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Código Brasileiro de Justiça Desportiva: recentes mutações

O Código Brasileiro de Justiça Desportiva - CBJD, aprovado pela Resolução nº 1, do Conselho Nacional de Esporte (D.O.U de 24.12.2003), foi recentemente alterado pela Resolução nº 11 (D.O.U de 31.3.2006) - cuja publicação consolidada pode ser encontrada no site www.ibdd.com.br -, visou ao aprimoramento das regras codificadas, após a experiência vivenciada e colhida no decurso de dois anos de aplicabilidade, tornando perceptíveis tanto os avanços, quanto às impropriedades e excessos a exigir necessárias derrogações e inadiáveis correções e ajustes.

19/4/2006


Código Brasileiro de Justiça Desportiva: recentes mutações

Álvaro Melo Filho*

"No mundo do desporto não há espaço para regras e normas petrificadas".

O Código Brasileiro de Justiça Desportiva - CBJD, aprovado pela Resolução nº 1, do Conselho Nacional de Esporte (D.O.U de 24.12.2003), foi recentemente alterado pela Resolução nº 11 (D.O.U de 31.3.2006) - cuja publicação consolidada pode ser encontrada no site www.ibdd.com.br -, visou ao aprimoramento das regras codificadas, após a experiência vivenciada e colhida no decurso de dois anos de aplicabilidade, tornando perceptíveis tanto os avanços, quanto às impropriedades e excessos a exigir necessárias derrogações e inadiáveis correções e ajustes.


Em razão da dinamicidade dos fatos e do constante devenir dos comportamentos desportivos, o Direito Desportivo quadra-se como "una regulación en eterna reforma o en cambio continuo", a compelir mutações inadiáveis no codexsportivo. Por outro lado, é sabido que os tribunais e órgãos das justiças comum e trabalhista, em todo o mundo, padecem da "ignorancia de los jueces ante las realidades del mundo deportivo, lentitud y pesadez de la maquinaria judicial, y sobre inadecuación de las normas del derecho estatal a las particularidades de la actividad deportiva, na lição de Gérald Simon. Extrai-se dessa corajosa assertiva que a Justiça Desportiva desempenha relevante função no contexto desportivo à vista de três aspectos principais:

a) a especificidade da codificação desportiva e as peculiaridades das normas e regulamentos promanadas dos entes desportivos, aliadas à impreparação e insensibilidade dos tribunais comuns para sua adequada compreensão;


b) a exigência de celeridade decisória dos litígios desportivos que se multiplicam a cada dia, envolvendo disciplina e competições desportivas que não toleram a morosidade da Justiça Comum e Trabalhista;


c) a imprestabilidade e insuficiência do desgastado e tradicional arcabouço processual comum para o trato das demandas desportivas.

Diante dessa realidade, a Comissão de Estudos Jurídicos Desportivos do Ministério do Esporte, da qual sou membro e Relator, debruçou-se sobre as críticas publicizadas e analisou as sugestões materializadas por diversos órgãos e segmentos. E, dentre as sugestões, cabe realçar, por sua consistência, abrangência e coerência técnico-jurídica, as judiciosas proposições oriundas da Comissão de Legislação e Direito Desportivo do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, formalmente encaminhadas ao Ministério de Esporte. Esse conjunto de contribuições de diversificados setores da sociedade, por si só, já asseguram um mínimo de legitimidade às modificações concretizadas no CBJD, ao percorrer um caminho "bem mais participativo e bem menos autista", como averba o jurista desportivo português J. M.Meirim.


Cabe repontar, nesse passo, que o CBJD exercita uma importante função social e pedagógica na esfera da disciplina e das competições desportivas, sem olvidar o caráter civilizatório do desporto ao incutir disciplina (Foucalt, 2002), constituindo-se, por isso mesmo, em pilastra fundamental na construção legal da cidadania no Brasil. De outra parte, o CBJD é instrumento ancilar da Justiça Desportiva, com sede nos §§ 1º e 2º do artigo 217 da Constituição Federal, órgão que se revela como meio ideal para, com presteza e celeridade, responder à crescente multiplicação de conflitos desportivos, a custos mínimos e amoldados às peculiaridades das atividades desportivas.


Nesse contexto, as modificações concretizadas em 28% dos 287 dispositivos do original CBJD buscaram reduzir a incidência de condutas comissivas e omissivas dos atores desportivos que malferem a disciplina e distorcem as competições desportivas, quase sempre deformadas pela supervalorização da vitória, pelos interesses econômicos em jogo e pelo aviltamento dos valores jus-desportivos.


Dentre as alterações já vigorantes no CBJD impende destacar como itens principais:


a) Reparação das impressões equivocadas e erros gramaticais que constaram do texto oficial publicado, em 24.12.2003, no Diário Oficial da União, tais como:

- Art. 3º, inciso II - supressão do termo dispensável;


- Art. 170 - supressão da crase na expressão "às seguintes penas";


- Art. 187, inciso II - alteração do termo por extenso (vinte) por (trinta);


- Art. 187, inciso III - mudança do termo por extenso (vinte) para (sessenta).

b) Ajustes indispensáveis na parte inicial do CBJD objetivando uma melhor organicidade e funcionalidade à atuação dos órgãos da Justiça Desportiva e dar mais efetividade aos princípios processuais adotados pelo CBJD para sancionar os atos desviantes que envolvam disciplina e competições desportivas, matérias que se quadram nas balizas constitucionais fixadas para a Justiça Desportiva.


c) Modernização do processo desportivo inserindo mecanismos mais ágeis e eficazes, por exemplo, ampliando o elenco de atribuições e prerrogativas da Procuradoria da Justiça Desportiva (artigo 21), tornando o Inquérito (artigos 81 e 82) uma ferramenta processual mais harmônica com a realidade jus-desportiva e suprimindo o Recurso Necessário (artigos 143 a 145) para não delongar o procedimento jus-desportivo, seja pela consciência dos efeitos perversos e irreparáveis prejuízos que as tardias decisões acarretam ao sistema desportivo, seja porque a própria Carta Magna fixa em 60 dias o prazo máximo para o deslinde dos litígios de competência da Justiça Desportiva.


d) A conversão parcial da pena pecuniária em atividades de interesse público (artigo 172, § único), ou por meio de medida de interesse social (artigo 176, § 2º), antes adstrita a um máximo de um terço (1/3) foi ampliada para até a metade da pena, dando mais espaço para o tratamento desigual de desiguais, sopesando as condições econômicas dos infratores e ensejando uma efetiva e mais justa individualização da pena.


e) A nova redação do artigo 175, § 2º estabelece que, em caso de penalidade de perda do mando de campo, fica a exclusivo critério da entidade organizadora da competição disciplinar a forma de execução da pena, desde que faça constar, prévia e obrigatoriamente, no Regulamento da competição, a sistemática de cumprimento da penalidade de perda de mando de campo. Desse modo, na materialização da penalidade, entendemos que a entidade dirigente tanto pode determinar a realização da partida em outro campo, como pode, para evitar problemas financeiros e logísticos decorrentes da busca de um novo campo, designar o mesmo campo, impondo, nessa hipótese, sua realização de portões fechados. Tal modalidade não infirma a penalidade, pois o clube punido fica sem a renda e sem a sua torcida, fundamentos maiores da perda do mando de campo.Aliás, numa interpretação sistemática do CBJD é preciso não confundir perda de mando de campo com interdição (artigo 174), única hipótese em que se veda realização da partida na mesma praça desportiva.


f) Boa parte das penalidades pecuniárias ou multas foram reduzidas para atender a um uníssono clamor de toda comunidade desportiva que sempre verberou contra os valores excessivos e desproporcionais originalmente fixados no CBJD. A redução concretizada atrela-se não só à ausência de efetiva comprovação científica ou doutrinária de que multas altas ou penas graves inibem, na prática, condutas contrárias à legislação desportiva disciplinar e competitiva, além de obrigar os órgãos judicantes desportivos, ora a conceder longos parcelamentos, ora a refluir na aplicação das penas de multa em reais valores exigidos pelo caso concreto. Dentro desta filosofia, e, sem pretender estimular a mais mínima impunidade, os valores das multas foram readequados nos casos em que a experiência na aplicação do CBJD indicou a necessidade de ajuste redutor. E dentro do critério adotado as multas de R$ 5.000,00 a R$ 50.000,00 com as modificações variam do mínimo R$ 1.000,00 e máximo R$ 10.000,00. Já as penas pecuniárias que alcançavam de R$ 50.000,00 (mínima) e podiam chagar a R$ 500.000,00 agora correspondem ao mínimo de R$ 10.000,00 e máximo de R$ 200.000,00. Permaneceu inalterada, constituindo-se em única exceção à redução dos valores pecuniários previstos no CBJD, a multa de até R$ 500.000,00 prevista no artigo 231 que sanciona a postulação à Justiça Comum, antes de esgotadas as instâncias da Justiça Desportiva, ou aquele que se beneficiar de medidas obtidas por terceiros ou "laranjas".


g) O artigo 182 prevê a redução das penas à metade, na esfera não profissional, tanto no caso de atletas, quanto na hipótese de entidades de prática desportiva, atendendo ao tratamento diferenciado entre profissional e não profissional exigido na Lex Magna, sem descurar que essa condição - profissional ou não profissional, é do atleta e não da modalidade desportiva. Por isso mesmo, o benefício da redução de penas à metade, quando aplicável a entidade de prática desportiva, alberga aquelas que participam de competições envolvendo, tão só, atletas não profissionais.


h) O artigo 214 foi modificado para apenar, também, a utilização potencial de atleta sem condição legal, sem ficar adstrito àqueles que efetivamente participem da partida ou prova, ou seja, doravante, basta ocorrer a inclusão do atleta irregular na súmula ou documento equivalente para gerar a apenação. As resistências a esta mutação por infirmar parcela expressiva de jurisprudência desportiva esboroam-se quando se indica que a taxa é uma espécie tributária exigida pelo poder público como contraprestação a serviços efetiva ou potencialmente prestados, vale dizer, a inclusão do atleta na súmula tornam-no potencialmente partícipe da competição, e, por isso mesmo, não pode sua entidade de prática desportiva ficar isenta da penalidade constante do artigo 214 do CBJD.


i) O artigo 253, § 2º foi alterado para substituir a possibilidade de pena desportiva perpétua do atleta agressor na hipótese do agredido, em razão da agressão sofrida, não obter a total recuperação da contusão e ficar inabilitado para a prática desportiva pelo resto da vida. Cabe ressaltar que este "talião desportivo", como batizamos, poderia resultar numa penalidade em caráter perpétuo, hipótese vedada e inadmitida pelo artigo 5º, inciso XLVII da Constituição Federal. Assim, em face de dúvidas até de constitucionalidade e juridicidade exsurgidas na aplicação do referido ditame, colocou-se uma limitação de 720 dias como prazo máximo desta tipologia penal-desportiva, mesmo que o atleta agredido permaneça impossibilitado de exercer sua atividade desportiva, ou seja, pondo termo à carreira desportiva o que equivaleria, essencialmente, a negar o próprio direito ao desporto.


j) Mutações de inegável urgência e alcance sócio-desportivo estão contempladas nos artigos 187, 2º e 3º, 213, § 4º e 252, §§ 2º e 3º, alterados para tipificar e sancionar atletas, entes desportivos, dirigentes e torcidas que pratiquem atos não só de racismo, mas outras formas de manifestação discriminatória ou ato intolerante que implique em afronta e menosprezo à dignidade humana. Com efeito, a discriminação de pessoas em função de sua cor, origem étnica, sexo, idade, condição de idoso ou de portador de deficiência, subordinam-se, também, ao regime sancionador desportivo, até porque o desporto deve ser instrumento de luta contra atos expressos ou velados de discriminação. Por isso mesmo, o CBJD previu para tais hipóteses cumulação de penas de multa pecuniária que pode chegar a R$ 200.000,00, perda de mando de campo de 1 (uma) a 10 (dez) partidas, suspensão de 1 a 3 anos, perda de 6 pontos, na primeira infração, e, exclusão da competição, em caso de reincidência. Desse modo, sem esta relevante mutação, o CBJD não estaria respondendo à contemporaneidade dos problemas e demandas desportivas, nem estaria adaptado à recentíssima normativa internacional desportiva. Aliás, a propósito, a o CBJD é bem mais rigoroso do que a Fifa na punição a manifestações a atitudes discriminatórias em partidas de futebol. Vale dizer, as penas previstas na nova redação do artigo 55 do Código Disciplinar da Fifa (Circular nº 1.026, de 28.3.2006) são, comparativamente, mais tímidas e menos onerosas para atletas, dirigentes, clubes e torcidas.


Cabe ressaltar, ainda, no plano de aplicação intertemporal do código desportivo, que as novas disposições de natureza organizacional e processual no CBJD (artigos 1º a 152) aplicam-se imediatamente, de logo, nada obstante o seu art. 286, tanto aos processos em curso, quanto aos futuros, com supedâneo no Código de Processo Civil, cujo artigo 1.211 que dispõe: "Ao entrar em vigor, suas disposições aplicar-se-ão desde logo aos processos pendentes". Por outro lado, as mutações nas penalidades e infrações constantes dos artigos 156 a 284 do CBJD só incidem sobre as competições desportivas iniciadas a partir de 1.4.06, usando-se, aqui o princípio jurídico universal insculpido, de forma direta e objetiva, tanto na nossa Carta Magna quanto no art. 103, n. 2, da Constituição Alemã quando dispõe que “um ato só pode ser punido se sua penalidade tiver sido fixada antes de sua prática”.


Sublinhe-se, por relevante, que se, por um lado, estas alterações no CBJD resolvem alguns problemas, de outra parte, acabam criando outros, passíveis de solução pela doutrina e jurisprudência desportivas. Outrossim, devemos estar cientes e conscientes de que a resolução de conflitos desportivos é matéria complexa, e, não deslembrar que no plano do Direito e da Justiça Desportiva "é preciso aprender a navegar em um oceano de incertezas em meio a poucas ilhas de certeza".


Por derradeiro, as indispensáveis mutações aqui realçadas, em caráter exemplificativo, na reforma parcial do tecido normativo processual e sancionador do desporto brasileiro, certamente tornarão o CBJD mais ágil e pragmático na sua atuação, mais ajustado às novas circunstâncias históricas, mais sensível aos novos paradigmas jus-desportivos internacionais e mais próximo aos anseios da sociedade desportivizada.

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* Advogado. Membro da FIFA, da Comissão de Estudos Jurídicos Esportivos do Ministério de Esporte, do IBDD – Instituto Brasileiro de Direito Desportivo e da Comissão de Direito Desportivo do Conselho Federal da OAB. Consultor da ONU na área de Direito Desportivo.







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