Miguel Reale e a distribuição do ônus entre contribuintes
Eduardo Borges*
Se, no dizer de Reale, a Justiça se correlaciona com a igualdade, esta deve necessariamente orientar a criação e a aplicação do Direito (que, idealmente, serve para a realização da justiça). No campo tributário, isso quer dizer que a igualdade deve servir de parâmetro para as normas que distribuem os ônus dos tributos. Em outras palavras, para a definição de quem pagará (an debeatur) e de quanto será pago (quantum debeatur).
Quando se tratar de um tributo vinculado a uma atuação estatal referida especificamente ao contribuinte - de que é exemplo a taxa - a dimensão do quantum debeatur deve refletir a magnitude desta atuação estatal. Em tais casos, a atuação estatal poderá ou não ser proveitosa ao contribuinte. No caso das taxas cobradas em razão da prestação de serviço público, sempre o será; já no caso das taxas cobradas em razão do exercício do poder de polícia, em regra não haverá benefício imediato, pois a fiscalização é feita no interesse público.
Por outro lado, quando se tratar de tributo não vinculado a uma atuação estatal - de que é exemplo o imposto - o parâmetro utilizado para dimensionar o quantum debeatur será fundamentalmente a capacidade contributiva. Dizemos fundamentalmente, porque outros critérios também poderão ser adotados, por razões extrafiscais, ou seja, para induzir (positiva ou negativamente) determinados comportamentos por parte dos contribuintes. Quanto mais acentuado for o viés extrafiscal do tributo, menos o princípio da capacidade contributiva servirá de parâmetro para o dimensionamento do seu quantum debeatur, e mais importância terão outros princípios, como aqueles da ordem social e econômica.
Quando o tributo tiver uma finalidade meramente arrecadatória (ou fiscal), o dimensionamento do quantum debeatur deve ser feito em função da capacidade contributiva, na medida em que tal providência permitirá a realização do princípio da igualdade. Explico: a utilização de tal parâmetro faz com que os contribuintes experimentem o mesmo grau de sacrifício. O pressuposto, portanto, é de que o sacrifício será tanto menor quanto maior for a sua riqueza.
A principal dificuldade na aplicação do princípio da capacidade contributiva reside na identificação do grau de utilidade marginal de cada unidade de riqueza agregada. Nem sempre o aumento da riqueza proporciona ao seu detentor igual aumento de utilidade (satisfação, proveito, etc.). Não se sabe, entretanto, qual é a diferença entre tais curvas (a da riqueza e a da utilidade). Daí porque não se pode afirmar, a priori, que a tributação segundo a capacidade contributiva deva aumentar proporcional ou progressivamente em relação ao aumento da riqueza. Ou seja, a progressividade - aumento do montante tributo pari passu ao aumento da riqueza - pode ou não ser uma exigência do princípio da capacidade contributiva.
Quando a tributação progressiva implicar a transposição do ponto onde há igualdade de sacrifícios - caso em que os detentores de maior riqueza sofrerão maiores sacrifícios que os demais - ela deixará de ter fundamento no princípio da capacidade contributiva. Nestes casos, a neutralidade será afastada em prol de uma política de redistribuição da renda. No entanto, isto não significa tratamento antiisonômico. O que ocorre é que a graduação do tributo deixa se ser feita em função do princípio da igualdade de tratamento (igualdade se sacrifício) e passa a orientar-se pelo princípio da igualdade de resultados (igualdade no plano fático), princípio este que sofre maior influência do princípio da solidariedade. Mas isso não significa que a tributação segundo a capacidade contributiva seja um desdobramento do princípio da solidariedade, como sustentam alguns juristas.
Apoiado na doutrina tributária tradicional, sustentamos que a capacidade contributiva é um desdobramento do princípio geral da igualdade constante do art. 5º da Constituição Federal de 1988 (CF88). A nosso ver, este princípio (da igualdade em termos materiais) exige que o índice de capacidade contributiva eleito pelo legislador seja apto a proporcionar a distribuição igualitária do ônus tributário (seja igualdade de sacrifícios ou de resultados). Já o princípio específico da igualdade tributária, previsto no art. 150, I, da CF/88, implica apenas a realização da igualdade formal.
Essa questão é de cunho filosófico, mas tem sua relevância prática, porque se a capacidade contributiva estivesse fundada no princípio da solidariedade - como sustentam alguns juristas - seria possível concluir que o princípio da igualdade, no campo tributário, atuaria apenas em um momento subseqüente à escolha, pela norma tributária, de um índice revelador de capacidade contributiva, para assegurar que não fossem feitas discriminações (arbitrárias) entre os sujeitos passivos das obrigações tributárias. E essa conclusão poderia trazer conseqüências drásticas em matéria de tributação, permitindo que o ônus tributário fosse distribuído desigualmente.
A nosso ver, entretanto, o princípio da igualdade atua, prioritariamente, como parâmetro essencial em todos os momentos da dinâmica normativa tributária: seja para impedir que o legislador eleja um índice que, embora revelador de capacidade contributiva, não permita a distribuição igualitária do ônus tributário, assim como para assegurar que o tributo seja graduado segundo a capacidade contributiva.
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*Presidente do IPT - Instituto de Pesquisas Tributárias, coordenador do LLM em Direito Tributário do IBMEC/SP e advogado tributarista do Ulhôa Canto, Rezende e Guerra –Advogados.
Artigo publicado no jornal DCI em 18.4.2006, página A-4