O aedes aegypti, apesar de seu pequeno porte, vem se firmando no Brasil e agora já não se apresenta mais como responsável unicamente pela dengue, ainda imbatível em seu campo, mas também pela transmissão da febre chikungunya e, recentemente, pelo zika vírus que, segundo a constatação do Ministério da Saúde, vem provocando transtorno e insegurança às mulheres grávidas e às que pretendem a gravidez. Isto porque o mosquito infectado com o vírus, isolado pela primeira vez em 1952, em Uganda, procura atacar as células nervosas e, se atingir o cérebro ainda em formação do embrião, poderá provocar danos irreparáveis no desenvolvimento da criança.
Muito se tem falado, comentado e até mesmo improvisado a respeito do atual quadro que vai ganhando corpo rapidamente e poucas foram as soluções práticas e objetivas para impedir a proliferação do temível mosquito, que se resumem em atos repetitivos, nos mesmos moldes do combate originário à dengue, que até hoje se arrasta sem sucesso. Nem extermínio, nem vacina para a proteção humana.
É certo que há necessidade da prática de atos preventivos para a preservação da saúde, compreendendo aqui o direito de todos e o dever do Estado de zelar por ela, conforme o preceito constitucional, mas a população carrega também parcial culpa, pois em se tratando de mobilização nacional, exige-se que cada um seja o responsável pela limpeza do seu espaço, para evitar a proliferação de criadouros.
A situação de surto de microcefalia é tamanha na região Nordeste que profissionais da área da saúde chegaram a sugerir às mulheres dos Estados com o maior índice de infecção, que evitem a gravidez ou que sejam acompanhadas rigorosamente por médico, em caso de grávidas, em razão da vulnerabilidade constatada. É uma solução aflitiva e em ambas as propostas refletem total insegurança e interferem no planejamento familiar, que também é garantia constitucional.
E o problema carrega complicador maior no caso de ser a gestante submetida a exames e for constatado que carrega um feto com microcefalia. Neste caso, poderá optar pelo abortamento?
Toda questão que envolve o tema aborto é tormentosa e vem à tona a ojeriza ética pelo procedimento, que é considerado um ato atentatório contra a vida. Assim, a análise deve ser feita criteriosamente dentro dos parâmetros legais, abandonando qualquer conotação política e religiosa.
A lei permite o abortamento nos casos já enunciados no Código Penal, ou seja, para salvar a vida da gestante e quando a gravidez for proveniente de estupro. Há um tertius genus, em razão da decisão do Corte Maior, que permite o procedimento em caso de comprovação de feto anencéfalo, ainda não incorporado no estatuto penal. Tal hipótese, no entanto, encontra previsão no artigo 128, inciso III, do anteprojeto do Código Penal, in verbis: "Se comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina, em ambos os casos atestado por dois médicos".
Cabe aqui relembrar que no julgamento prevaleceu a decisão exposta pelo relator min. Marco Aurélio no sentido de que a laicidade deve predominar nas decisões judiciais e, principalmente no caso colocado em julgamento, é obrigatório se atentar para as regras definidoras do direito à vida, da dignidade da pessoa humana, da proteção da autonomia da gestante e de seu parceiro, da privacidade e saúde da mulher.
Após o julgamento, foi expedida a resolução 1989/2012 do Conselho Federal de Medicina, disciplinando a respeito do diagnóstico de anencefalia para a antecipação terapêutica do parto. Exige-se, para tanto, diagnóstico inequívoco da deformidade, cujo exame poderá ser realizado a partir da 12ª semana de gestação, com apresentação de laudo assinado por dois médicos capacitados para o procedimento. Em caso de constatação da deformidade, gestante poderá manter a gravidez ou interrompê-la. No primeiro caso ser-lhe-á assegurada assistência médica pré-natal compatível com o diagnóstico. No segundo, poderá interromper imediatamente a gravidez, independentemente do tempo da gestação, ou adiar a decisão para outro momento.
Não se pode comparar a anencefalia, que é a má-formação do tubo neural, caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana, que resulta na pouca expectativa de vida, com a microcefalia, em que há chance de vida, porém com dificuldades cognitivas, motoras, de aprendizado, em consequência da má-formação cerebral, fazendo com que a criança nasça com a circunferência da cabeça menor que 32 cm.
Na realidade, da análise legal, não há que se falar na opção de abortamento em caso de microcefalia, pois não se trata de patologia letal. E muito menos de padecer o feto de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina, como preconiza o anteprojeto do Código Penal. O importante é que há spes vitae, como qualquer outra normal e a expectativa das crianças com microcefalia é semelhante às das outras crianças, exigindo, no entanto, cuidados especiais para melhorar a qualidade de vida, como terapia ocupacional, fisioterapia, estimular a fala com sessões de fonoaudiologia e medicamentos compatíveis.
Tamanha é a discrepância entre os dois casos que, em havendo pretensão pleiteando a interrupção da gravidez pela microcefalia, deve ser abortada ex radice.
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