Variações constitucionais
Miguel Reale*
Tudo começa com a Constituição Imperial, de 1824, outorgada por Pedro I, e integrando o Brasil no sistema dos países com ordenamento constitucional. Com a Constituição monárquica, passamos a fruir dos valores fundamentais da vida política moderna, como a do Governo representativo da separação dos poderes, e da liberdade com característica do Estado, com clara distinção entre este e o povo.
A Constituição monárquica teve algumas notas específicas, como a criação do Poder Moderador, pelo qual o Imperador podia intervir em vários casos para fazer prevalecer o primado constitucional. É difícil compreender o Poder Moderador em um país em que se declara ao mesmo tempo, vigente a separação dos três poderes, sem possibilidade de transferência de atribuições de um para os outros.
É claro que a separação de poderes não era rígida, podendo um mestre como Hauriou dizer que na França o Poder Judiciário era membro do Poder Executivo.
O sistema constitucional encontrou, então, razoável cultura jurídica, tendo sido constitucionalista do período o eminente Pimenta Bueno.
Com a queda do regime monárquico passou a República a ser regida por uma nova Constituição, que foi promulgada a 24 de fevereiro de 1891. Tendo como seu principal constitucionalista Ruy Barbosa.
A Constituição republicana se caracteriza pelo equilíbrio e pela orientação plenamente liberal, na qual o que prevalecia era o ordenamento político claramente distinto do econômico. Não que houvesse desprezo pelos valores econômicos, mas a sua subordinação aos ditames políticos.
A Câmara dos Deputados e o Senado Federal foram os instrumentos da organização política. A partir daí os parlamentares “são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato” e apesar de ter diversas prerrogativas, tinha também certas proibições, como sentenciava o Art. 24: “O Deputado ou o Senador não pode ser Presidente ou parte de diretoria de bancos, companhias ou empresas, que gozem de favor do governo federal, definidos em lei”.
A Câmara era integrada por representantes do povo, sendo que o número de Deputados não podia exceder de 1 por 70.000 habitantes, não devendo esse número ser inferior a 4 por Estado. O Senado era composto por cidadãos maiores de 35 anos, com 3 representantes por Estado e mandato de 9 anos, enquanto os Deputados tinham mandato de 3 anos.
As lei eram sancionadas pelo Presidente da República, o qual também tinha direito de veto, na parte que lhe parecesse indispensável ao bem de vida republicano.
Entre os 35 itens do que competia ao Congresso, estava também o de “declarar em estado de sítio um ou mais pontos do território nacional na emergência de agressão por forças estrangeiras ou de comoção interna, e aprovar ou suspender o sítio que houver sido declarado pelo Poder Executivo ou seus agentes responsáveis, na ausência do Congresso”.
O Presidente e seu Vice eram eleitos por “sufrágio direto da nação e a maioria absoluta de votos. O Poder Judiciário ocupava somente sete artigos da Carta e, segundo ele, o Supremo seria composto de 15; (quinze) Juízes, entre as competências dos Tribunais Federais estava a de processar e julgar os crimes políticos.
Essa Constituição teve vigência pacífica até o advento do Movimento Revolucionário de outubro de 1930, o qual depõe pela primeira vez o Presidente da República, encerrando a vigência da primeira Constituição republicana.
A nova Constituição republicana foi promulgada em 16 de julho de 1934, pela Assembléia Constituinte instalada no ano anterior. Muito mais liberal a Carta anterior, muito influenciada pela Constituição alemã de Weimar, consagrando ampla intervenção do Estado no mundo econômico.
Com a Constituição de 1934, o Brasil se incorpora no mundo ocidental do pós-guerra, contendo aquilo que foi chamado “sentido social do Direito”. A Constituição estabelecia os princípios básicos da destinação da Nação ao trabalho, e tratava da família, concedendo-lhe proteção especial, baseada no casamento, e consagrando apoio às proles numerosas. Foi incluído um capítulo sobre educação e cultura, cabendo à União traçar o Plano Nacional de Educação, cujas leis básicas ficaram desde logo fixadas.
Infelizmente, o processo constitucional brasileiro foi interrompido pelo advento do Estado Novo, marcado pela Carta outorgada de 1937, na qual prevalecia um novo diploma legal, autoritário e centralista. Corresponde à tendência facistizante da época, quando predominava no mundo o número dos chamados Estados fortes.
Promulgada a 18 de setembro de 1946, essa Constituição passou a ter um sentido mais social que liberal, tendo grande projeção o tratamento dos problemas econômicos-financeiros.
Muitos são os aspectos originais dessa Constituição, a qual estabeleceu uma razoável distribuição de renda entre a União e os Estados, dando a estes recursos para atender às verbas destinadas aos Municípios.
Foi assegurada plenamente autonomia dos Municípios, estabelecendo o Art. 23 as hipóteses de possível intervenção . Tais diretivas foram felizmente transferidas, como veremos, para as Constituições posteriores.
Grande é o papel atribuído pela Constituição de 18 de setembro de 1946 ao Poder Legislativo, não havendo uma rígida separação com o Poder Executivo, tanto assim que os Ministros de Estados eram obrigados à comparecer perante a Câmara dos Deputados, o Senado Federal ou qualquer das suas comissões, quando uma ou outra Câmara os convocar para, pessoalmente, prestarem informações acerca de assunto previamente determinado.
O Poder Judiciário foi objeto de especial atenção, sendo-lhe destinado nada menos de 20 artigos.
Infelizmente sobreveio uma fase terrível de opção pelo regime autoritário, com o predomínio dos militares. Retornado ao sistema constitucional, as nossas Constituições voltaram à democracia, como teremos oportunidade de analisar, a partir do próximo artigo.
_______________
*Jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras, sócio do escritório Reale Advogados Associados.