Migalhas de Peso

O que o Banco Central do Brasil pode fazer na crise atual?

A situação do BCB é de absoluta inércia neste momento, situação que pode se prolongar por bastante tempo.

5/11/2015

O tema acima foi objeto de palestra que proferi recentemente na Faculdade de Direito da USP em Ribeirão Preto, patrocinado pela Empresa Júnior daquela escola. Ao tomar a palavra eu disse aos presentes que em relação à crise atual o BCB nada tinha o que fazer. Acrescentei que a palestra estava encerrada e que devíamos ir direto para o coquetel. Seguiram-se algumas risadas e certo olhar de espanto por parte de alguns dos alunos e professores. Claro que tive que dar continuidade à minha fala para que todos pudessem entender as razões da minha assertiva tão contundente.

O BCB foi criado como o órgão executivo do Conselho Monetário Nacional - CMN e sua função precípua é cuidar da moeda (no momento o “real”) em relação à sua utilização como meio adequado de pagamento. Isto implica na estabilidade do seu valor que, por sua vez deve ter em conta o oferecimento da quantidade ótima para o mercado. Ainda que saber qual seja a quantidade ideal de moeda que deva estar em circulação consista em uma questão bastante complexa, sua medida é essencial para que sejam evitados dois extremos: (i) a falta de moeda por qualquer motivo (inclusive uma procura intensa como efeito de especulação), fato determinante da sua super valorização; e (ii) o seu excesso, que tem efeitos diretamente inflacionários.

No momento tem se visto no Brasil desde alguns meses para cá uma rápida e altíssima valorização do dólar em contrapartida à desvalorização do real na mesma medida. Esta é a desvalorização externa. No plano interno os preços em geral têm subido de forma sistemática, em algumas áreas em nível mais intenso do que em outras. Esta é a desvalorização interna e, conjugadas as duas, consistem no reflexo de descontrole econômico, gerador de crises inflacionárias e de recessão. Os fatores mais do que sabidos são políticos e econômicos, estreitamente interligados entre si. Assim sendo, os exportadores brasileiros (se só lidarem nesta área de negócios, sem preocupações com o mercado interno) estão muitíssimos felizes, enquanto os importadores e turistas há muito tempo não viam uma situação tão ruim para os seus propósitos.

Ótimo, diriam alguns. Vamos acabar com essa farra dos turistas que saiam do Brasil para uma gastança desordenada, inclusive para trazerem quinquilharias de Nova York ou de Miami, ali comprando todo o enxoval de uma noiva ou de um bebê esperado pelos pais. Na mesma linha, vamos parar de dar corda aos novos ricos que ficam comprando carros de luxo para se exibiram nas ruas e estradas esburacadas do país. O mesmo quanto a roupas de costureiros da moda ou bolsas de marcas famosas para mulheres. Bem, uma pergunta pode ser feita. Por que será que mesmo contando o custo de uma passagem aérea mais, a hospedagem em um hotel e as despesas de transportes, ainda assim era mais barato comprar aqueles e outros produtos fora do Brasil? E deve ser lembrado que, nas últimas décadas, apenas uma vez a moeda brasileira foi cotada em preço mais barato do que o dólar, ou seja, quando da criação da URV em 1994, situação excepcional e momento de intensa felicidade para toda a comunidade da sacoleiras desta pátria. Evidentemente a tributação brasileira também tem muito a ver com esse quadro, o que não é nosso problema no momento.

Mas há outra face da moeda, fazendo um mote com o nosso tema. A importação de bens de capital para o fortalecimento e modernização da indústria nacional fica muito mais cara e, claro, o custo será repassado para o consumidor do produto final, se isto for possível ao fabricante. Caso contrário, ele passará, no ramo automobilístico, por exemplo, a nos fornecer as suas antigas “carroças” porque não terá material nem tecnologia mais modernos para utilizar em sua linha de fabricação.

E como o BCB exerce a sua função de guardião da moeda? Digamos que seja da mesma forma como se faz com o gramado de um campo de futebol. Quando está seco, se molha; quando está muito encharcado, se enxuga, o que é próprio da filosofia do Conselheiro Acácio. E, no caso do BCB, a sua mangueira e o seu rodo consistem nos instrumentos de política monetária ao seu dispor: encaixes obrigatórios, depósitos compulsórios, taxa de redesconto e a famosa SELIC.

Quando há dinheiro em excesso, assim considerado diante do seu parâmetro ótimo (e isto diz respeito não somente à moeda física e escritural em circulação, mas também quando existe crédito muito fácil) o BCB aumenta o nível de encaixe e de depósitos compulsórios dos bancos, assim diminuindo a sua capacidade de empréstimo. Também aumenta a taxa de redesconto, pois ele, BCB, é o emprestador de última instância no mercado financeiro e, ainda, eleva a taxa SELIC, restringindo também dessa forma o crédito, cuja taxa de juros se tornará mais elevada. O aumento da taxa de redesconto repercute diretamente na taxa do mercado interbancário, aquele dentro do qual os bancos emprestam uns aos outros.

Quanto ao redesconto, no Brasil esta operação se reveste da qualidade de um instrumento punitivo em relação às instituições financeiras que a ele recorrem, pois a taxa aplicada é extremamente elevada, significando também que o favorecido representa certo perigo de quebra porque não conseguiu superar suas dificuldades no mercado interbancário. Em outros sistemas financeiros o redesconto apresenta menor relevância quanto a esta função específica, tratando-se de um mecanismo regular de financiamento dos bancos que atravessam alguma situação de dificuldades dentro de um horizonte de curtíssimo prazo (um dia).

Quando a oferta de moeda se encontra abaixo das necessidades do mercado o BCB adota a posição inversa, reduzindo as exigências acima referidas. Na verdade, mesmo em economias mais estabilizadas do que a nossa, o aumento da oferta de moeda ou, ao contrário, a sua redução, se dá de forma cíclica, normalmente em patamares não muito acentuados porque ao longo do ano há períodos em que a economia está mais ou menos aquecida.

Verifica-se que, antigamente, o uso intenso do cheque pós-datado e dos carnês de lojas de departamento como instrumentos de financiamento das famílias, ao lado do desconto físico de duplicatas no comércio e no setor de serviços, apresentava uma capacidade de criação de moeda escritural pelos bancos bem mais reduzida em relação ao que hoje acontece. Isto se dá pela intensa utilização de cartões de crédito e dos diversos recebíveis em uso no mercado, a par do desconto eletrônico de duplicatas. Essas operações tornaram muito mais rápida a circulação da moeda, com um efeito de forte alavancagem na base monetária, resultado na possibilidade da sua inundação no mercado financeiro.

Em conjugação com todos esses novos fatores, acima referidos, a globalização financeira cada vez mais intensa e o surgimento da criptomoeda, entre as quais se conta o bitcoin, têm feito com que os bancos centrais do mundo inteiro se preocupem com a perda de fato do seu poder de regular a quantidade de moeda em circulação e, consequentemente, levando-os a verem reduzido o seu poder de manutenção da estabilidade monetária.

Com a finalidade de estabelecer o controle sobre esses novos meios de circulação da moeda, foi recentemente regulamentado entre nós o Sistema de Arranjos e Instituições de Pagamento, para incluí-los sob a tutela do BCB, com uma segunda finalidade altamente essencial, que é a de cercar as possibilidades do surgimento de risco financeiro no mercado1. O tema em questão foi objeto da lei 12.865, de 9/10/13, regulada, por sua vez, por resoluções do CMN e circulares do BCB.

Contribuindo de forma altamente negativa, em países nos quais existe um desequilíbrio, principalmente no campo fiscal (por causa de um nível elevado e a existência não sistemática regime de impostos) o governo interfere de forma altamente prejudicial no desenvolvimento do papel dos bancos centrais, como é precisamente o momento atual que o Brasil atravessa.

O déficit público alcançou uma cifra astronômica e o governo somente tem duas saídas tecnicamente possíveis: reduzir drasticamente os seus custos e investimentos e/ou aumentar impostos. Tais soluções se revelam extremamente problemáticas na realidade em que vivemos por duas razões: Primeira, cortar custos e investimentos apresenta um preço político muitíssimo elevado para o governo atual porque o sistema de longa data estabelecido entre nós fundou-se no famoso “é dando que se recebe”, intensificado exaustivamente nas três últimas gestões do PT. E sabe-se que no momento atual o governo já deu os anéis e até os dedos. Assim sendo, não tem o mínimo apoio politico para cortar despesas, o que se daria pela extinção de ministérios e cargos comissionados existentes em profusão; pela demissão de milhares de empregados não concursados; pelo corte de programas sociais; pela redução de investimentos não absolutamente essenciais; e por aí vai. E, tendo em conta o número em jogo, a economia teria de ser feita ao longo de alguns sofridos anos porque um ou mesmo dois seriam insuficientes. Isto é claro, com a revolta de eleitores que entenderem finalmente terem sido completamente enganados com promessas irrealizáveis no longo prazo.

O aumento de impostos, por sua vez, representaria uma sobrecarga ainda maior sobre famílias e empresas que já pagam uma tributação contada entre as maiores do mundo. Não há mais espaço financeiro para tanto, e muito menos espaço político. O retorno à CPMF, vestida com novas roupagens, seria uma medida odiosa para a sociedade civil e um tiro no pé para os políticos que a favorecerem, se desejarem disputar com alguma possibilidade de sucesso uma próxima eleição. A história da CPMF, criada fundadamente para acudir as despesas públicas da saúde não é nada edificante, pois se desligou da sua causa e transformou-se em fonte pura e simples da cobertura geral de gastos descontrolados do governo. Terá sido uma boa intenção, das quais o inferno está repleto.

Caro leitor, você até que poderia ajudar o governo neste momento, inclusive preservando um pouco o poder de compra do seu rico dinheirinho, sendo-lhe possível ainda ganhar alguma coisa no resultado líquido da sua aplicação. Isto se daria se você aplicasse no chamado “Tesouro Direto”, o que tem a ver também com a famosa taxa SELIC. Esta operação consiste na aquisição pelo aplicador de títulos emitidos pelo Tesouro Federal, que paga o equivalente aos juros da taxa SELIC, atualmente no patamar de 14,25% a.a. E não dá para elevar ainda mais esta taxa. Ela chegou ao teto máximo que a economia (não) pode aguentar no momento.

Ocorre que o governo com a operação acima, de um lado, recebe imediatamente recursos de que necessita, mas do outro ele se endivida, aumentando as suas obrigações financeiras para o futuro. O investidor acredita que poderá ganhar pouco, mas que se trata de investimento seguro porque a última coisa que um governo em dificuldades faz é deixar de honrar as suas obrigações diretas. Isto porque a repercussão do seu inadimplemento é mais rápida do que a velocidade da luz, trazendo a catástrofe.

Com a emissão de títulos pelo Tesouro há um reflexo imediato na base monetária, pois o BCB, em contrapartida à venda daqueles, recolhe moeda, enquanto no seu vencimento ele a emite. Se a diferença for negativa e dotada de certa perenidade, temos presente mais um sério fator de inflação. E tendo em conta que o BCB não pode obrigar o Governo a parar de emitir títulos públicos, seu poder de interferência inexiste a não ser, indiretamente e sem grande eficácia, pelo fato de que a lei o proíbe de financiar o emitente pela compra direta por aquela Autoridade Monetária. Mas existe a possibilidade de sua aquisição indireta, o que leva o BCB a ser cúmplice involuntário do Governo na sua irresponsabilidade monetária e fiscal2.

Assim sendo, o BCB não tem mais às mãos neste momento crítico da nossa economia qualquer das medidas de política monetária de que pudesse eficientemente dispor sem desmontar ainda mais a precaríssima situação econômico-financeira do País.

Concluindo, a situação do BCB é de absoluta inércia neste momento, situação que pode se prolongar por bastante tempo. Assim, ele está sendo devorado como órgão responsável pela estabilidade da moeda. Isto é inevitável nas condições presentes e esperadas no curto e no médio prazo: “se ficar o bicho come; se correr o bicho pega”. No longo prazo, como dizia Keynes, todos estaremos mortos.

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1 Sobre o assunto vide nosso artigo “Arranjos e Instituições de Pagamento – Regulamentação e Crítica”, revista Rede nº 1. pp. 77 a 121.

2 Veja-se a este respeito nossa obra “Bancos Centrais no Direito Comparado”, Malheiros Editores, São Paulo, 2005, pp. 46 e segs.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é livre-docente e professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Consultor de Mattos Muriel Kestener Advogados.


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