Circula, com grande destaque na mídia, recente decisão de magistrado do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo que determinou o imediato cumprimento de decisão contra a Vasp, aplicando o entendimento tomado pelo STF nos autos do HC 126.292.
Na linha do entendimento da Suprema Corte, que tornou imediatamente eficazes os provimentos jurisdicionais de segunda instância em matéria penal, surge a discussão da aplicabilidade ou não da tese à Justiça do Trabalho e, até, à Justiça Comum.
A favor da aplicação, poder-se-ia sustentar que o STF criou um novo paradigma relativo ao cumprimento das decisões judiciais em geral, não se limitando ao processo penal, e que a tendência atual é a ampliação dos poderes de os Tribunais Superiores fixarem teses que devem ser cumpridas por todas as instâncias e órgãos judiciais.
Uma reflexão parece ser necessária.
O novo CPC consagra a tendência de o direito brasileiro caminhar para a sua aproximação com o sistema da Common Law, de um direito que tinha, e ainda tem, o precedente judicial com força persuasiva, argumentativa, para um direito que destaca a força normativa dos fundamentos, da ratio decidendi. Não obstante esse caminhar, que impõe uma revisão ou uma revisitação de tópicos importantes de toda a tradição jurídica nacional, custosa e quiçá impossível rever completamente, é importante ressaltar que a aplicação pura e simples de precedentes apenas com base em um princípio de praticidade ou de invocação genérica de princípios, como parece ser a crença de todos os que já encamparam ou pretendem encampar o julgado do STF como ratio decidendi para além dos muros do processo penal, é deveras muito perigosa e obsta a que, em um sistema de proeminência de precedentes judiciais, seus operadores se utilizem de um raciocínio de natureza analógica, uma vez que a correta adequação de uma norma jurisprudencial a um dado caso concreto é que informa o esforço interpretativo em um sistema de precedentes. Não há possibilidade de se invocar qualquer precedente ou, mesmo, qualquer regra ou princípio jurídico sem que se faça apurada análise das circunstâncias específicas do substrato fático para a operação de subsunção dos fatos à hipótese normativa, ainda que decorrente de uma ratio decidendi de um precedente jurisprudencial.
Sabe-se que o trabalho do jurista, ao construir o seu sistema jurídico na tentativa de explicar e descrever o seu objeto, o direito tal como posto, enfrenta, basicamente, quatro problemas. O primeiro é o referente ao debate quanto à unidade do sistema, ou seja, de como ordenar as normas que se encontram em desordem no sistema. O segundo é o referente à hierarquia de normas e de comunicação entre as fontes do direito. O terceiro é o referente à completude do sistema, ou seja, à solução dos problemas de lacunas que dificultam a decidibilidade no caso concreto, um dos primordiais intentos para o estudo dogmático do direito. O quarto é o referente à consistência, direcionado a solver os conflitos entre as normas que compõem o sistema, ou seja, à extirpação de antinomias criadas pela dificuldade de se enfrentar a presença simultânea de normas válidas que se excluem mutuamente.
O objeto da ciência jurídica ou da ciência do direito, para a postura que ora se adota, é o estudo do direito, do direito posto, do direito positivo na concepção presente do regime de civil law, mas que poderia ser alargada para o direito posto segundo seus precedentes judiciais, considerando aquela aproximação com o common law. Portanto, a ciência do direito possui, em grande suma, uma linguagem descritiva, que se apresenta em forma de proposições jurídicas, enquanto o direito positivo, objeto da ciência do direito, possui uma linguagem prescritiva, impositiva de condutas (nos possíveis modais deônticos, de “dever-ser”, da “proibição”, da “permissão” e da “obrigatoriedade”, a revelar condutas, para o direito, proibidas, permitidas ou obrigadas).
Essa noção panorâmica da distinção entre a ciência do direito e o direito enquanto objeto concretiza a impossibilidade de a linguagem do cientista do direito ter um encadeamento falho, por um discurso não fundamentado. O cientista do direito, que é o jurista, deve prezar pela unidade da fala, pela coerência e, por fim, pela consistência de seu discurso. A unidade, a completude, a coerência e a consistência não são, necessariamente, objetivos da linguagem prescritiva do ordenamento jurídico positivo (já considerando, também, o ordenamento enquanto formado por seus precedentes judiciais e suas ratio decidendi), mas da ciência do direito. É por isso que existem, no mundo do ordenamento jurídico positivo, ou seja, no mundo do direito enquanto objeto da ciência do direito, as inconstitucionalidades, a necessidade de se reconhecer os efeitos da nulidade ou da anulabilidade e a detecção dos efeitos decorrentes da invalidade normativa. Se o ordenamento jurídico fosse uno e livre de antinomias ou lacunas, função não teriam os intérpretes do direito, os aplicadores do direito, os advogados, os juízes.
A linguagem prescritiva das normas, ainda que originárias de ratio decidendi de precedentes judiciais, é falha e repleta de antinomias e nem sempre podem ser objeto da operação de subsunção de dadas hipóteses fáticas, uma vez que naturalmente incompletas para abarcar as mais diversas situações.
A nossa tradição e a nossa ciência jurídica ainda dispõem, para a correção de falhas em sua completude, de uma regra de estrutura, com função operacional, que pode ser identificada no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), segundo a qual, quando a “lei” for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Há lacuna ou omissão, no sistema jurídico, que requeira a invocação do precedente do STF para além dos muros do processo penal? Pensamos que não.
A CLT tem regras específicas sobre a execução, dispondo sobre execução provisória, notadamente o artigo 899, segundo o qual “os recursos serão interpostos por simples petição e terão efeito meramente devolutivo (...) permitida a execução provisória até a penhora”.
O CPC de 1973 também tem regras específicas sobre a execução e o cumprimento de sentença, merecendo destaque o § 1º do artigo 475-I segundo o qual “é definitiva a execução da sentença transitada em julgado e provisória quando se tratar de sentença impugnada mediante recurso ao qual não foi atribuído efeito suspensivo”.
Na mesma linha, o novo CPC também traz dispositivos específicos sobre o cumprimento provisório e o definitivo das sentenças, mostrando a diferença entre as duas espécies, a partir do artigo 513.
Essas regras específicas, embora infraconstitucionais, confirmam e ilustram a especificidade do processo trabalhista e do processo civil em face do processo penal. Não se trata da análise de um único dispositivo à luz de princípios, mas do exame de toda uma legislação estruturada, com base em uma tradição jurídica própria não abandonada e que pressupõe a lacuna ou a omissão, a partir da distinção entre dois tipos de execução ou cumprimento de sentença – definitiva ou provisória.
Some-se que, embora exista a tendência (consolidada pelo novo CPC) de os Tribunais Superiores serem cada vez mais Cortes de teses, a decisão tomada pelo STF no caso não vincula, mesmo pelo obter dictum, em razão da especificidade da sistemática processual trabalhista e civil. E porque, como já aventado, o sistema jurídico, nesse temário, quer na seara do processo trabalho, quer na seara do processo civil, não apresenta lacuna a ponto de suscitar a incidência, aos casos concretos, da regra disposta no artigo 4º da LINDB e o raciocínio por analogia.
O precedente do STF deve, portanto, ater-se aos confins do processo penal, sem comprometer a completude do sistema jurídico, tal qual nossa ciência jurídica o contempla para esse tópico. A invocação do precedente do STF ilustra, mesmo, para além do processo penal, um risco à completude do sistema que estuda.
Eventual generalização da possibilidade de as decisões das instâncias ordinárias tornarem-se exigíveis de imediato de forma definitiva (já que, por regra, exigíveis provisoriamente elas são, pois os recursos de natureza extraordinária, como os de revista, não têm efeito suspensivo), além de afrontar os dispositivos específicos acima referidos, além do próprio artigo 4º da LINDB, pode causar problemas práticos.
O papel constitucional dos recursos de natureza extraordinária (inclusive os de natureza extraordinária para o Tribunal Superior do Trabalho), de uniformizarem a jurisprudência e dizerem a última palavra sobre a legislação federal, evitando o desrespeito ao princípio federativo, será realizado?
Como ficarão os depósitos recursais? Serão imediatamente liberados? Haverá a necessidade de se fazerem depósitos para os recursos extraordinários subsequentes?
E as cautelares? Haverá um aumento de demandas considerando a necessidade em determinados casos de obtenção de efeito suspensivo? E os óbices das Súmulas 634 e 635/STF, serão aplicados?
Por fim, não é demais lembrar que quando dos debates para a elaboração do Projeto do novo CPC, foi levantada a questão de os recursos extraordinários serem interpostos já após o “trânsito em julgado”, sustentando-se que apenas os recursos ordinários é que evitariam as execuções definitivas. As propostas nesse sentido, apenas para uma pequena incursão em interpretação histórica, não vingaram.
Essas são algumas questões que merecem ser objeto de reflexão aprofundada antes de se concluir pela aplicação direta da decisão do Supremo Tribunal Federal para além do processo penal porque, para além do processo penal, não há falta de critérios de decidibilidade do caso concreto. Tudo o que força a quebra da completude e da lógica normativa, ainda que vivamos uma época de transitoriedade da própria tradição jurídica, é metajurídico e não pode ser, pelo Direito, resolvido.
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