Migalhas de Peso

Da estranha democracia brasileira – e da dificuldade que tenho de explicar nossas questões aos amigos gringos

São questões que não se sustentam ou se sustentariam caso acopladas a um regime realmente democrático.

30/3/2016

Vivi no Reino Unido os últimos três anos e há alguns meses estou aqui de volta. E que ninguém me pergunte porque voltei, já que até agora não achei um motivo bom o suficiente. Mas se pode servir de consolo, nasci brasileiro, e isso justifica eu estar nessa peleja, como todos nós.

Fiz muitos amigos por lá. O “inglês”, diferentemente do que cheguei a pensar, é solidário, confiável e muito bom amigo, “amigo de verdade”. E assim são também os muitos e muitos estrangeiros que lá fixaram morada e aprenderam a viver civilizadamente. A organização no Reino Unido é muito racional e abrangente, de modo a conduzir o forasteiro a agir sempre da mesma forma dos nativos, por praticidade e razoabilidade.

Meus amigos de lá, por vezes me perguntavam se o Brasil seria de fato uma democracia. A circunstância do Brasil, na época em que eu estava por lá, ser considerado um emergente em desenvolvimento, parte da ex-sigla Brics, causava sérias suspeitas. De fato, parecia estranho um país estar agrupado à Rússia, Índia, China e África do Sul e ter a pretensão de ser democrático.

Então tinha de me perder em explicações. Dizia que o Brasil talvez fosse o único democrata do agrupamento, sendo essa sua vantagem competitiva ante aos demais. Ressalvava, porém, que nossa democracia era apenas política e de expressão, já que aqui não havia mesmo e nunca houve democracia econômica. Nossa sociedade de fato está a milhões de anos luz de ser uma economia democrática, e todos na Europa conhecem o “gap” que existe entre ricos e pobres em nossa Pátria. Mas até aí, democracia econômica é um fato quase que inexistente na face da Terra, a depender da visão e do viés do analista.

E em seguida havia sempre um sem número de perguntas, relacionadas com, por exemplo, o voto obrigatório aqui existente, a violência policial e a situação prisional, o tratamento miserável prestado à parte da população, as deficiências do nosso sistema de saúde e educação, a nossa conhecida e generalizada corrupção; ao domínio econômico reinante nas nossas cadeias de informação (o que era sempre lembrado por um vizinho que aqui vivera); questões tais que por vezes me faziam pensar se de fato o Brasil seria uma democracia. E então ficava refletindo sobre o que era de fato democracia. Sobre sua amplitude. Sobre a verdadeira democracia e a que nos é vendida ou ensinada. E me perdia e nada concluía. Porque estava eu a achar que o Brasil não era democrático, se sempre me disseram que era? Afinal, eu vivi o tempo das “diretas já”, que culminou com uma “eleição indireta”, e que elegeu um governante que a gente queria tendo assumido um outro que ninguém queria. Opa??!!!?

E diante de toda essa dúvida, acho que uma das coisas boas de ter voltado foi não ter que ficar justificando pros amigos gringos que o Brasil era uma democracia. E nesse ponto, melhor agora, que tive certeza que não estamos em uma democracia. Como diz sempre a minha mãe, “nessa vida não tem como um dia depois do outro”.

Acontece que tendo chegado ao Brasil, continuo acompanhando os veículos de imprensa do Reino Unido, especialmente os que mais gosto, The Guardian e The Times e mais outros tantos, blogs, ouvindo rádios etc. E das matérias que leio ou ouço sobre o nosso Brasil, acabo de ter certeza de que o Brasil passa longe de ser uma democracia.

Segundo os correspondentes desses veículos, causa muita estranheza, por exemplo, o fato do processo de Impedimento da Presidenta estar sendo conduzido por um Presidente do Parlamento cuja ficha corrida é no mínimo 100 vezes mais “corrida” do que a da própria Presidenta. Faltaria evidente legitimidade no Processo. Fala-se também do líder do Senado, a quem o procedimento será também enviado, cuja ficha talvez seja umas 50 vezes mais “corrida” que a da Presidenta. Noticia-se as enormes listas de nomes de congressistas e políticos envolvidos em “falcatruas”, todos “aptos” a participar de votações diversas, inclusive as relativas ao pedido de impedimento. Ao uso político e escolhido de decisões judiciais, especialmente direcionadas, e de um certo ministro do STF que está a patrocinar eventos para o vice-presidente atual, principal interessado, a essa altura, no impedimento.

São questões que não se sustentam ou se sustentariam caso acopladas a um regime realmente democrático. Todos nós sabemos disso. Como sabemos também que, cassada ou não a Presidenta, no dia seguinte, continuará aqui toda a malandragem, a corrupção, os regimes espúrios de distribuição de cargos e troca de interesses e a maciça corrupção. E agora também posso enxergar, a falta de democracia.

E antes que alguém comece a me seguir pelas ruas, a me ameaçar ou me chamar de petralha, já que mesmo estou mais para coxinha consciente (“coxiente”), digo que segundo penso, a Presidenta Dilma é de fato a pior presidenta que já tivemos, pelo menos em meu tempo vivido. Taí uma pessoa que nunca serviu para ocupar o cargo. Que não entende nada de condução política. Não sabe dialogar, nem entender as questões alheias, nem estabelecer prioridades, nem conduzir nada que não seja a sua bike. Talvez a principal falha do Lula, que não está sendo investigada, foi ter colocado a Dilma lá, já que sozinha ela não teria ido a lugar nenhum.

Mas que fique claro:

1) não é com regimes de exceção e colocando o estado de direito de lado que vamos vencer nossas dificuldades, qualquer que sejam elas;

2) queimar uma ou duas pessoas lá na ponta para permitir a continuidade de um sistema corrupto e desgovernado não é a solução, ao contrário, é dar condição para que o nosso País possa empiorar ainda mais no futuro;

3) Nossa sociedade somente poderia tirar alguma vantagem desse momento critico, caso houvesse uma condução do processo com o objetivo de mudança em nosso sistema politico; com a alteração da forma de governo, do transito e das relações de poder e bloqueio das usuais barganhas para obtenção de vantagens diversas, medidas efetivas de combate à corrupção em todas as esferas, e ainda outras como o fim do voto obrigatório e a revisão total dos financiamentos de campanha; e

4) que não nos esqueçamos que a longo prazo, somente a educação de nosso povo, a partir de um plano consciente e completo e com muito investimento, poderá nos tirar dessa miséria de viver permanentemente em crise.

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*Mauro Tavares Cerdeira, advogado e economista, é sócio da banca Cerdeira Rocha Advogados e Consultores Legais.

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