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O impeachment no Senado da República

Nenhuma das três ordens de argumentos invocadas pelo ministro Barroso justifica seu entendimento de ser possível ao Senado Federal recusar-se a instaurar o processo de impeachment, uma vez autorizado pela Câmara.

5/1/2016

Ao votar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.° 378, o ministro Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), declarou que a competência do Senado abrange “a realização de um juízo inicial de instauração ou não do processo, isto é, de recebimento ou não da denúncia autorizada pela Câmara”, o que se basearia em três ordens de argumentos: 1) ser essa a única interpretação possível à luz da Constituição de 1988; 2) corresponder à interpretação adotada pelo STF em 1992, quando do impeachment do presidente Collor; e 3) tratar-se de entendimento que, mesmo proferido sem força vinculante, foi incorporado à ordem jurídica.

Com a devida licença, tais fundamentos não se compatibilizam com o decidido no Mandado de Segurança n.° 21.564-DF, impetrado pelo então presidente Collor. Senão, vejamos. O relator sorteado, ministro Gallotti, deferiu o pedido tal como formulado, porém o ministro Carlos Velloso divergiu, para o fim de restringi-lo ao aumento do prazo de defesa do impetrante perante a Câmara dos Deputados.

De acordo com o Regimento Interno do STF, o ministro Velloso foi designado para redigir o acórdão e a respectiva ementa, pois seu voto aglutinou a maioria dos votos no tocante à redução do âmbito do mandado. No capítulo concernente às competências da Câmara e do Senado, o ministro Velloso citou trecho de artigo do saudoso professor Miguel Reale em que afirma caber à Câmara editar um juízo político quanto à admissibilidade da acusação, enquanto é do Senado a competência exclusiva para o processo e o julgamento do acusado. E logo em seguida à transcrição do ensinamento de um dos nossos maiores juristas, jusfilósofos e advogados, prosseguiu o ministro Velloso dizendo: “Neste (no Senado) é que a denúncia será recebida, ou não”.

Uma leitura menos atenta de seu voto poderia até dar a impressão de que também a assertiva realçada comporia o artigo do professor Miguel Reale. Na realidade, porém, não é o que acontece, pois nada há nesse sentido no trabalho enfocado.

Portanto, tal afirmação reflete, simplesmente, uma opinião do ministro Velloso, que ao redigir a ementa do julgamento para lá a transportou, de modo que quem se limita a lê-la é levado a supor que reflete o entendimento da maioria vitoriosa, o que não corresponde à verdade.

Além de não contar com o apoio do professor Miguel Reale, destoa da posição dos demais ministros que trataram do assunto. Exemplo marcante é o voto do ministro Celso de Mello, no qual afirma que ao Senado Federal se impõe, ante a autorização da Câmara dos Deputados, a necessária instauração do processo, com todas as consequências jurídico-constitucionais daí emergentes. Aponta que esse caráter vinculado foi exposto pelo professor José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 473, 5.ª ed., 1989, RT), ao afirmar que o texto do artigo 86 da Constituição federal não deixa ao Senado a possibilidade de emitir juízo de conveniência sobre instaurar ou não o processo, pois que esse juízo de admissibilidade refoge à sua competência, já tendo sido feito por quem cabia.

Além disso, o ministro Celso de Mello invoca as lições de outros juristas, nacionais e estrangeiros, em especial a constante da obra do ministro Paulo Brossard (O Impeachment, pp. 7 e 10, itens 8a e 8f, 2.ª ed., 1992, Saraiva), para quem o impeachment do presidente da República por crimes de responsabilidade se desenrola no Senado, desde sua instauração até o julgamento final, após autorização da Câmara dos Deputados, sendo que, uma vez autorizado, não pode deixar de instaurá-lo.

O ministro Sepúlveda Pertence deixou claro que a autorização da Câmara vincula, e não apenas libera o Senado, mesmo porque tem o significado de recebimento de denúncia.

Por sua vez, o ministro Néri da Silveira declarou, expressamente, que acompanhava o voto dos ministros Celso de Mello, Sepúlveda Pertence e Paulo Brossard. O outro integrante da maioria, ministro Sidney Sanches, não se manifestou a respeito do assunto. Desse modo, internamente à maioria constituída, a verdade é que apenas o ministro Carlos Velloso mencionou – e mesmo assim apenas en passant, sem invocar nenhum fundamento jurídico válido – a possibilidade de o Senado recusar-se à instauração do processo. Os demais votaram no sentido de que, uma vez autorizado pela Câmara, o processo deve ser necessariamente instaurado pelo Senado, ao qual não cabe a opção de recusá-lo.

Ora, sendo assim, não é curial que da ementa do v. acórdão no mandado de segurança em foco possa constar, em seu item III, o trecho segundo o qual “(...) neste (no Senado) é que a denúncia será recebida, ou não, dando que, na Câmara ocorre, apenas, a admissibilidade da acusação, a partir da edição de um juízo político...”. Logo, a ementa examinada não retratou fielmente o resultado do julgamento.

Em vista do acima demonstrado, conclui-se, com a devida vênia, que nenhuma das três ordens de argumentos invocadas pelo ministro Barroso justifica seu entendimento de ser possível ao Senado Federal recusar-se a instaurar o processo de impeachment, uma vez autorizado pela Câmara dos Deputados. Em primeiro lugar, porque essa afirmativa decorre de uma interpretação jurídica e logicamente impossível do texto constitucional. Em segundo lugar, porque não corresponde à dada pelo STF no Mandado de Segurança 21.564, de 1992, aliás, muito ao contrário, de modo que a necessária segurança jurídica exige sua reiteração, pelo mesmo tribunal, no julgamento da ADPF 378. E em terceiro e último lugar, essa impossibilidade de recusa do Senado à instauração do processo reflete entendimento que, mesmo não tendo sido proferido pelo STF com força vinculante, se acha incorporado à ordem jurídica brasileira.

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*Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em 4/1/16.

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*Lionel Zaclis é advogado do escritório Barretto Ferreira e Brancher - Sociedade de Advogados, mestre e doutor em Direito pela USP.

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