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O modelo regulatório brasileiro e a supervisão das agências reguladoras

Algumas das proposições do PL 52/13 podem resultar no aumento da interferência política sobre tais decisões, retirando-lhes o caráter técnico que lhes é essencial.

3/2/2016

Atualmente, está em discussão no Congresso Nacional o Projeto de Lei 52/13, de autoria do Senador Eunício Oliveira, que propõe instituir um regulamento geral aplicável às agências reguladoras nele especificadas (ANEEL, ANP, ANATEL, ANVISA, ANS, ANA, ANTAQ, ANTT, ANCINE, ANAC e ANM) e que pode representar uma mudança significativa no regime legal a elas aplicável.

Tais agências foram criadas a partir de 1996, com o intuito de regular e fiscalizar determinadas atividades econômicas, incluindo a prestação de serviços públicos e atividades objeto de monopólio, que, até então, eram exercidas preponderantemente por empresas controladas pelo Estado, e que foram transferidas à iniciativa privada.

O modelo adotado tem por base essencial a autonomia das agências reguladoras, assegurada tanto através de um modo complexo de escolha de seus dirigentes (que, embora indicados pelo chefe do Poder Executivo, precisam ter conhecimento técnico específico, devem ser aprovados pelo Poder Legislativo, têm mandato fixo e não podem ser afastados injustificadamente) quanto em razão da limitação do poder de revisão, pelo Poder Executivo, das decisões tomadas pelas agências reguladoras.

Essa autonomia visa a assegurar, de um lado, a predominância de aspectos técnicos nas decisões emanadas das agências reguladoras (que estariam vinculadas, essencialmente, às determinações da lei de criação dessas agências) e, de outro, uma razoável constância e previsibilidade das decisões das agências, que não seriam bruscamente alteradas em função de pressões políticas ocasionais ou mudanças na composição do governo.

Embora o PL 52/2013 tenha o louvável propósito de aumentar a transparência e o controle das decisões tomadas no âmbito das agências reguladoras, algumas de suas proposições podem resultar no aumento da interferência política sobre tais decisões, retirando-lhes o caráter técnico que lhes é essencial.

Com efeito, o Projeto de Lei pretende retirar das agências reguladoras o poder de definir diretrizes setoriais e de outorgar e conceder serviços públicos, sob o argumento de que tais atividades deveriam ser realizadas apenas pelos órgãos da administração direta, limitando-se as agências a regulamentar e fiscalizar as atividades reguladas.

Além disso, o PL 52/103 prevê a participação – com direito a voz, mas sem direito a voto – no órgão colegiado decisório das agências reguladoras de um membro do Ministério Público Federal, de um representante da OAB, de um representante do Procon e de um representante das entidades privadas de proteção do consumidor.

Outra inovação trazida pelo PL 52/2013 é a instituição de um controle social sobre a atuação das agências reguladoras, a ser efetivado a partir de um contrato de gestão e desempenho1, firmado entre a agência reguladora e o Ministério ao qual a agência é vinculada, e da figura de um Ouvidor2, a ser nomeado pelo Presidente da República. Além dessas medidas, em substitutivo ao PL 52/2013, apresentado pelos Senadores José Maranhão e Walter Pinheiro, propõe-se a criação de um Plano Estratégico de Trabalho, coincidente com o Plano Plurianual, o qual deve indicar as metas, objetivos e resultados esperados da agência reguladora, além de especificar todos os meios que serão empregados em sua atuação, acompanhado de um cronograma detalhado de implementação.

O PL também institui, como mecanismos de reforço da accountability das agências, um sistema de “prestação de contas” a ser implementado a partir da elaboração de um Relatório Anual das Atividades a serem desenvolvidas pela agência reguladora, destacando o cumprimento da política do setor definida pelos Poderes Legislativo e Executivo, assim como a adoção de avaliações de impacto regulatório para a edição de atos normativos e prolação de decisões de repercussão geral. Esse Relatório deve ser encaminhado pela agência ao Ministério a que estiver vinculada, e também à câmara dos Deputados e ao Senado Federal, além de ser disponibilizado na internet.

O substitutivo ao texto original do PL, por seu turno, prevê que o controle externo das agências reguladoras será exercido diretamente pelo Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas da União, devendo os dirigentes das agências reguladoras comparecerem ao Senado anualmente para prestar contas sobre o exercício de suas atribuições e sobre o desempenho da agência, bem como para apresentar avaliação das políticas públicas no âmbito de suas respectivas competências.

O substitutivo, inspirado no modelo americano3, ainda fez incluir ao texto original a disposição que vem provocando maior repercussão: trata-se da proposta de criação de Câmara vinculada ao Poder Executivo, com o objetivo de acompanhar e avaliar assuntos regulatórios em geral, além de opinar sobre atos normativos editados por agências reguladoras que possam causar significativo impacto econômico, social ou concorrencial, bem como sobre análises de impacto regulatório. Essa disposição tem sido fortemente criticada por dirigentes de agências reguladoras, que a colocam como um risco à autonomia das autarquias4.

Conquanto, ao menos em tese, tais propostas tenham a finalidade de aumentar a transparência, meios de accountability e a legitimação democrática das agências, a experiência política brasileira faz nascer o justo receio de que acabem por aumentar a interferência política nas agências reguladoras e, consequentemente, aumentar a instabilidade nos setores regulados.

De modo geral, os setores econômicos objeto da atuação dessas agências, como os setores de infraestrutura, demandam grandes investimentos, sendo essencial aos investidores certo grau de previsibilidade, bem como tecnicidade, nas decisões que podem afetar diretamente os investimentos realizados.

A perda de autonomia das agências, a maior interferência do Poder Executivo e a presença nos órgãos colegiados de pessoas sem qualificação técnica específica podem comprometer o modelo que vem sendo adotado e que permitiu a realização de importantes investimentos em setores essenciais da economia. Convém, portanto, que as alterações no modelo atual de agencificação sejam intensamente debatidas e amadurecidas entre estudiosos e especialistas.

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1 No qual deverão ser especificadas as metas de desempenho e respectivos indicadores de avaliação, a estimativa dos recursos orçamentários, obrigações e responsabilidades dos diretores, medidas para hipótese de descumprimento de metas e obrigações, vigência etc.

2 Com a função de zelar pela qualidade dos serviços e acompanhar a apuração interna de denúncias e reclamações de usuários contra a própria agência ou contra entes regulados.

3 No modelo americano, há a figura do Office of Information and Regulatory Affairs – OIRA, igualmente vinculado ao Gabinete da Presidência dos EUA e com atribuições semelhantes àquelas descritas no substitutivo ao PL 52/2013.

4 Nesse sentido: https://www.valor.com.br/brasil/4289834/agencias-se-articulam-contra-projeto-do-senado.

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*Flávia Sávio C.S. Cristofaro é sócia do escritório Lobo & Ibeas Advogados. Mestre em Direito Internacional e Integração Econômica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

*Helena Medeiros Frias é associada do escritório Lobo & Ibeas Advogados.

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