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A inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor na previdência complementar fechada – Adequação do enunciado 321 do STJ

A nova redação merece aplausos, pois traz a segregação necessária entre regimes de previdência complementar completamente díspares.

29/2/2016

1. Introdução

O direito previdenciário no Brasil, não obstante as constantes e complexas lides apresentadas ao Judiciário, ainda é disciplina jurídica manejada por poucos. Talvez pelo pouco glamour da matéria ou mesmo pela inexistência de avaliação no exame de ordem, o fato é que profissionais do direito, em regra, não têm o conforto necessário para formular juízos sobre o tema.

Ensina-nos a dogmática jurídica que quanto maior a pré-compreensão do intérprete sobre a norma jurídica objeto de análise, maior será o provável acerto de sua decisão ou opinião, ao contrário daquele que desconhece o tema, carecendo de maiores estudos e reflexões, o que nem sempre é viável dentro da jornada exaustiva daqueles que já se qualificam, jocosamente, como operários do direito.

Quando adentramos ao mundo da previdência complementar, o tema beira o ocultismo. Não obstante ser disciplinada por legislação própria desde 1977, sem falar nos montepios anteriores à República, são poucos os que se aventuram na área. Mesmo para os iniciados no segmento previdenciário, a proteção complementar é tratada com distância profilática, como se desvinculada do sistema protetivo brasileiro.

Tal realidade tem sua razão de ser. A previdência complementar, especialmente após a EC 20/98, assumiu sua autonomia de funcionamento – não obstante a denominação complementar – descortinando uma realidade ontologicamente necessária. O sistema normativo passa a compreender a previdência complementar com sua real vocação, qual seja, atender os anseios de agentes privados em cobertura voluntária adicional, sem qualquer liame necessário com o sistema público, o qual adota, inexoravelmente, premissas nos planos de benefício e custeio diversas.

Mesmo na organização da previdência complementar brasileira, com a previsão normativa expressa na LC 109/01 (em reprodução da segmentação já prevista na Lei 6.435/77), a divisão em entidades abertas e fechadas nunca foi plenamente compreendida pelo público leigo – a imensa maioria. O resultado inevitável foi, durante muitos anos, a incompreensão de profissionais (ou operários) do direito, com decisões de todo tipo e contrárias às premissas de solvabilidade do sistema. Isso começa a mudar.

2. A Prevalência da Autonomia da Vontade e a Responsabilização pelas Escolhas Individuais

Há não muitos anos, o debate da previdência complementar em juízo era caótico. Não havia consenso sequer sobre as instâncias competentes, com tumulto generalizado entre a relação jurídica de trabalho e previdência complementar, modelos abertos e fechados e, incrivelmente, confusão entre o patrimônio pífio das entidades previdenciárias fechadas com suas vultosas reservas matemáticas, cujos titulares são os participantes e assistidos.

Felizmente, em muito evoluímos. O debate judicial deixou de ser matéria de competência da Justiça do Trabalho – tendo em vista o cristalino preceito do art. 202 da Constituição – assim como o Superior Tribunal de Justiça, em novas decisões, passou a admitir a igualmente transparente norma que determinada a observância do equilíbrio financeiro e atuarial das entidades previdenciárias, abertas ou fechadas (REsp 1.023.053/RS).

Recordo-me, vivamente, das pilhérias de atuários que nós, professores da área, tínhamos de sofrer nos congressos de direito previdenciário, quando fervilhavam as decisões judiciais que estendiam, sem qualquer previsão atuarial remotamente estabelecida no regulamento do plano de previdência, pagamento a assistidos de parcelas variadas, como o vale-alimentação. As previsões do plano de custeio tornavam-se obra de ficção, tendo em vista as constantes mudanças do benefício futuro.

Da mesma forma, o pacta sunt servanda era adotado como dogma insuperável, quando, mesmo no direito privado, já se admitia a possibilidade de reequilíbrio financeiro do contrato. Tudo isso, conjugado com a adoção do Código de Defesa do Consumidor nas relações previdenciárias, acabou por gerar enorme instabilidade nos fundos de pensão (segmento fechado) e, pior, colocar a conta sobre os participantes ativos, que teriam de suprir os recursos necessários para o atendimento das decisões. A celeuma estava instalada entre os próprios participantes e assistidos.

Apesar da correta transferência de competência da previdência complementar fechada da Justiça do Trabalho para a Comum, o viés protetivo teria sido pouco alterado, adotando-se a premissa do participante e, em especial, o assistido, como hipossuficientes frente às poderosas entidades previdenciárias, abertas ou fechadas. Neste sentido foi editado o verbete 321 da súmula de jurisprudência do STJ: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável à relação jurídica entre a entidade de previdência privada e seus participantes”.

De fato, em matéria de conhecimento do tema previdenciário e, pior, capacidade de controle efetivo da gestão previdenciária, é seguramente correto afirmar que a quase integralidade da população brasileira, segundo as regras ordinárias de experiências, se qualificaria no quesito de hipossuficiência (art. 6º, VIII, CDC). Sem embargo, o tratamento idêntico a regimes aberto e fechado era, seguramente, equivocado.

3. A Previdência Complementar Fechada versus a Aberta – O que Há em Comum?

A divisão da previdência complementar em categorias, além de suporte normativo, vai ao encontro do pensamento dogmático-jurídico, organizando os institutos e conceitos jurídicos de forma a permitir o pensamento e aprendizado de forma eficiente. Todavia, na matéria em questão, causa mais confusão do que facilidade.

Nos termos da LC 109/01, em apertada síntese, a diferença entre os segmentos aberto e fechado residiria, principalmente, no regramento de ingresso de participantes. O primeiro seria livre a qualquer pessoa e, por isso, aberto, enquanto o segundo, restrito a empregados de determinada empresa ou associados de determinada entidade, seria fechado. Outros aspectos, a priori periféricos, seriam, por exemplo, a absoluta ausência de finalidade lucrativa do segmento fechado, em detrimento do aberto.

Todavia, em tais apreciações e segmentações, escapa o essencial. A previdência complementar aberta não é previdência. Este é o cerne do problema. Seja por aspectos culturais, históricos ou mesmo mercadológicos, determinados seguros privados ou mesmo formas de investimento receberam o rótulo de previdência complementar, gerando, para o intérprete incauto, a percepção de um atributo previdenciário que não necessariamente existe, que é a vocação protetiva do gasto frente aos infortúnios da vida.

Um modelo de investimento que permite, em regra, o resgate a qualquer momento e adiciona, como foco principal de ingresso, eventuais vantagens de índole estritamente fiscal, em contexto no qual a imensa maioria das pessoas acaba por usar o capital investido ao longo da vida – quem conhece alguém aposentado pela previdência complementar aberta? – somente com muita dificuldade poderia ser qualificado como verdadeiramente previdenciário.

Em sentido diametralmente oposto há o segmento fechado, o qual, desde seu surgimento, sempre possuiu vocação estritamente previdenciária, com a formação de reservas reais ou nocionais garantidoras de benefícios futuros. Aqui, nunca houve a participação de agentes privados voltados à atuação lucrativa. A previdência complementar fechada não é mais um produto ofertado ao mercado, mas sim a reunião de pessoas voltadas à cobertura de eventos futuros, em uma espécie de condomínio protetivo.

Em suma, o foco é outro. Acredito que por tais motivos, o STJ, naquele momento histórico, deliberou por aplicar o CDC a todos os contratos previdenciários do regime complementar. A ausência de qualquer referência às duas modalidades é emblemática. Seria tudo previdência complementar. Mas o que possuem em comum? Afora o nome, quase nada.

4. Conclusão – Uma Segregação Necessária

Mais recentemente, em clara evolução do tema, o STJ reconheceu a pouca pertinência temática e normativa entre a previdência complementar aberta e fechada. Mantendo a aplicação do CDC somente aos planos de previdência complementar aberta, carecedores de melhor proteção estatal, como produtos financeiros de mercado que são, mas, agora, segregados do regime fechado, o qual, não obstante as elevadas cifras apontadas pela mídia como de patrimônio “dos fundos”, são, em verdade, dos participantes e assistidos.

Com isso, a 2ª seção do STJ, na tarde de 24/02/2016, decidiu cancelar o enunciado 321 da Corte e aprovar outra em seu lugar, nos seguintes termos: "O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às entidades abertas de previdência complementar, não incidindo nos contratos previdenciários celebrados com entidades fechadas."

A nova redação merece aplausos, pois traz a segregação necessária entre regimes de previdência complementar completamente díspares. Naturalmente, não se pretende afirmar que qualquer alteração do regulamento de planos de benefício de entidades fechadas deva ser admitida, pois carece de sólida fundamentação atuarial, mas seguramente possível sem os limites de uma relação de consumo. A situação deficitária de um fundo de pensão, em qualquer hipótese, demanda avaliação técnico-atuarial e envolvimento de participantes e assistidos, de forma justa. O princípio da equidade no custeio, afinal, vale para modelos públicos e privados de previdência (art. 194, V da Constituição de 1988).

_____________

*Fábio Zambitte Ibrahim é advogado do escritório Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça & Associados. Professor adjunto de Direito Financeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Doutor em Direito Público pela UERJ, Mestre em Direito Previdenciário pela PUC/SP.

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