brasileiro, após mais de vinte anos de instabilidade constitucional. Em seu artigo 102, I, alíneas b e c, está fixado que o Supremo Tribunal Federal tem competência para processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns:

1 - o Presidente da República;

2 - o Vice-Presidente da República;

3 - os membros do Congresso Nacional (81 senadores e 513 deputados;

4 - os Ministros do Supremo Tribunal Federal (11 Ministros);

5 - o Procurador-Geral da República;

6 - os Ministros de Estado (hoje, mais de 30 pessoas com status de Ministro);

7 - os Comandantes das três Forças Armadas (3 Comandantes);

8 - os membros dos Tribunais Superiores (33 do STJ, 27 do TST, 2 do TSE e 15 do STM;

9 - os membros do Tribunal de Contas da União (9 Ministros);

10 - os chefes de missão diplomática de caráter permanente (todos os que chefiam embaixadas ou consulados brasileiros no exterior, diplomatas de carreira ou não, convindo lembrar que o Brasil tem Embaixadas em 138 países).

Convém observar que os três Comandantes das Forças Armadas foram inseridos no rol acima pela Emenda Constitucional n° 23, de 2 de setembro de 1999, em virtude da criação do Ministério da Defesa, quando aqueles comandantes deixaram de ser Ministros de Estado.

Pode-se, pois, afirmar que são aproximadamente novecentas pessoas com foro por prerrogativa de função junto ao Supremo Tribunal Federal. Os Desembargadores dos Tribunais de Justiça passaram a ser processados e julgados, nos crimes comuns e de responsabilidade, pelo Superior Tribunal de Justiça, que, também, teve sua competência originária aumentada para processar e julgar crimes comuns dos Governadores dos Estados e do Distrito Federal, dos membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, dos Conselheiros dos Tribunais de Contas dos Municípios e dos membros do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais (art. 105, I, a).

Se forem somadas as pessoas sujeitas a processo e julgamento originário, nos crimes comuns, perante os Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, o número delas chega a milhares.

Por fim, outras pessoas, não contempladas pelo texto constitucional, são processadas e julgadas originariamente pelo Supremo Tribunal Federal, não em virtude de mandamento constitucional, mas em decorrência de aplicação de norma infraconstitucional, de caráter processual penal: o instituto da conexão ou da continência, previsto no Código de Processo Penal. Em evidente subversão da hierarquia normativa, o Supremo Tribunal Federal não interpreta restritivamente a Constituição da República, quanto às pessoas sujeitas a processo e julgamento originário perante ele, preferindo incluir outras, tão-só porque suas condutas delituosas são conexas com as daquelas contempladas no texto constitucional. Dá-se, portanto, prevalência a normas de processo penal, de índole infraconstitucional, aumentando, indevidamente, o rol constitucional de pessoas sujeitas a foro por prerrogativa de função. A alegação de que essa inclusão na jurisdição penal originária do Supremo Tribunal Federal de pessoas não mencionadas na Constituição Federal se dá com o intuito de evitar julgamentos contraditórios por Juízos diversos, ou porque se trata de conexão probatória, não se justifica. Além de não se poder ampliar o rol posto na Constituição, o próprio Código de Processo Penal, em seu art. 79, prevê que não haverá unidade de processo e julgamento, em caso de conexão ou continência, quando houver concurso entre a jurisdição comum e a militar. Aqui, a possibilidade de decisões conflitantes existe, mas, ainda assim, a lei processual penal prevê a separação do processo. Nem se evoque a conexão probatória, quando se sabe possível o compartilhamento de provas entre Juízos diversos.

A DIVERSIDADE CULTURAL ENTRE OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA E A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

A formação cultural do povo brasileiro tem história completamente diversa da formação do povo norte-americano, diversidade essa que se reflete na história constitucional das duas Nações.

Enquanto a Constituição norte-americana tem origem no povo e é a mesma, desde o início da conquista de sua soberania, com apenas 26 emendas, a retratar sua estabilidade democrática, o Brasil, desde sua independência como Estado soberano, em 1822, já conta com uma Constituição Imperial e com seis constituições republicanas, sem contar com as várias emendas que cada uma sofreu e com vários e longos períodos de regime ditatorial. Lá, governo e povo se adaptam à Constituição; aqui, esta é constantemente alterada, para que se adapte ao modo de ser autoritário e autocrático de nossos governantes, embora ela se diga democrática. O certo é que, em virtude de nossa gênese de Estado soberano, não se tem, aqui, cultura democrática.

E a existência de foro por prerrogativa de função é sinal evidente de autocracia, ainda que sob o pretexto de se estar prestigiando a função pública e não aquele que a exerce.

Também, no Brasil, o princípio hierárquico, estruturante do Poder Judiciário e de todas as instituições, inclusive religiosas, está culturalmente enraizado em todos os setores da vida nacional, desde o império, mas com evidentes deformidades, em face da prevalência da aristocracia governamental, incompatível com o regime republicano e democrático. É certo que hierarquia é fator indispensável à ordem interna de uma instituição, mas não pode ser evocada para estabelecer privilégios e ferir o princípio da igualdade entre os cidadãos.

Um dos fatores preponderantes para essa moldura cultural é a falta de consciência de que todo exercício de poder deve emanar do povo e implica, necessariamente, prestação de serviço a ele. Todos, do mais ínfimo ao mais elevado grau na pirâmide hierárquica de cada um dos três poderes, existem para servir e não para serem servidos, por isso são denominados funcionários ou servidores públicos, ou melhor, servidores do povo.

Os sinais exteriores de poder constituído se refletem no aparato de segurança pessoal e predial, assim como na distância entre autoridade e povo, concretizada por numerosos agentes de segurança que não permitem aproximação daquele que deve ser servido com a autoridade.

Mais um revoltante exemplo de inversão de valores é o fato de que em qualquer órgão público brasileiro, encontra-se emplacada a advertência de que desacatar funcionário público é crime previsto no art. 331 do Código Penal. Por outro lado, não se encontra nenhuma advertência de que atender com rispidez, com grosseria, com violência e ofensas ao cidadão constitui infração penal e administrativa, pois o serviço público só tem razão de ser para servir o povo. A par do desacato ao funcionário público há o desacato ao cidadão praticado por funcionário público, mais grave que o primeiro, quando se está em um regime democrático e republicano e a isso se denomina abuso de poder.

Os veículos oficiais, com chapa verde-amarela ou de bronze, são sinais visíveis de hierarquia de poder autocrático, enquanto em países democráticos, Ministros de Estado, por exemplo, se dirigem ao trabalho usando condução própria. Seria possível, entre nós, a aprovação, pelo Parlamento, com chancela do Poder Judiciário e do Ministério Público, bem como sanção do Chefe do Poder Executivo, de projeto de lei que extinga essa e outras manifestações aristocráticas, não condizentes com o regime democrático?

Ou será, sempre, inimaginável que um Ministro do Supremo Tribunal Federal seja julgado por um juiz de primeiro grau ou por um júri popular, nos crimes comuns, tal como nos Estados Unidos da América e em muitos países europeus?

A demonstrar que o foro por prerrogativa de função é culturalmente arraigado entre nós, basta ler o seguinte excerto de Justificação de Proposta de Emenda Constitucional do Senado Federal:

“A nota diferenciadora do modelo brasileiro relativamente aos modelos dominantes no Velho Continente é a atribuição de competências penais e civis originárias, atribuídas à nossa Corte Constitucional em função da especial posição estatal de agentes políticos envolvidos tanto no pólo ativo quanto no passivo.

...

As razões sobejam em nitidez. A singular dignidade do Presidente e do Vice-Presidente da República, dos Ministros de Estado, dos membros dos Tribunais Superiores e do próprio Supremo Tribunal Federal e dos membros das Casas do Congresso Nacional, entre outros, exige a previsão da jurisdição diferenciada, como deferência à especial posição institucional de que desfrutam tais autoridades .” (excerto da Justificação da Proposta de Emenda à Constituição nº 73, de 2003, do Senado Federal, Diário do Senado Federal, de 18 de setembro de 2003, págs. 27411/27412).

Ora, qualquer função pública, seja ela qual for, por mais elevada na hierarquia estatal, deve ser objeto de respeito e deferência. Quem não os merecem são aqueles que as exercem e cometem crimes comuns ou funcionais e, portanto, não há qualquer justificativa para a existência de foro por prerrogativa de função, já que, realmente, se trata de foro a privilegiar não a função, mas quem a exerce e merece ser julgado como qualquer cidadão por juiz de primeiro grau de jurisdição.

Por isso, falta, ainda, romper mais um dos grilhões que nos prendem ao Estado colonizador: a renitência cultural aristocrática, antítese da cultura democrática.

A NECESSIDADE DE EXTINÇÃO DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

Ao menos teoricamente, pelo texto constitucional, o Brasil é um Estado democrático e é preciso que o seja na prática, extirpando da Constituição toda manifestação aristocrática e de autocracia, como o foro por prerrogativa de função, determinante da competência originária penal de nossos tribunais, principalmente do Supremo Tribunal Federal.

Vale, aqui, transcrever trecho de voto do Ministro Celso de Mello:

“O instituto da prerrogativa de foro, como é notório, provoca alguns problemas, como o da instauração, perante esta Suprema Corte, de processos multitudinários. A vigente Constituição do Brasil – ao pluralizar, de modo excessivo, as hipóteses de prerrogativa de foro – incidiu em verdadeiro paradoxo institucional, pois, pretendendo ser republicana, mostrou-se estranhamente aristocrática. Na verdade, o constituinte republicano, ao demonstrar essa visão aristocrática e seletiva do poder, cometeu censurável distorção na formulação de uma diretriz que se pautou pela perspectiva do Príncipe (“ex parte principis”) e que se afastou, por isso mesmo, do postulado da igualdade.

Ninguém ignora que a Carta Política do Império do Brasil, de 1824, consagrou apenas quatro (4) ou cinco (5) hipóteses de prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal de Justiça, que era o órgão de cúpula do Poder Judiciário do regime monárquico (art. 164, II).

A Constituição promulgada em 1988, no entanto, não foi capaz de igual parcimônia, ao ampliar, para quase 20 (vinte), as hipóteses de prerrogativa de foro (considerados, para esse efeito, o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e os Tribunais Regionais Federais), além de conferir autorização, aos Estados-membros, para incluir, nas Cartas estaduais, outras novas hipóteses de prerrogativa de foro perante os respectivos Tribunais de Justiça, ressalvados, apenas, os casos definidos na própria Carta Federal.

É certo que a prerrogativa de foro, tal como prevista na Constituição da República, acha-se estabelecida ‘ratione muneris’, destinada a compor o estatuto jurídico de determinados agentes públicos, enquanto ostentarem essa particular condição funcional, estendendo-se, por isso mesmo, e somente nas hipóteses definidas no texto constitucional, àquele que está a exercer ou a titularizar determinada função pública. (Vot na Segunda Questão de Ordem em Inquérito 2.245-4 Minas Gerais, proferido em 09/11/2006)”.

Em um Estado democrático, o Supremo Tribunal Federal não pode ser órgão jurisdicional destinado a processar e julgar ação penal relativamente a quem quer que seja. Sua missão precípua há de ser a de guardião da Constituição, tal como posto no art. 102, caput, desta, bem como a tutela dos direitos e garantias individuais.

O eminente constitucionalista ALEXANDRE DE MORAES bem observa que o Supremo Tribunal Federal possui, além das competências clássicas caracterizadoras da jurisdição constitucional, diversas outras competências comuns, que acabam distanciando-o do modelo dos Tribunais Constitucionais europeus.

“A histórica afirmação do STF como defensor dos direitos e garantias fundamentais, apesar de toda sorte de dificuldades sociais, culturais e políticas, teve início com os primeiros passos republicanos, e a necessária alteração da mentalidade aristocrática, para a consagração da igualdade e limitação dos poderes do Estado, pois, como destacado por Themistocles Brandão Cavalcanti, ‘uma das funções primordiais do Estado, que se destaca nitidamente das demais, é aquela que interessa diretamente à garantia dos direitos de todos quantos vivem no seu território’.

O STF demonstrou, durante sua longa história, constituir-se em um tribunal com a preocupação e a missão de consagrar o respeito e garantir a efetividade dos direitos fundamentais, função essa ampliada pela Lei nº 9.882/99, que regulamentou a argüição de descumprimento de preceito fundamental, prevista no art. 102, § 1º, da Constituição Federal.” (Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais, Atlas, São Paulo, 2000, págs. 219, 256 e 262).

Durante muitos anos, durante o período republicano, o STF foi o defensor dos direitos e garantias individuais, principalmente ao julgar habeas corpus e recurso de habeas corpus, sem nenhuma demonstração de pretender abdicar dessa função. Ainda que a tarefa seja estafante, basta a concessão de um só habeas corpus para estar justificada a permanência dela, pois é sinal de que as instâncias anteriores, ao decidirem, cometeram ilegalidade, em prejuízo da liberdade, efetiva ou potencial, de alguém do povo. É, pois, imprescindível que o Supremo Tribunal Federal, tal como a Suprema Corte norte-americana, a par de exercer sua precípua missão de guardião da Constituição da República, exerça, também, a proteção da liberdade de cada cidadão, zelando pela estrita legalidade das condenações penais impostas pelas instâncias judiciárias inferiores.

Se for muito difícil a mudança cultural da nossa mentalidade aristocrática e autocrática para a mentalidade democrática e da isonomia entre os cidadãos, sejam eles governantes ou governados, sejam de camadas sociais distinguíveis pelo poder de aquisição de bens patrimoniais, que, ao menos se prive o Supremo Tribunal Federal de desempenhar o papel de julgador originário de delitos praticados por agentes públicos.

Evoque-se, aqui, pertinente observação do Professor THIAGO BOTTINO sobre o processo e julgamento originário da ação penal vulgarmente conhecida como Mensalão:

“A segunda lição que aprendemos é que o Supremo não deve mais julgar casos como esse. Nossa mais alta Corte ficou completamente imobilizada por meses, prejudicando o julgamento de questões extremamente importantes. (...) Os ministros foram levados à exaustão e as sessões intermináveis sobre o mesmo caso desgastaram as relações entre eles. Além disso, por serem homens, não deuses, nossos ministros erram. Sobretudo quando examinam um caso como se fossem juízes de primeiro grau. E, quando um ministro do Supremo erra, não há quem possa corrigi-lo. Isso não é bom para o Estado de Direito nem para o devido processo legal. É preciso modificar a regra do foro privilegiado e dar mais valor à possibilidade de que haja ao menos um recurso para tribunal diferente” (Lições do mensalão, artigo de Thiago Bottino, Doutor em Direito Constitucional pelo PUC-Rio, é coordenador da graduação da FGV Direito Rio, publicado no Correio Braziliense, de 14 de maio de 2013, pág. 13).

Também, a renomada Professora Flávia Piovesan, em artigo publicado no jornal “O Globo”, edição de 31 de março de 2016, p. 15, apregoa “o fim do foro privilegiado por ser instituto incompatível com o Estado Democrático de Direito”.

De igual modo, o eminente Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, em recente palestra proferida na Universidade de Nova York, no dia 12 de abril de 2016, deixou clara a necessidade de uma reforma constitucional para, ao menos, se proceder a uma “drástica redução do foro por prerrogativa de função, resquício não-republicano e falho que ainda subsiste na Constituição de 1988 e que contribui para a impunidade de agentes públicos” (apud Notícias Conjur de 12 de abril de 2016)

Por fim, como corolário, convém transcrever, aqui, o conteúdo de placa existente na recepção de cada Gabinete de Ministro do Supremo Tribunal Federal, de autoria do eminente Ministro Celso de Mello, sobre a verdadeira missão de nosso Tribunal Maior:

“Missão do STF
Incumbe ao Supremo Tribunal Federal, no desempenho de suas altas funções institucionais e como garantidor da intangibilidade da ordem constitucional, o grave compromisso – que lhe foi soberanamente delegado pela Assembleia Nacional Constituinte – de velar pela integridade dos direitos fundamentais, de repelir condutas governamentais abusivas, de conferir prevalência à essencial dignidade da pessoa humana, de fazer cumprir os pactos internacionais que protegem os grupos vulneráveis expostos a injustas perseguições e a práticas discriminatórias, de neutralizar qualquer ensaio de opressão estatal e de nulificar os excessos do Poder e os comportamentos desviantes de seus agentes e autoridades, que tanto deformam o significado democrático da própria Lei Fundamental da República. Ministro CELSO DE MELLO”

Se a transformação de nossa mentalidade aristocrática, retratada no instituto de foro por prerrogativa de função, hoje estendido ao Superior Tribunal de Justiça, aos Tribunais Regionais Federais e aos Tribunais de Justiça dos Estados encontrar muita resistência, que, ao menos, se preserve o Supremo Tribunal Federal, com urgente proposta de emenda constitucional para afastar deste a competência para o processo e julgamento de ações penais originárias. Os aplausos serão maiores se a iniciativa de tal proposta for da própria Suprema Corte, principalmente tendo em vista as manifestações de alguns de seus Ministros aqui expostas. Que ela seja verdadeiramente Corte Constitucional e tutelar da liberdade individual e deixe de ser Tribunal Penal originário.

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*Aristides Junqueira Alvarenga é ex-procurador-Geral da República e advogado do escritório Aristides Junqueira Advogados Associados S/S.

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