Migalhas de Peso

A resolução normativa Aneel 414/10 e a revisão judicial de atos regulatórios

Norma passou por amplo e legítimo debate público, não se tratando de uma imposição desarrazoada, mas sim de processo sujeito à participação da sociedade como um todo.

30/3/2016

A lei 9.427/96 instituiu a Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel e disciplinou o regime das concessões de serviços públicos de energia elétrica. Dentre as atribuições da Aneel está a de regular o serviço concedido, permitido e autorizado, além de fiscalizar permanentemente sua prestação.

Para regulamentar as condições gerais de fornecimento de energia elétrica, em substituição à resolução 456/00, a Aneel editou a Resolução Normativa 414/10, diploma que passou por um amplo e legítimo debate público, não se tratando de uma imposição desarrazoada, mas sim de processo sujeito à participação da sociedade como um todo.

Nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho a regulação1, “ao contrário do que alguns advogam, trata-se do exercício de função administrativa, e não legislativa, ainda que seja genérica sua carga de aplicabilidade. Não há total inovação na ordem jurídica com a edição dos atos regulatórios das agências. Na verdade, foram as próprias leis disciplinadoras da regulação que, como visto, transferiram alguns vetores, de ordem técnica, para normatização pelas entidades especiais”.

O autor Sergio Varella Bruna, citando Eros Roberto Grau,2 ao expor sobre a relação entre os “regulamentos” e o princípio da legalidade, assim leciona: “Para identificar os limites entre lei (ato do Legislativo) e regulamento (ato do Executivo), o mesmo Eros Roberto Grau procura identificar na Constituição duas ordens de legalidade. A primeira, uma exigência apenas relativa, está contida no comando geral do inciso II do art. 5º da CF, segundo o qual ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’. A essa legalidade, em termos relativos, designa ‘reserva da norma’, campo no âmbito do qual pode haver, por ato legislativo, autorização (implícita ou explícita) à edição complementar de atos regulamentares pelo Executivo para, ‘no exercício de função normativa, definir obrigação de fazer ou deixar de fazer que se imponha aos particulares – e os vincule’. Trata-se, aí, de obrigações de fazer ou deixar de fazer alguma coisa ‘em virtude de lei’ e não necessariamente ‘por lei’. O comando gerador de obrigação pode ser veiculado, destarte, no corpo do texto regulamentar”.

Mais à frente, conclui o autor3 que “assiste inteira razão ao autor em comento quanto à identificação de dois níveis de legalidade no texto constitucional e à possibilidade de atribuição de função normativa a órgão do Poder Executivo para complementar os comandos legais previstos na lei de autorização, no campo do que esse jurista designa reserva da norma”.

A Aneel – Agência Nacional de Energia Elétrica – é titular da fiscalização e edição de complementos normativos que visam ao equilíbrio do caráter público do serviço prestado em relação à natureza privada das concessionárias.

Neste descortino, seja em decorrência do princípio da separação dos Poderes, seja pela formatação constitucional delimitada para os serviços públicos prestados em regime de concessão, certo é que há um limite ao controle judicial, sob pena de se ferir a segurança jurídica e o Estado Democrático de Direito.

Sérgio Guerra4, com precisão, diagnostica que “o controle judicial dos atos administrativos discricionários, na maioria das vezes, limita-se à mera invalidação deste mesmo ato para que a administração pública edite outro que não esteja maculado de arbitrariedade, irrazoabilidade ou desproporcionalidade. No entanto, é cada vez mais comum que, em determinadas situações de natureza regulatória, notadamente de grande apelo popular, essa invalidação do ato administrativo seja seguida de um comando judicial que o substitui no mérito”.

Segue seu raciocínio afirmando que:

A função jurisdicional, instituída, dentre outros fins, para evitar ou sustar os atos administrativos exarados com erro, abuso e arbitrariedade, é imprescindível para o Estado Democrático de Direito e para a manutenção das garantias e direitos fundamentais dos cidadãos. Entretanto, em alguns casos, o excesso da atuação jurisdicional sobre as decisões administrativas traz consigo a controvérsia acerca da substituição das decisões de agentes públicos, democraticamente eleitos ou não, pelos juízes.

(...)

Quando um juiz decide modificar um ato administrativo de caráter geral, seja ele vinculado ou discricionário, exarado com o fim de apreciar um determinado direito, individual ou coletivo, os efeitos desse ato, em regra, afetam os administrados envolvidos, ou seus impactos quase sempre são abrandados e diluídos na coletividade.

Por outro lado, se o julgador alterar um ato administrativo regulatório, que envolve, fundamentadamente, a eleição discricionária dos meios técnicos necessários para o alcance dos fins e interesses setoriais – despido das pressões políticas comumente sofridas pelos representantes escolhidos pelo sufrágio -, esse magistrado, na maioria das vezes, poderá, por uma decisão voltada a apenas um dos aspectos em questão, danificar a harmonia e equilíbrio de um sistema regulado. (Ob. cit., pág. 197).

De forma brilhante, este mesmo autor arremata a questão5, registrando que “em conformidade com o vigorante princípio norteador da ordem econômica, a liberdade de iniciativa visa assegurar a dignidade da pessoa humana, conforme os ditames da justiça social. Desse modo, a regulação das atividades econômicas lato sensu se legitima através da ponderação de valores e interesses envolvidos. Nessa ordem de ideias, os parâmetros de controle judicial do gênero ‘ato administrativo’ são insuficientes para desvendar todas as indagações que envolvem os fins e repercussões do controle judicial da tecnicidade do ‘ato administrativo regulatório’ de atividades econômicas”.

E continua: “assim, nos parece que o controle judicial dos atos regulatórios deve estar presente sempre que houver dúvida acerca da observância do due process of law notadamente na apreciação da vinculação da decisão regulatória com os fatos do caso real. Entretanto, o magistrado não deve perscrutar a interpretação prospectiva do regulador, que deve concentrar a preocupação com os impactos futuros, mediante a ponderação dos benefícios e dos ônus advindos da regulação. Os impactos sistêmicos do ato regulatório ultrapassam a competência do magistrado. Nesse sentido, Luís Roberto Barroso conclui que, em matéria de agências, ‘é decisivo que o Judiciário seja deferente em relação às decisões administrativas. Ou seja, o Poder Judiciário somente deverá invalidar decisão de uma agência reguladora quando evidentemente ela não puder resistir ao teste de razoabilidade, moralidade e eficiência. Fora dessas hipóteses, o Judiciário deve ser conservador em relação às decisões das agências, especialmente em relação às escolhas informadas por critérios técnicos, sob pena de cair no domínio da incerteza e do subjetivismo’”.

Tratando-se de atividade legal e constitucional, não se apresenta razoável o afastamento de determinadas disposições regulatórias mediante a aplicação isolada de alguns diplomas, como por exemplo o CDC. Evidentemente, a lei 8.078/90 versa sobre matérias importantes no nosso ordenamento jurídico, mas não é uma norma única, isolada.

Cabe ao intérprete, ao aplicar a norma estabelecida pela agência reguladora competente, apurar sua legitimidade dentro do contexto legal no qual foi produzida, para o qual convergem diversos instrumentos legais, como as leis 8.987/95, 9.074/95, 9.427/96, o CDC e, principalmente, a CF de 1988.
____________________

1 ARAGÃO, Alexandre Santos de (COORD) – O Poder Normativo das Agências Reguladoras – Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, págs. 81-85
2 Agências Reguladoras: poder normativo, consulta pública, revisão judicial – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003 – págs. 113/114
3 Ob. Cit. – pág. 115
4 Atualidades sobre o Controle Judicial dos Atos Regulatórios, in Elena Landau (Coord.) – Regulação Jurídica do Setor Elétrico, Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006 – pág. 187
5 Ob. cit., págs. 198/199.

____________________

*Umberto Lucas de Oliveira Filho é advogado do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Afinal, quando serão pagos os precatórios Federais em 2025?

19/12/2024

Atualização do Código Civil e as regras de correção monetária e juros para inadimplência

19/12/2024

5 perguntas e respostas sobre as férias coletivas

19/12/2024

A política de concessão de veículos a funcionários e a tributação previdenciária

19/12/2024

Julgamento do Tema repetitivo 1.101/STJ: Responsabilidade dos bancos na indicação do termo final dos juros remuneratórios

19/12/2024