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A coisa julgada na pauta do Supremo Tribunal Federal

Embora sejam sobretudo lides de natureza tributária, os conceitos ali discutidos transcendem esse campo e têm potenciais desdobramentos em outras searas; inclusive se consideradas as disposições do novo CPC.

21/3/2016

Conquanto o STF pareça, ao menos aos olhos do grande público, estar quase que exclusivamente ocupado com temas de natureza penal, a pauta daquela Corte também inclui relevantes controvérsias civis que gravitam em torno do instituto da coisa julgada. Embora sejam sobretudo lides de natureza tributária, os conceitos ali discutidos transcendem esse campo e têm potenciais desdobramentos em outras searas; inclusive se consideradas as disposições do novo CPC.

O presente artigo, de forma deliberadamente limitada, chama a atenção para dois desses aspectos, sob a forma de indagações.

I) O verbete 343 da súmula da jurisprudência dominante do STF segue inaplicável à ação rescisória fundada em dispositivos constitucionais?

Como é sabido, a jurisprudência – com o respaldo da doutrina – há muito reconhece que, para efeito de ação rescisória, não há violação a literal disposição de lei quando, ao tempo da decisão rescindenda, grassava divergência jurisprudencial sobre o tema. Isso está expresso no verbete 343 da súmula da jurisprudência dominante do STF. De outra parte, é igualmente sabido que a jurisprudência dessa Corte, a partir de um dado momento, reconheceu ser inaplicável o verbete quando, ainda em rescisória, a alegada violação fosse a dispositivo constitucional; donde resulta maior abertura para aquele excepcional remédio que, não fosse por isso, seria descabido. Em síntese, entendeu-se inaplicável o teor do enunciado 343 porque não se poderia falar em interpretação razoável da Constituição (diferentemente do que seria admissível para a lei ordinária). Também se argumentou, mais adiante, que admitir a rescisória sem o óbice do verbete seria forma de preservar a autoridade do STF, na função de guardião da Constituição; e, mais ainda, de tutelar a isonomia, pela uniforme aplicação das regras legais a todos os destinatários (Cf. voto do Ministro Teori Zavascki, no RE 590.809-RS).

Recentes debates havidos no âmbito do referido tribunal pareciam ter colocado o entendimento em xeque: de voto proferido pelo Ministro Marco Aurélio, por exemplo, colhe-se a assertiva de que “A rescisória deve ser reservada a situações excepcionalíssimas, ante a natureza de cláusula pétrea conferida pelo constituinte ao instituto da coisa julgada. Disso decorre a necessária interpretação e aplicação estrita dos casos previstos no artigo 485 do Código de Processo Civil, incluído o constante do inciso V, abordado neste processo. Diante da razão de ser do verbete, não se trata de defender o afastamento da medida instrumental – a rescisória – presente qualquer grau de divergência jurisprudencial, mas de prestigiar a coisa julgada se, quando formada, o teor da solução do litígio dividia a interpretação dos Tribunais pátrios ou, com maior razão, se contava com óptica do próprio Supremo favorável à tese adotada. Assim deve ser, indiferentemente, quanto a ato legal ou constitucional, porque, em ambos, existe distinção ontológica entre texto normativo e norma jurídica” (cf. Recurso Extraordinário 590.809-RS).

Outra ilustração do que foi dito acima está em julgamento no qual se teria reafirmado a vigência do verbete 343 “inclusive quando a divergência jurisprudencial e a controvérsia de entendimentos se basear na aplicação de norma constitucional” (cf. AR 1.415, relator Ministro Luis Fux, julgado pelo Plenário em 9/4/15). Com base nessa decisão, houve mesmo que identificasse mudança da jurisprudência da Corte (cf. Andrei Pitten Velloso, “Ação rescisória em matéria tributária: a súmula 343 do STF, a doutrina da legitimidade de interpretação razoável da norma e o novo CPC”, in Carta Forense, São Paulo, fevereiro de 2016, p. A10).

Contudo, salvo melhor juízo, o entendimento segundo o qual não incide o óbice do verbete 343 à rescisória fundada em violação à Constituição subsiste no STF; que recentemente o reafirmou ao explicitar o seguinte: o que a Corte decidiu foi apenas o descabimento da rescisória diante da superveniente modificação da jurisprudência do STF (cf. AR 2.370, relator Ministro Teori Zavascki, julgado em 22/10/15).

De qualquer modo, não se pode descartar que, no futuro, a discussão renasça ao ensejo de debates acerca de uniformidade e estabilidade da jurisprudência, postulados tão caros ao novo Código de Processo Civil (art. 926). É que, ao reafirmar que a súmula 343 não se aplica às rescisórias fundadas em violação à Constituição da República, o STF acaba por mitigar o valor segurança, ainda que, paradoxalmente, o tribunal o faça sob o argumento de prestigiá-la: se o verbete incidisse, simplesmente não seria caso de ação rescisória e, portanto, nem mesmo por essa via excepcional seria possível rescindir sentenças transitadas em julgado, conquanto em desacordo com a jurisprudência do STF. Aliás, nesse caso, as discussões acerca de eventual eficácia rescisória – direta e imediata – por força decisão proferida em controle de constitucionalidade ou não surgiriam, ou quando menos teriam outra dimensão.

O argumento de que a abertura para a ação rescisória em matéria constitucional prestigiaria a isonomia reclama cuidado: a potencial desigualdade na resolução de controvérsias por decisões judiciais é um fenômeno quiçá inevitável, a começar pela circunstância de que o acesso ao Judiciário não é igual para todos; não apenas por impossibilidade de se ir a juízo, mas pela eventual opção de não se ir. Ademais, a isonomia deve ser buscada pelo sistema preferencialmente antes da formação da coisa julgada. Para isso há mecanismos que procuraram “molecularizar” a tutela jurisdicional (para usar expressão empregada pelo Professor Kazuo Watanabe), sendo as demandas coletivas (em sentido lato) disso um bom exemplo. Também se prestam a tal finalidade, embora por caminhos diversos, as técnicas de julgamento de causas ou de recursos repetitivos. Contudo, depois que se forma a coisa julgada entre partes, a busca da isonomia cede espaço à segurança. Nesse terreno, não se pode confundir a confiança que a coisa julgada proporciona, de um lado, com a confiança na estabilidade da orientação da jurisprudência, de outro lado.

Em nenhum momento – ao menos nas discussões iniciais em torno do verbete 343 – se admitiu pudesse o reconhecimento da inconstitucionalidade de uma lei produzir imediata e geral eficácia constitutiva negativa de todas as decisões transitadas em julgado que tivessem aplicado a lei tida por inconstitucional. Aliás, não fosse assim e não haveria lógica em se afastar a incidência de um verbete que, ao contrário de excluir a rescisória, consagra sua viabilidade.

II) É correto falar em eficácia rescisória automática de decisões proferidas em controle de constitucionalidade?

Sobre eventual eficácia rescisória direta e imediata de decisões proferidas em controle de constitucionalidade pelo STF, parece possível afirmar que o entendimento presente do STF é pela negativa, por reputar imprescindível a tempestiva propositura da ação rescisória; o que é bem ilustrado pela assertiva de que “a decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das sentenças anteriores que tenham adotado entendimento diferente; para que tal ocorra, será indispensável a interposição do recurso próprio ou, se for o caso, a propositura da ação rescisória própria, nos termos do art. 485, V, do CPC” (cf. RE 730.462-SP, relator Ministro Teori Zavascki).

Mas, em relação a isso há dois pontos que seguem na pauta da Corte.

O primeiro diz com a vigência dos artigos 741, § único e 475-L, § 1º do CPC 1973, que admitem efeito rescisório de decisão de mérito transitada em julgado fora do processo da rescisória, isto é, por embargos à execução e por impugnação ao cumprimento de sentença, conforme o caso.

O STJ aceitou, quando menos implicitamente, a constitucionalidade das referidas normas ao consolidar entendimento de que a regra do § único do art. 741 “não se aplica às sentenças transitadas em julgado em data anterior à da sua vigência” (verbete 487). Já no STF, há notícia de que a norma é objeto de ação direta de inconstitucionalidade, ainda não julgada (cf. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.418-3); e que perderá seu objeto, diante da entrada em vigor do novo CPC. O novo diploma admite a alegação de inexigibilidade, mas desde que a decisão do STF seja anterior ao trânsito em julgado da decisão; se for posterior, reafirma caber ação rescisória, com a ressalva de que a contagem do prazo se conta a partir do trânsito em julgado da decisão do STF. Mas, mesmo com a entrada em vigor da lei nova, subsistirá discussão decorrente do tempo em que a lei vigorou, a ser apreciada pelo STF em controle difuso e incidental. Tendo em vista a orientação do STF, conforme mencionado neste tópico, parece razoável esperar que essa Corte reconheça, incidentalmente, a inconstitucionalidade dos referidos dispositivos legais.

O segundo ponto acima aventado diz respeito às relações jurídicas de trato continuado, tal como ocorre entre Fisco e contribuinte. Assim, a partir do controle concentrado pelo STF e da declaração de constitucionalidade da norma discute-se se deixaria de vigorar decisão judicial proferida entre partes e transitada em julgado, por aplicação do disposto no art. 471 do CPC (repetida em essência pelo art. 505, I do CPC 2015). Trata-se de ressalva feita em recente julgamento pelo STF (cf. RE 730.462-SP), devendo o tema ser submetido à Corte oportunamente, para que decida acerca da limitação temporal da coisa julgada (cf. Agravo em Recurso Extraordinário 925669 e 861473, esse último renumerado para 947.283, ambos de relatoria do Ministro Roberto Barroso).

A respeito, será preciso considerar se o objeto da decisão transitada em julgado abrange toda a relação jurídica e não apenas parcelas de um dado exercício. O assunto está relacionado com o teor do verbete 239 da súmula do STF. E, a respeito, parece lícito dizer que a orientação do Tribunal é a de que tal enunciado “só é aplicável nas hipóteses de processo judicial em que tenha sido proferida a decisão transitada em julgado de exercícios financeiros específicos, e não nas hipóteses em que tenha sido proferida decisão que trate da própria existência da relação jurídica tributária continuativa” (cf. AI 791.071-MG, Relator Ministro Dias Toffoli).

Outro aspecto parece ser relevante nesse particular: o efeito vinculante da declaração do STF não decorre da validade ou da invalidade da norma, mas sim da sentença – que, na dicção do art. 468 do CPC vigente (art. 503, caput, do CPC 2015), “tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas”. Como já havíamos dito em âmbito doutrinário, “a posterior declaração de inconstitucionalidade (a exemplo do que ocorre com a lei posterior) não se estende à situação já julgada não apenas por razões políticas, mas porque aquela mesma situação tem como preceito regulador a sentença transitada em julgado, e não a norma supostamente retroativa. Portanto, o julgamento transitado em julgado opera como verdadeira lei especial, desligando a situação posta em juízo da norma geral e abstrata” (cf. nosso Ação rescisória, São Paulo, Malheiros, 2005, p. 256).

Certo que a preocupação aí está com situações de desigualdade no caso de relações continuativas, pela circunstância de uma decisão favorecer ou prejudicar um contribuinte em detrimento de outros”. Contudo, se a decisão do STF não é, por si só, capaz de automaticamente desconstituir a coisa julgada estabelecida entre partes; se a decisão transitada em julgado nega a relação jurídica em sua inteireza; então, enquanto não desconstituída a decisão transitada em julgado, subsistiu o preceito normativo estabelecido para o caso concreto (segundo o qual a relação jurídica não existia).

Dessa forma, no tocante a prestações de exigência periódica (não instantânea), a partir da decisão do STF, a decisão dada entre partes – que seja abrangente de toda a relação jurídica – torna-se passível de desconstituição, via ação rescisória. Qualquer outra interpretação afrontaria a premissa tomada com base do que tem decidido o STF: a coisa julgada entre partes não cai automaticamente por força de decisão do STF em controle de constitucionalidade. Em termos lógicos, a ressalva não pode ser, ainda que por vias oblíquas, a simples negação da regra.

Certo também que, a depender do momento em que proferida a decisão do STF, já não caberia rescisória porque decorrido o prazo decadencial de dois anos, contado do trânsito em julgado da decisão rescindenda (CPC 1973, art. 499). Mas, a solução para esse problema não parece ser simplesmente dispensar a propositura da ação rescisória, nem admitir a pura e automática perda de autoridade da coisa julgada formada entre partes, desde o advento da decisão do STF em controle de constitucionalidade. Nesse caso, para argumentar, poderá o STF, em interpretação conforme a Constituição do CPC, dizer que, nessa situação específica, o prazo para a rescisória seria contado de sua decisão em controle de constitucionalidade – e não do trânsito em julgado da decisão rescindenda. Essa é, aliás, a regra que acabou positivada no § 15 do art. 525 do CPC 2015 e que, embora não vigente (e, portanto, não aplicável aos fatos já ocorridos), pode cumprir aqui ao menos a função de norma interpretativa do ordenamento que lhe foi precedente.

Em argumentação, se o STF estiver disposto a alterar a jurisprudência que se formou a respeito do verbete 329 (fazendo-o para reputar que prestações posteriores ao controle de constitucionalidade não estariam mais abrangidas pela coisa julgada), então será preciso uma nova cautela: embora realmente não faça sentido em falar em ação rescisória para algo que não estaria abrangido pela coisa julgada, nem por isso a alteração do que se julgou poderá ser tida por automática e direta.

É que o sistema processual, ao tratar de relações de trato continuado que já foram objeto de decisão judicial transitada em julgado, fala expressamente que o interessado terá o ônus de “pedir a revisão do que foi estatuído na sentença”, conforme expressa regra constante do art. 471, I do CPC 1973 (e repetida pelo art. 505, I do CPC 2105). Portanto, não sendo o caso de rescisão (por ação rescisória), parece ser imprescindível ao menos que o Fisco venha a juízo para postular a revisão do que se julgou, no âmbito do devido processo legal. Eventual dispensa desse ônus e supressão desse ambiente processual vulneraria a letra do dispositivo acima referido. Não se trata de mera formalidade ou protelação, mas de se aferir em cada caso, em que medida houve superveniente modificação no estado de direito; se ela efetivamente se aplica – e de que forma – à relação jurídica no momento presente. Do contrário, se a revisão pudesse ser automática, qual o sentido de a lei ter falado expressamente na necessidade de a parte “pedir a revisão do que foi estatuído na sentença”?

Aliás, qualquer que seja a solução – rescisória ou revisional – forçoso será reconhecer que a desconstituição da decisão transitada em julgado só poderá produzir efeitos ex nunc, considerando-se como tal o trânsito em julgado da decisão proferida na ação rescisória ou na ação revisional. Assim ocorre porque se trata de desconstituir ou de rever a coisa julgada.

Mas, em todo esse contexto, qualquer que seja a solução a ser dada pelo STF, essa Corte deverá ter redobrado cuidado de, ao fazer o controle concentrado de constitucionalidade, considerar a necessidade de modulação da respectiva eficácia: nos casos em que eventualmente não o fizer, poderá ensejar uma plêiade de ações rescisórias (ou de ações revisionais) que, não podendo ser barradas pela incidência do verbete 343, gerarão o sério risco de trazer ainda mais instabilidade para o sistema.

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*Flávio Luiz Yarshell é advogado do escritório Yarshell e Camargo Advogados e Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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