É. Não vou falar de impeachment. Já se escreveu muito sobre esse assunto, com opiniões jurídicas e políticas divergentes. Ele está lá, claramente previsto na "Constituição Cidadã" (Arts. 85 e 86). Trata-se de um instituto de natureza político-jurídica das democracias indiretas ou representativas. Não é golpe!
O jurista e magistrado Kildare Gonçalves Carvalho, em seu best-seller "Direito Constitucional" (BH, Del Rey, 2015) explica minuciosamente os motivos que podem levar ao impeachment do Presidente (ou da Presidenta...) da República e o seu complexo procedimento, envolvendo os órgãos do Poder, em sistema de "freios e contrapesos".
Porém, como prometi no título deste texto, não vou falar mais de impeachment, termo que não tem tradução perfeita na língua portuguesa.
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Quero escrever aqui sucintamente sobre o recall, instituto da democracia semidireta que o Brasil não adota (mas até que poderia vir a adotar...).
Quando se fala em recall (palavra que também não possui tradução perfeita no português), pensa-se logo na indústria automobilística que está sempre recalling (convocando) os compradores para correções em seus veículos recém-adquiridos!
Não. Como já adiantei, trata-se de algo muito interessante ligado ao Direito Constitucional. O recall é, juntamente com o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular e o voto popular, um instrumento da democracia semidireta.
A democracia semidireta não existe continuamente como sistema de governo. Ela acontece eventualmente nas democracias indiretas, sempre que, de acordo com norma Constitucional, o povo (verdadeiro titular do Poder Estatal) é chamado a tomar decisões diretas de governo. Lembre-se que povo, no Direito Público, é, tecnicamente, o conjunto de cidadãos, isto é, dos indivíduos que podem votar e ser votados.
A nossa Constituição, como sabemos, adota o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. Não adota o veto popular nem o recall, como instrumentos jurídico-políticos. E o que é o recall? É a convocação do povo para confirmar ou não, por nova votação eleitoral, o ocupante de cargo político, seja no Executivo, no Legislativo e, até mesmo, em certos casos, no Judiciário.
Nasceu na Grã-Bretanha e é adotado em vários Estados, a começar pelos Estados Unidos da América do Norte. No Reino Unido, é óbvio, não se aplica ao Monarca (que é vitalício e hereditário e não eleito). Nos Estados Unidos, não é usado para o cargo de Presidente da República. E por que o recall não é aplicado ao U.S. President? Porque lá, o Chefe do Executivo é eleito indiretamente por um Colégio Eleitoral (os "grandes eleitores") e não diretamente pelo povo (conjunto de cidadãos), conforme o Artigo II da Constituição.
Essa "reconvocação eleitoral" é adotada em muitos Estados da Federação Americana, principal e mais frequentemente, nos municípios daquele grande país, como realça o insuperável Paulo Bonavides em seu "Ciência Política" (Forense, Rio de Janeiro, 1988). No campo federal não há a mesma aceitação.
"De fato, não há mecanismo na Constituição americana para a deposição do Presidente da República inoperante ou eticamente reprovado, a não ser o impeachment, que é limitado aos casos de high crimes and misdemeanour e não simplesmente pelos desejos dos eleitores", conforme explica o analista político Tom Murse, em seu excelente artigo "Recalling the President is impossible. But impeachment isn’t".
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Já no Brasil, o recall poderia ser adotado pela Lei Maior, pois, aqui, o Presidente (ou Presidenta...) é eleito diretamente pelo povo, que, então, teria a capacidade de convocar uma nova eleição para o mesmo ocupante do cargo.
Os índices de reprovação do desempenho do governo brasileiro atual, incluindo aí uma indesculpável omissão (70% ou mais! negativos) mostrariam a necessidade e a importância do recall em terras brasileiras, onde se adota um presidencialismo exagerado!
Mas isso teria sido e poderá ser trabalho para o Poder Constituinte Originário.
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*Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza é professor de Direito Constitucional e editor-adjunto da Editora Del Rey. Autor do livro "Direito Constitucional Comparado" (Del Rey, 2015).