É interessante observar que a população brasileira, em sua grande maioria, após a prática de algum crime que tenha alardeamento público com divulgação pelas mídias, indaga a respeito da prisão antecipada e a pena a ser aplicada, em caso de condenação, como provável herança das Ordenações. E tal pensamento tem como fonte propulsora a criminalidade crescente e avassaladora, que instala um clima de total insegurança, fazendo com que cada um possa eleger a segregação dos infratores como a solução para estancar a violência. Não se pode olvidar que vários diagnósticos a respeito da criminalidade foram apresentados erigindo-a à categoria de problema científico, mas os métodos apresentados para solucioná-la foram frustrados.
A recente decisão proferida pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal deu nova formatação à prisão, permitindo-a após a confirmação da sentença condenatória em julgamento de segunda instância, sem a necessidade de se aguardar eventual recurso interposto pelo sentenciado. Tal decisão modifica postura anterior do mesmo Tribunal que considerava que a sentença só seria considerada definitiva depois de esgotados todos os meios recursais.
Com todo o respeito que merece a mais alta Corte do país, é inegável que a decisão provocará intensos debates. A postura garantidora constitucional até então era no sentido de que toda pessoa só seria declarada culpada após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, de acordo com o estabelecido no art. 5º, LVII, da Constituição Federal. Com tal premissa fica explicitado que a regra é a liberdade, assim como, da mesma forma, a inocência deve prevalecer enquanto não proclamada judicial e definitivamente em sentido contrário. Isto porque, na dimensão defensiva, o contraditório e ampla defesa, instrumentos basilares no Estado Democrático de Direito, com os meios e recursos inerentes à defesa do cidadão, com suporte constitucional no art. 5º LV, não impõem restrições e nem mesmo limitações ao exercício do direito de defesa, que deve navegar pelo mais amplo canal processual.
Qualquer interpretação em contrário, mesmo alicerçada na necessidade de se combater a morosidade da Justiça e a sensação de impunidade, ou até mesmo para garantir o prestígio das decisões de primeira e segunda instâncias, abre um rombo no sistema constitucional até então garantidor dos direitos assegurados aos acusados que, apesar de condenados em segunda instância, lutam ferreamente pela inocência em instância superior. E pior. A decisão de culpabilidade pela segunda instância não é definitiva, pois se assim for considerada, suprimir-se-á outra instância recursal, que poderá reverter o decisum colegiado e acarretar irreparável prejuízo ao cidadão, em razão da segregação injusta.
É inquestionável que o país vive uma crise de valores com reflexos diretos na área penal e que exige do Estado soluções mais do que imediatas para garantir a segurança pública, visando colocar um fim no círculo de inconformismo que provoca verdadeiro concubinato entre a sociedade civilizada e a criminalidade. Assim, na cruzada persecutória, muitos processos vão tramitando e inundando todas as instâncias, provocando uma verdadeira asfixia jurisdicional. Mas tal fato, por si só, em termos de resposta social, não justifica sacrificar dogmas defensivos e levar à prisão outra população carcerária idêntica ou maior que a atual, cujo sistema já se encontra falido há muito tempo.
É compreensível a força motivadora que determinou a decisão da Suprema Corte para dar ressonância ao clamor popular visando coibir a impunidade e fazer a entrega de uma prestação jurisdicional mais célere. É o que realmente todo cidadão ambiciona. É providência urgente e necessária que os próprios operadores do direito reclamam. Porém, nenhuma decisão pode afrontar a Constituição, lei fundamental que confere estabilidade não só jurídica, como também política e social, principalmente quando afronta as cláusulas consideradas pétreas. E, para que não haja abuso, o próprio poder tem o dever de deter o poder quando a flexibilidade confere aos juízes a possibilidade de modificar a lei para atender os anseios da sociedade, segundo o pensamento de Montesquieu, no Espírito das Leis.
Os princípios filosóficos que nortearam as declarações universais dos direitos dos homens e que se alojaram em nossa Constituição como o reconhecimento do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, fazem ver que a liberdade é conteúdo programático indissociável dos direitos fundamentais do homem e se insere de forma absoluta entre os postulados do Estado de Direito. Com fundamento nesse sistema de controle, a liberdade do cidadão poderá sim ser cerceada pelo Estado, desde que sejam cumpridas as regras estabelecidas constitucionalmente.
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