Havendo a expectativa de que sejam julgadas em futuro próximo as ações diretas de inconstitucionalidade que todas as Associações de Titulares de Direitos Autorais e o ECAD ajuizaram contra a lei que muda o sistema de gestão coletiva de direitos autorais, os jornais dão notícia de que alguns artistas foram ao STF defender a lei que, segundo eles, seria importante para a “transparência” da arrecadação de direitos autorais no Brasil.
Mas o que é transparência? No campo dos direitos autorais, um sistema transparente é aquele que assegura aos titulares – compositores, intérpretes, editores – acesso aos dados referentes à arrecadação e distribuição de seus direitos autorais e, mais, que lhes permita se organizarem e gerirem seus direitos da forma que considerarem melhor. Isso já é plenamente garantido não apenas pela lei de direitos autorais em vigor, como também pelo próprio Código Civil. Como tudo, a gestão coletiva de direitos autorais pode ser sempre aperfeiçoada, mas são os titulares dos direitos que detêm o poder sobre o sistema, aprimorando-o como julgarem adequado.
A palavra que melhor define a nova lei é outra: ingerência. Em lugar dos titulares de direitos autorais, em nome dos titulares de direitos autorais e sobre os titulares de direitos autorais é o Estado – ou mais especificamente o Governo, através do Ministério da Cultura (pelo menos até a próxima reforma ministerial) – que passa a decidir como os titulares de direitos autorais devem se organizar, quais as associações por eles criadas podem atuar, quais as regras aplicáveis a essas associações, inclusive no que diz respeito a quem pode votar em suas assembleias, como devem ser cobrados os direitos autorais, quanto pode ser investido na arrecadação de direitos, etc. O Estado substitui o autor que, por benemerência do Governo, se fará representar em uma “comissão” formada por representantes do governo (nomeados pelo Governo), representantes de usuários (nomeados pelo Governo) e, por fim, representante dos titulares de direitos autorais (nomeados ... pelo Governo). Certamente a proximidade com o Governo será determinante na escolha dessa “comissão.”
Em nome da transparência, todas as informações sobre a execução pública de direitos autorais se tornam públicas – ou, outra vez mais especificamente, passam a ser detidas pelo Governo. O Ministério da Cultura passa a armazenar informações completas sobre quantas vezes, quando e onde cada música foi executada publicamente, quem são seus autores, quem são seus intérpretes, quanto cada artista recebeu e receberá, qual seu endereço, seu CPF.
A esse propósito, vale rememorar o episódio mencionado pelo Ministro Luís Roberto Barroso no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade sobre as biografias: nos anos 70, em plena ditadura, para ludibriar censores, Chico Buarque precisou assinar algumas canções sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide. Só assim essas músicas puderam ser gravadas. Felizmente, o ditador dos anos 70 não teve a ideia de promulgar uma lei como a que será julgada pelo STF. Com a nova lei, acabaram-se os pseudônimos, pelo menos em relação ao Governo, que passará a ter um minucioso cadastro de pseudônimos, autores, obras, endereço, CPF. Só falta o tipo sanguíneo. Lembrando a obra de Julinho da Adelaide, parece que chamaram o ladrão.
Impressiona, especialmente nos dias de hoje, que ainda haja quem acredite que o jugo do Estado sobre atividades eminentemente privadas – como a arrecadação e distribuição de direitos autorais – de alguma forma assegurará maior transparência ou eficiência ao sistema, quem acredite que o Governo tem maior capacidade de defender os interesses dos titulares de direitos autorais do que eles próprios. Naturalmente, há os que apoiam a nova lei por motivo ideológico (felizmente a Constituição assegura a todos a liberdade de defender suas posições). Mas não se pode deixar de imaginar que parte dos que apoiam essa limitação tão flagrante de seus próprios direitos não compreenderam perfeitamente os direitos e os poderes que já têm segundo a lei brasileira, capazes de assegurar transparência ao sistema – e os direitos e poderes que perderão, com a nova lei, graças à ingerência direta do Estado.
Por isso, nunca é demais lembrar o pronunciamento de um grande artista, profundo conhecedor do sistema de arrecadação e distribuição de direitos autorais, na audiência pública promovida no STF pelo Ministro Luís Fux. Fernando Brant, que em todos os sentidos e por todos os motivos tanta falta faz, disse o seguinte:
“E agora, passados quase quarenta anos de atividade do modelo de gestão unificada de arrecadação de direitos autorais, as entidades, sempre no âmbito privado e sem qualquer apoio do Poder Público, são surpreendidas com uma lei, que vem ferir o direito exclusivo do criador de se organizar e gerir seus direitos, através de regras arbitrárias que transferem ao Estado uma tutela nunca perseguida pelos autores.
Vacinados contra o vírus do autoritarismo, por termos vivido nos tempos da ditadura, não somos daqueles que a qualquer obstáculo buscam a proteção do Estado, essa mão esquizofrênica, que afaga e apedreja. Os problemas dos cidadãos devem ser resolvidos por eles. A função do Estado, que vive dos impostos que lhe pagamos, é cuidar das grandes questões da coletividade – educação, saúde, segurança pública, infraestrutura. Resistimos porque não queremos, como Prometeu, viver acorrentados. Recusamos o paternalismo estatal e, mais ainda, a intervenção, porque sabemos das ditaduras que se escondem atrás das diversas ideologias, e porque temos – essa sim a nos defender – a Constituição Brasileira”.
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*Pedro Paulo Salles Cristófaro, professor de Direito Regulatório e da Concorrência na PUC-Rio, diretor do Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (IBRAC), sócio do escritório Lobo & Ibeas Advogados e advogado das associações e do ECAD na ADIN.