Narra a notícia que na cidade de Ribeirão Preto/SP, uma mulher grávida de cinco meses, ao buscar atendimento médico na Unidade Básica Distrital de Saúde (UBDS) e recusar-se a receber a medicação prescrita, irritou-se e arremessou sua bolsa contra o vidro da janela, quebrando-o e fazendo com que os estilhaços atingissem um idoso, ferindo-o. O Delegado de Polícia determinou sua prisão flagrancial e, após a lavratura do auto, arbitrou a fiança de R$900,00, que não foi paga e acarretou a segregação da autuada. Posteriormente, um desconhecido providenciou o recolhimento do valor, possibilitando, desta forma, sua liberdade. O fato ganhou grande repercussão e a Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, subseção de Ribeirão Preto, considerou desnecessária a prisão além da falta de bom senso da autoridade policial1.
Analisando o caso sob o prisma legal, abstraindo as condições psíquicas e a gravidez da agente, uma vez demonstradas autoria, materialidade e a lesividade da conduta, trata-se de prática de crimes de dano e lesão corporal, que autorizam a intervenção policial até mesmo com a lavratura do auto flagrancial, principalmente por se tratar de ação penal pública incondicionada, como é o caso do crime de dano. Com relação ao de lesão corporal, segundo o relato feito, a vítima não ofereceu representação. Assim, a persecução penal ficou limitada somente ao crime de dano qualificado, não amparado pela lei 9.099/95 no tocante à fixação de fiança e assinatura do termo de comparecimento, substitutivo do auto flagrancial.
Por esta apertada análise, percebe-se que a autoridade policial comportou-se de acordo com os ditames legais, não levando em consideração qualquer outra circunstância que afastasse a prisão em flagrante. Nada a recriminar, portanto, com relação à legalidade do ato.
Pois bem. A comunidade local, com o apoio da OAB, não se conformou com a determinação policial, por entender que a resposta foi muito além da insignificante conduta da autuada. Daí ponderou que faltou bom senso à decisão do Delegado de Polícia.
Muito se tem falado e discutido a respeito do bom senso. Alguns o relacionam diretamente com o Direito, tabelando-o como se fosse uma norma cogente, de aplicação imediata, com toda sua carga mandamental. Outros, com uma avaliação mais expansiva, até que aceitam uma normatização a respeito do tema, mas aconselham uma leitura social da conduta. Quer dizer, qualquer pessoa no lugar do agente teria um comportamento idêntico, desde que fosse acatado pelo consenso popular. O termômetro passa a ser a razoabilidade social compartilhada da conduta.
Assim, numa definição singela, pode-se dizer que bom senso vem a ser a decisão tomada por autoridade que, não desmerecendo o teor legal, profira uma decisão que mereça a aprovação popular, em razão de circunstâncias que a justificam. Aproxima-se muito da conceituação do princípio processual da equidade, de conteúdo hermenêutico, que nada mais é do que uma elasticidade maior que se dá à lei, atenuando seu rigorismo para alcançar seus objetivos e com o tempero necessário às suas palavras, levando-se em consideração o perfil da sociedade, a excepcionalidade do caso e, principalmente, a solidariedade humana.
O imbróglio ficaria, neste raciocínio, entre a determinação legal e a conceituação moral da medida adotada. Hart, com a perspicácia interpretativa que lhe é peculiar, sentencia: "Todas as sociedades que desenvolvem um sistema jurídico têm, entre suas normas não jurídicas, algumas às quais atribuem suprema importância, e que, apesar de diferenças cruciais, se assemelham muito a seu direito".
É certo que a autoridade policial não é detentora de flexibilidade interpretativa, uma vez que sua função é de arrecadação de provas para apurar a prática de um determinado fato tido como criminoso. O que a lei permite, de acordo com a intepretação do § 1º do artigo 304 do Código de Processo Penal, por ser uma medida emergencial, sem qualquer ordem judicial, no âmbito do crivo de viabilidade do auto, é o relaxamento da prisão, se não resultar suspeita contra o conduzido.
Cum grano salis e com toda cautela necessária para interpretar a lei conferindo a ela a sensibilidade necessária, diante das nuances próprias do caso e, lançando mão também do princípio da discricionariedade que rege a conduta do Delegado de Polícia, poderia ele, mediante decisão fundamentada, elaborar um boletim de ocorrência para, posteriormente, dar início à persecução penal, evitando, desta forma, qualquer pagamento de fiança e muito menos a prisão considerada desnecessária. Ajusta-se também ao caso o princípio da razoabilidade.
Não se trataria de conduta omissiva que pudesse esbarrar na prática de eventual prevaricação, pois a autoridade responsável não deixou de praticar ato de ofício e nem mesmo o praticou contra disposição expressa de lei. Procuraria sim, dentre as opções oferecidas, optar pela que reunia melhores condições para a adequação procedimental conveniente, atendendo o clamor público e o espírito da lei.
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2 Hart, H.L.A. O conceito de direito. Tradução de Antonio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 221.
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