A lei 13.605, de 16 de março de 2015, conhecida como novo Código de Processo Civil (NCPC) inova, mais uma vez, ao inaugurar a previsão legal expressa1 dos chamados “negócios jurídicos processuais”, os quais autorizam as partes a intervir no rito procedimental, quando admitida a autocomposição, para adequá-lo às suas conveniências e às da causa, tanto antes (por meio de instrumento particular) quanto durante o processo (art. 190, caput)2.
Trata-se de um corolário das normas fundamentais do processo civil previstas no art. 3º, §§ 2º e 3º do NCPC3, que impõem ao Estado o dever de incentivar, “sempre que possível”, a autocomposição das partes, “inclusive no curso do processo judicial”, formando um verdadeiro sistema multiportas de solução integrada de litígios.
Aproveitando o ensejo dado pelos dispositivos acima, a expressão “sempre que possível” é perfeita para ilustrar que os chamados “negócios jurídicos processuais” não são absolutos ou ilimitados.
Isso porque eles devem receber o necessário controle de validade pelo magistrado, o qual pode recusar-lhes aplicação nas hipóteses legais de nulidade, ou ainda, “de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade” (art. 190, parágrafo único do NCPC).
Não que esse controle signifique que cabe ao magistrado homologar minutas de acordo, mas, sim, que deve sempre considerar aquelas limitações, procedendo ao controle de validade das convenções, seja qual for o momento que lhe são apresentadas, podendo-o fazer de ofício ou a requerimento das partes.
Entretanto, o problema reside justamente em saber quais são tais limitações. O que baliza o controle de validade feito pelo juiz?
Ao se buscar resposta para esta pergunta, de imediato é possível perceber que o referido dispositivo inovador constituiu uma verdadeira cláusula geral, isto é, adota um modelo jurídico aberto, trazendo apenas um ponto inicial de referência interpretativa para os seus conceitos, cujos termos têm significados vagos e indeterminados.
Mas insista-se: quais são os limites?
Pois bem. Apesar da evidente abertura semântica, é elementar, em primeiro plano, a compreensão de que é autorizada a celebração de negócios jurídicos processuais tão somente para otimizar as “regras do jogo”, em prol do benefício mútuo das partes litigantes, as quais podem “moldá-lo” conforme suas conveniências.
Assim, não é a finalidade do instituto permitir que as partes estabeleçam regras para a solução dos conflitos, influindo na atuação função jurisdicional do Estado-juiz. Por isso se dizer que a eficácia dos negócios processuais é exclusivamente endoprocessual, isto é, no âmbito restrito do processo. Admitir o contrário seria delegar a competência constitucional de regular o procedimento (art. 24, inciso XI, da Constituição4) para as partes, incorrendo em flagrante inconstitucionalidade.
E mais: é elementar, também, o respeito ao “modelo constitucional do processo civil”, que limita a atuação dos sujeitos processuais e o grau que ela pode ser exigida e exercitada concretamente, devendo-se, portanto, preservar o núcleo fundamental dos direitos e princípios fundamentais processuais.
Em dizeres práticos e exemplificativos, é inadmissível - ou melhor, nulo – as partes convencionarem uma nova espécie de recurso; inovarem nas hipóteses que autorizam a rescisão do trânsito em julgado de uma decisão judicial; hierarquizarem/tarifarem o valor probante dos meios de prova; modificarem os critérios de competência absoluta etc.
Ao revés, é plenamente admissível – leia-se válido – reduzirem os prazos processuais, inclusive os peremptórios; autorizarem o recebimento de intimações por e-mail; possibilitarem a carga de autos por pessoas autorizadas pelos advogados constituídos; fixarem a impenhorabilidade de determinados bens das partes, além dos protegidos por lei; estabelecerem o rateio de despesas processuais; fixarem a impossibilidade de execução provisória; dispensarem a necessidade de assistente técnico; estabelecerem regras de sucumbência e de rateio das custas processuais; estabelecerem ordem obrigatória de bens sobre os quais deve recair a penhora etc.
Dito isso, todo o esforço para tentar esclarecer esse novo instituto inserido na sistemática processual cível é válido. Todavia, a bem da verdade, a novidade, assim como tantas outras trazidas pelo Novo Código de Processo Civil, ainda renderá muitas discussões e debates nas rodas jurídicas.
A tendência é que se siga a cultura jurídica brasileira e a aplicação dos negócios jurídicos processuais somente se aperfeiçoe, na prática, com as balizas impostas pela jurisprudência dos Tribunais.
Mas uma coisa é inegável: trata-se de uma moderna e proveitosa ferramenta, com elevado potencial de desonerar e acelerar o processo, que propicia o desenvolvimento de um papel mais ativo das partes, reforçando um modelo comparticipativo de processo, mitigando o velho dirigismo processual exercido pelo Estado-juiz.
Para tanto, necessita-se, acima de tudo, de uma radical mudança de mentalidade, de postura ao litigar, por parte dos sujeitos da dinâmica processual, acostumados em pensar, de forma extremada e, muitas vezes, cega, somente nos seus próprios interesses, refletindo o que Willian Ury e Roger Fisher chamam de “barganha posicional” ao longo da clássica obra sobre negociação intitulada Como chegar ao sim: como negociar acordos sem fazer concessões.
Em suma, deve-se, sempre que possível, ver a parte contrária como um eventual aliado e o processo como um “mal” necessário, mal este que pode ser afastado de forma mais rápida e barata se houver uma cooperação mútua entre as partes, podendo ambas sair ganhando com isso – na maioria das vezes, tempo e dinheiro –, mesmo que a decisão final da causa seja contrária aos interesses de uma delas.
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*Renato Vaquelli Fazanaro é advogado associado do BGR Advogados.