“O abuso não pode eliminar o uso. A possibilidade de um uso eticamente inaceitável de uma técnica, fruto do saber humano, não pode eliminar o seu uso se ela é benefício para os demais membros da sociedade. O que procede é seu estrito regulamento no marco do bem comum. Este marco é a lei”. Aristóteles
A possível descoberta de uma droga capaz de colocar os mais diversos tipos de câncer em remissão ou ao menos garantir sobrevida aos pacientes com a doença em estágio avançado levou centenas de pessoas a solicitar o fornecimento da substância junto à USP, onde a droga chamada fosfoetanolamina sintética fora estudada e entregue durante anos a centenas de pacientes com câncer.
Diante da repercussão positiva dos efeitos da droga pelos pacientes que dela faziam uso, a USP passou a receber cada vez mais pedidos de entrega da substância, o que culminou na edição da portaria 1389/14 do Instituto de Química de São Carlos (IQSC), vinculado à Universidade, determinando a suspensão do fornecimento da fosfoetanolamina.
Como era previsível, não demorou para que centenas de pacientes pleiteassem o fornecimento do tratamento acionando judicialmente a USP e a Fazenda Pública do Estado de SP. Segundo relato da dra. Márcia Walquíria Batista dos Santos - procuradora-Geral da USP - ao jornal O Estado de São Paulo1, o número de ações judiciais exigindo a entrega da substância chegou a 13.000 em todo país.
Em novembro de 2015, contudo, o Órgão Especial do TJ/SP entendeu pela suspensão de todas as liminares para fornecimento da droga2, sem distinguir se o demandante da ação já fazia ou não uso dela.
A decisão do Órgão Especial não impediu que algumas Câmaras do TJ/SP continuassem a conceder liminares pelo fornecimento da fosfoetanolamina3, embora na prática essas decisões possam ter seu alcance limitado, o que cria uma situação de insegurança jurídica aos pacientes.
A decisão da Justiça Estadual não impediu que os pacientes continuassem acionando a USP; acabou por leva-los à verdadeira corrida junto à JF, bem como ao Judiciário de outros estados (onde parte deles reside) a fim de receberem o tratamento.
Contudo, com o recente anúncio do Governo do Estado de SP4 de que a USP cedeu o direito à pesquisa e produção da fosfoetanolamina sintética ao estado, este debate ganhará novos contornos e tenderá a levar à alteração do entendimento esposado em muitos julgados que eximiam a Fazenda Pública de responsabilidade5.
Na forte divisão jurisprudencial existente sobre o tema, não há consenso sequer sobre como a fosfoetanolamina deve ser considerada: se substância química – como disse a USP e se filiam alguns julgados6 - ou medicamento, como consideram outros7.
Essa diferenciação meramente semântica para alguns pode se traduzir num problema de ordem prática para o paciente. Sendo considerado ou não medicamento, para alguns juízes seria imperativo a apresentação da prescrição médica8 ao passo que outros entendem que sendo mera substância química não há necessidade de prescrição médica9.
Mas como ofertar ao médico a segurança de prescrever o tratamento sem ser punido eticamente, sobretudo quando pouco se conhece acerca dos riscos e benefícios da droga?
Com a crescente responsabilidade civil dos profissionais da saúde, é tarefa de todos os juristas tranquilizar os profissionais a ofertar seu melhor conhecimento em prol de todos nós, contanto que informem sobre os riscos já sabidos e nos peçam o consentimento informado10.
Diga-se, porém, que a ausência de registro sanitário da fosfoetanolamina sintética na ANVISA não impede que o profissional prescreva e tampouco que o paciente se utilize desse tratamento como recurso extremo, desde que informado acerca do atual estágio de conhecimento da ciência sobre a droga.
Lembremos também que a própria ANVISA permite a prescrição e importação de medicamentos que ainda não foram regularmente registrados - vide decisão no RE 657.718-MG-RG e o que dispõe o art. 24 da lei 6.360/76, que prevê a prescrição de medicamentos novos e experimentais por médicos-:
Art. 24. Estão isentos de registro os medicamentos novos, destinados exclusivamente ao uso experimental, sob controle médico, podendo, inclusive, ser importados mediantes expressa autorização do Ministério da Saúde.
Diante da ausência de testes clínicos com rigor científico, o que deve prevalecer, a nosso sentir, é: se o paciente provar que já fez uso dos esquemas terapêuticos convencionais, sem sucesso -analisando a questão sempre pelo prisma de sua autonomia da vontade- a ponderação de valores deve imperar para que se conceda a obrigação de fornecimento da fosfoetanolamina, independentemente de prescrição médica, pela excepcionalidade do caso.
Por certo que a ausência de estudos clínicos acerca da droga pode também ensejar riscos ao paciente que dela faz uso, já que não se conhecem claramente o efeito e a interação deste medicamento com outros tratamentos. Contudo, é fato que quem está à beira da morte aceita correr maiores riscos na esperança de algum benefício.
Apenas para ilustrar, recorreremos ao psicólogo Daniel Kahneman, criador da Teoria da Perspectiva (Prospect Theory) que avaliou o comportamento humano e buscou retratar o processo de tomada de decisão quando se trata das possibilidades de perder ou ganhar dinheiro apostando em algo. Como bem traduziu o psicanalista Contardo Calligaris “não é para ganhar, mas para não perder que estamos dispostos a mais sacrifícios. Para não perder estamos até prontos a correr o risco de perder mais ainda”11
Uma adaptação da Teoria da Perspectiva ao caso da fosfoetanolamina sintética seria como dizer que “para prolongar minha vida estou disposto inclusive a correr o risco de morrer mais rápido, se preciso”.
Entre a morte certa e a esperança de que a substância possa trazer ao doente algum benefício, compreensível a opção do doente em querer utilizar o medicamento diante de tantos relatos de melhora, ainda que amanhã se atribua isso ao efeito placebo12.
Neste aspecto, o poder de decisão sobre correr ou não tais riscos infere-se na autonomia da vontade de cada paciente, autonomia que serve de exaltação ao princípio da dignidade da pessoa humana e, portanto, questão de ordem constitucional.
Como já observado pelo ministro Luís Roberto Barroso ao tratar dos direitos do paciente, “a dignidade como autonomia envolve em primeiro lugar, a capacidade de autodeterminação, o direito de decidir os rumos da própria vida e de desenvolver livremente a própria personalidade. Significa o poder de realizar as escolhas morais relevantes, assumindo a responsabilidade pelas decisões tomadas” e conclui o sempre preclaro mestre que “a visão da dignidade como autonomia valoriza o indivíduo, sua liberdade e seus direitos fundamentais”13.
Se para além de estar disposto a correr riscos o paciente contrata também advogado para ir à Justiça pleitear seu direito, não se deve olvidar do seu desejo em fazer uso da droga, ciente dos riscos inerentes à escolha.
Se a pena de morte não é medida reservada nem mesmo aos criminosos deste país – e com razão – certo é que tal tratamento não deve deixar de ser fornecido a pacientes sob o prisma paternalista de que o uso da droga pode trazer-lhes ainda mais riscos, uma vez que este paciente já se encontra em situação fragilizada e com alto risco de morte, não raramente com metástase.
Como nos ensinou o professor Miguel Reale no início de nossas vidas acadêmicas “viver é indiscutivelmente, optar diariamente, permanentemente, entre dois ou mais valores. A existência é uma constante tomada de posição segundo valores.”14
Com as devidas compensações e sem qualquer conotação de crítica à indústria farmacêutica no caso, a questão enfrentada pelos pacientes com câncer remete-nos ao filme “Clube de Compras Dallas”, no qual o personagem Ron Woodroof é diagnosticado com AIDS e os médicos lhe estimam mais 30 dias de vida.
O personagem promove então verdadeira corrida contra o tempo e busca tratamentos alternativos considerados ilegais, travando batalha jurídica nos Tribunais pela livre destruição da droga em seu “clube de compras”.
No caso do filme a história se encarregou de nos mostrar que os medicamentos até então considerados ilegais seriam mais tarde a base do tratamento que é utilizado até hoje para tratar pacientes com AIDS.
Mas a decisão do Órgão Especial de manter a negativa de tratamento a todos incorre também em violação bioética grave quanto àqueles que participavam da pesquisa clínica promovida pelo IQSC e faziam uso da droga.
Muito embora possa se alegar que tais pesquisas jamais contaram com autorização do Conselho Nacional de Saúde (CNS), como é obrigatório, devemos ter em conta o princípio da primazia da realidade e reconhecer que a droga fora testada em pacientes ao longo de anos e que a falta de autorização do CNS não obsta para que se reconheça como pesquisa o fornecimento contínuo de fosfoetanolamina.
Trata-se de pesquisa que não seguiu as formalidades, mas era meio distinto para atingir o mesmo fim: entender como funciona o medicamento no organismo humano, ainda que sem muito rigor científico.
A continuidade de tratamento aos que fizeram parte de pesquisas clínicas consta expressamente da resolução 466 de 2012 do CNS, que tem sua competência regulada pela lei 8.080/90 e lei 8.142/90, sendo inclusive caso para eventual ação rescisória o trânsito em julgado de decisões contrárias à lei.
Dispõe o item III.3, alínea “d” da Resolução 466/2012 do CNS que é dever do pesquisador “assegurar a todos os participantes ao final do estudo, por parte do patrocinador, acesso gratuito e por tempo indeterminado, aos melhores métodos profiláticos, diagnósticos e terapêuticos que se demonstrarem eficazes”.
É também o que se verifica da Declaração de Helsinque, de 1964, que incorporou os valores dispostos no Código de Nuremberg para que as atrocidades cometidas contra seres humanos na Segunda Guerra Mundial nunca mais se repetissem.
Determina a Declaração de Helsinque no item 30 que “na conclusão do estudo, todo paciente nele incluído deve ter o acesso assegurado aos melhores métodos profiláticos, diagnóstico ou terapêuticos comprovados”.
A ausência de conclusão dos testes a que foram submetidos os pacientes, ou seu encerramento prematuro, não encerra a obrigação da Universidade no fornecimento da droga a todos esses pacientes, sobretudo diante de relatos de melhora clínica, sob pena de grave afronta ao que os doutrinadores internacionais chamam e princípio da justiça, já que esses pacientes serviram ao interesse dos pesquisadores e, claro, de toda sociedade.15
Diga-se também que inexiste, a nosso sentir, o propalado conflito de direitos entre ter acesso a um medicamento seguro – ou substância química segura – e o direito à vida ou à saúde. Pertencendo esses direitos ao mesmo titular, apenas a ele cabe decidir sobre os riscos.
Lembra-nos o professor Leiria que “só pode haver colisão de direitos fundamentais quando o direito de um indivíduo tem repercussões negativas sobre direitos fundamentais de outro titular; não ocorre a colisão entre direitos fundamentais de um mesmo titular.”16
Detendo o Estado de SP a condição de titular da produção da droga – inclusive tendo eleito o laboratório - não há dúvidas, a nosso sentir, quanto a legitimidade da Fazenda Pública do estado de São Paulo para ser parte nas ações de fornecimento da fosfoetanolamina sintética.
Por conseguinte, havendo responsabilidade solidária dos entes federativos, União, estados e municípios possuem capacidade para figurar no polo passivo da ação e podem ser acionados por pacientes, como já ressaltou a consagrada jurisprudência do STF.17
Com o anúncio da transferência da produção da droga ao estado, não há mais que se cogitar qualquer possibilidade de ingerência na autonomia didático científica da USP com possível ofensa ao art. 24 do decreto Estadual 6.283/34, como afirmou até aqui a universidade. A universidade, aliás, sequer precisa continuar sendo acionada judicialmente.
Trata-se, isto sim, de garantir o direito constitucional de acesso à saúde, o direito à uma chance de sobrevida, de livre autonomia da vontade e de promover as escolhas existenciais relevantes, princípios esses que estão esculpidos na própria dignidade da pessoa humana.
A Constituição Federal proclama como garantia fundamental os direitos à vida e à saúde, incluído aqui o direito à dispensação farmacêutica - vide art. 6, inciso I, alínea “d” da lei 8.080/90 - razão pela qual o SUS deve fornecer o composto com base também nos artigos 1º, inciso II e196 da Carta Magna.
Se o paciente já tentou os esquemas terapêuticos convencionais sem sucesso e se o estado possui agora o controle do produto e o domínio da técnica para produção da fosfoetanolamina sintética, forçoso concluir pela obrigação do SUS ao fornecimento da droga, garantindo o direito de acesso ao paciente como recurso extremo à manutenção de sua vida.
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1 Ações por "pílula do câncer" travam sistema jurídico da USP
2 Agravo regimental n.º 2205847-43.2015.8.26.0000 no TJ-SP.
3 Vide, por exemplo as decisões do TJ-SP nos Agravos de Instrumento n.º 2214569-66.2015.8.26.0000, 2224246-23.2015.8.26.0000, 2220635-62.2015.8.26.0000, 2220725-70.2015.8.26.0000, entre outras.
4 Alckmin anuncia laboratório que produzirá a fosfoetanolamina
5 Em diversos julgados o TJ/SP entendeu que a Fazenda Pública do Estado de SP era parte ilegítima para figurar na ação e que não era possível obrigar a universidade ao fornecimento do medicamento, vide por exemplo a decisão no AI 2223558-61.2015.8.26.0000
6 Vide decisão nos autos agravo de instrumento n.º 2238747-79.2015.8.26.0000 – TJ/SP
7 Vide decisão nos autos do agravo de instrumento n.º 2265000-07.2015.8.26.0000 - TJ/SP
8 Foi neste sentido o voto do relator Edson Ferreira da Silva nos autos do agravo de instrumento n.º 000216-05.2016.8.26.0000 - TJ/SP
9 Neste sentido foi o voto no agravo de instrumento n.º 2232612-51.2015.8.6.000 - TJ-SP
10 Sobre consentimento informado: PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Coimbra: Editora Coimbra, 2015.
11 CALLIGARIS, Contardo. Quinta Coluna. São Paulo: Publifolha, 2002, p. 173
12 Assim definido por Arthur K. Shapiro citado por Jeovanna Viana Alves como “qualquer procedimento terapêutico, clínico ou cirúrgico usado deliberadamente em um paciente para se obter um efeito psicológico ou psicofisiológico não específico” (ALVES, Jeovanna Viana. Ensaios Clínicos. Coimbra: Editora Coimbra, 2003, página 64, apud Shapiro).
13 BARROSO, Luís Roberto. Direitos do paciente. Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por testemunhas de Jeová. Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais. 1ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 349
14 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 26.)
15 ALVES, Jeovanna Viana. Ensaios Clínicos. Coimbra: Editora Coimbra, 2003, página 69
16 LEIRIA, Cláudio da Silva. Direitos do Paciente. Transfusão de sangue contra a vontade do paciente: uma gravíssima violação de direitos humanos, 1ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 303
17 "AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO À SAÚDE. MEDICAMENTO DE BAIXO CUSTO. FORNECIMENTO PELO PODER PÚBLICO. SOLIDARIEDADE DOS ENTES FEDERATIVOS. PRECEDENTES. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que, apesar do caráter meramente programático atribuído ao art. 196 da Constituição Federal, o Estado não pode se eximir do dever de propiciar os meios necessários ao gozo do direito à saúde dos cidadãos. O fornecimento gratuito de tratamentos e medicamentos necessários à saúde de pessoas hipossuficientes é obrigação solidária de todos os entes federativos, podendo ser pleiteado de qualquer deles, União, Estados, Distrito Federal ou Municípios. Agravo regimental a que se nega provimento." (AI 822882 AgR, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJe 6.8.2014)
18 O recebimento de medicamentos pelo Estado é direito fundamental, podendo o requerente pleiteá-los de qualquer um dos entes federativos, desde que demonstrada sua necessidade e a impossibilidade de custeá-los com recursos próprios. Isso por que, uma vez satisfeitos tais requisitos, o ente federativo deve se pautar no espírito de solidariedade para conferir efetividade ao direito garantido pela Constituição, e não criar entraves jurídicos para postergar a devida prestação jurisdicional.” (RE 607.381-AgR, rel. min. Luiz Fux, julgamento em 31-5-2011, Primeira Turma, DJE de 17-6-2011.) No mesmo sentido: ARE 774.391-AgR, rel. min. Marco Aurélio, julgamento em 18-2-2014, Primeira Turma, DJE de 19-3-2014
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*Elton Euclides Fernandes é advogado especializado na área da saúde, sócio do escritório Elton Fernandes Advogados, pós-graduado em processo civil pela PUC-SP, cursou especialização em Direito da Medicina no Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, além de ser pós-graduando nas áreas de Processo Clínico e Segredo Médico, Consentimento Informado, Responsabilidade Civil Médica e na área de Responsabilidade Civil, Penal e Disciplinar da Indústria Farmacêutica e dos Farmacêuticos, também na Universidade de Coimbra em Portugal.