A lei visa não só estabelecer regras para atos e fatos que sejam previsíveis, como também para aqueles que surgem ao longo da convivência social e que tenham por finalidade aprimorar o relacionamento humano. Assim, é a própria sociedade que vai municiando o legislador para a elaboração de leis que sejam de sua conveniência. E, indubitavelmente, quando o grupo social sofre de um mal estar que vai se tornando congênito e angustiante, uma vez que as fórmulas empregadas anteriormente vão se deteriorando junto com a identidade ética do povo, há necessidade de se lançar mão da criatividade e encontrar novos alicerces de sustentação legal para perquirir determinadas modalidades de ilícitos, como é o caso daqueles relacionados com a corrupção.
É inegável a crise de corrupção que atola o país, como a lama de Mariana, que vai invadindo espaços e levando de roldão tudo que encontra em seu leito, destruindo pessoas, bens e instituições, prejudicando a governabilidade política e lançando ao mar os entulhos recolhidos.
Apesar do esforço hercúleo para combater a maléfica conduta daqueles que despudoramente se locupletam do erário público, não há ainda respostas positivas em caráter definitivo a respeito da responsabilização dos infratores e da recuperação dos valores que foram surrupiados fraudulentamente. Existe lei para tanto, porém, nem todos os atos de corrupção vêm à tona espontaneamente, por serem bem engendrados e articulados com maestria profissional. Os que estão envolvidos selam silêncio para sempre por serem partes mais do que interessadas no negócio espúrio, cobrindo-o com o manto da perfeita coautoria. E o Estado, vê-se impossibilitado de penetrar pelas veredas secretas da criminalidade organizada.
A Associação dos Juízes Federais (Ajufe)1 acatando proposta aprovada pelos representantes de órgãos públicos participantes da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à lavagem de dinheiro (Enccla), em louvável iniciativa, tendo como base o sistema americano do whistleblowers, encetou estudos para viabilizar a propositura de uma lei com mecanismo que preveja recompensa para o denunciante da ocorrência de crimes praticados contra os cofres públicos.
A proposta carrega um plus inexistente no Código de Processo Penal, que permite a qualquer pessoa do povo, que tiver conhecimento de infração penal em que caiba ação pública, a faculdade de comunicá-la à autoridade policial (art. 5, § 3º), assim como encaminhá-la ao Ministério Público (art. 27). Obviamente, sem qualquer tipo de recompensa. Trata-se de um longa manus, revestido de legitimidade temporária para determinadas situações. É uma solução necessária, pois na medida em que o Estado não reúne condições para uma tutela eficiente, concede, excepcionalmente, ao particular o exercício do poder de polícia.
Também não se coaduna com o instituto da delação premiada em que a pessoa envolvida no ilícito, sponte propria, relata a prática criminosa com a consequente nomeação de todos os participantes, com a intenção de alcançar a redução da sua pena.
A proposta é voltada somente para a pessoa que não tenha colaborado com o ilícito, mas dele tem conhecimento e pode fornecer dados e subsídios relevantes para a investigação, nos crimes praticados contra o erário público.
Proposta neste sentido já foi apresentada no projeto de lei 1.701/2011, que tramita pela Câmara dos Deputados, de autoria do deputado Manato (PDT/ES). Propõe a criação do Programa Federal de Recompensa e Combate à Corrupção nas três esferas de governo. Assim, a pessoa que denunciar esquemas de corrupção terá direito a uma recompensa que corresponde a 10% de total de bens e valores efetivamente recuperados pela Justiça, porém o montante não poderá ultrapassar cem vezes o valor do salário mínimo.
Tal projeto de lei, que ainda tramita pela Câmara, encontra-se aguardando parecer do Relator na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público (CTASP)2. Segundo a proposta legislativa, o PL 1701/11 institui o Programa Federal de Recompensa e Combate à Corrupção, por meio do qual o informante que contribuiu para a elucidação de crime contra a Administração e Patrimônio públicos, bem como para a recuperação de valores e bens públicos desviados, recebe recompensa pecuniária, e dá outras providências.
Observa-se, portanto, que a iniciativa da AJUFE não é inédita, uma vez que há PL similar tramitando na Câmara. Por outro lado, a entrada da AJUFE nessa questão pode ajudar a acelerar o procedimento legislativo, ou até mesmo dar início a outro PL, para que a proposta não seja pautado pelas calendas gregas.
Em sua essência, a lei é capaz de provocar grandes avanços ao país, principalmente por se encontrar diante de uma situação que se agrava cada vez mais com a crescente e incessante corrupção praticada nos mais diversos setores da sociedade.
Em um primeiro momento, a existência de uma lei nesse sentido poderia evitar a má conduta das empresas, que passariam a adotar formas mais transparentes de governança, temendo ser alvo de um informante. Os informantes, por sua vez, podem prestar um serviço valioso para a sociedade. Isto porque, os funcionários das empresas, que podem ser privadas, públicas ou mistas, gozam de uma posição privilegiada e única que lhe permitem reconhecer e denunciar a ilegalidade.
Com a lei, abriria mais espaço persecutório para acelerar a identificação das condutas ilícitas praticadas pelos gestores, uma vez que, hoje, por não existir tal figura, essas irregularidades poderiam não ser encontradas, ou demorariam a serem descobertas pelos meios tradicionais de investigação. Além do que, com as informações fornecidas pelos denunciantes também seria possível reduzir substancialmente os gastos públicos dispendidos no processo de investigação de irregularidades ou corrupção.
Apesar do importante papel como colaboradores da lei, os informantes poderiam ser vítimas de retaliação. Estariam os funcionários dispostos a arriscar seu próprio trabalho – e até sua vida – prestando informações acerca da atividade delituosa da empresa? É de se pensar se a delação com promessa de recompensa realmente compensa.
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1 Jornal Folha de São Paulo, Edição de 30/11/2015, Poder A7.
2 PL 1701/2011.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde, advogado, reitor do Centro Universitário do Norte Paulista, em São José do Rio Preto.
*Pedro Bellentani Quintino de Oliveira é bacharel em Direito pela Universidade Mackenzie, mestrando em direito pela Unesp/Franca, pós-graduando em direito empresarial pela FGV/São Paulo, advogado.