Migalhas de Peso

Aspectos penais relacionados à falsificação de medicamentos e a inconstitucionalidade da pena prevista para venda de medicamento de procedência ignorada

No Brasil, estima-se que um terço dos medicamentos vendidos é falsificado.

28/10/2015

Segundo dados fornecidos pela Organização Mundial de Saúde (“OMS”), aproximadamente 15% (quinze por cento) do mercado internacional é composto por medicamentos falsificados1, ou seja, produtos embalados/etiquetados indevidamente, de maneira deliberada e fraudulenta, em que não se respeita sua fonte ou identidade, podendo conter alterações e adulterações em sua fórmula original.

No Brasil, os dados são ainda mais alarmantes, estima-se que um terço dos medicamentos vendidos é falsificado2. Esse patamar se equipara aos valores previstos pela OMS, com relação aos países em desenvolvimento, onde, se acredita que em média 30% (trinta por cento) dos medicamentos comercializados são falsos.

A falsificação de medicamentos, apesar de ilegal, demonstra ser uma atividade altamente lucrativa, devido, principalmente, ao baixo custo de produção, onde, em muitos casos, os produtos introduzidos no mercado apresentam composição similar aos autênticos, sem componentes ativos, com componentes ativos insuficientes ou outros fármacos no lugar dos ativos usuais, ocasionando a produção de medicamentos fora dos padrões de qualidade e segurança necessários.

Além disso, a ausência de legislações adequadas, a falta de controle e informação entre as partes envolvidas (consumidores, polícia, autoridades sanitárias, indústrias e comerciantes), torna o ambiente propício para a atuação de indivíduos e organizações criminosas especializadas na prática desses crimes.

Segundo informações apresentadas pelo Centro de Medicamentos de Interesse Público dos Estados Unidos (Center for Medicine in the Public Interest), estima-se que apenas em 2010, as vendas mundiais de medicamentos falsificados movimentaram a quantia de US$ 75 bilhões (setenta e cinco bilhões de dólares), representando um aumento de 92% (noventa e dois por cento) se comparado com 20053.

Outro dado interessante, mas não surpreendente, haja vista o lucro gerado por pela comercialização de medicamentos falsificados, está relacionado ao desenfreado aumento dos casos de falsificação de medicamentos. Estima-se que entre 2000 e 2006, houve um crescimento de 800% (oitocentos por cento), fato que, segundo as autoridades, ocasionou durante este período, a morte de aproximadamente oitocentas mil pessoas em todo o mundo4.

Com o objetivo de intensificar a fiscalização e controle desse mercado no Brasil, foi criada a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) - Lei nº 9.782 de 1999, agencia reguladora que, dentre de seus vários atributos, tem o papel de fiscalizar, autorizar o funcionamento de empresas de fabricação, distribuição, importação, bem como a comercialização de medicamentos de uso humano.

A criação da ANVISA, à qual foi delegado um papel determinante para as ações de prevenção e combate à falsificação de medicamentos, proporcionou a estruturação dos órgãos de fiscalização componentes do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e o estabelecimento de padrões e fluxos de trabalho em casos de investigação de suspeita de falsificação, a regulamentação e o controle da cadeia de produção e fornecimento de medicamentos no país5.

O crime de falsificação de substância alimentícia ou medicinal, já era previsto no Código Penal, porém, após uma série de escândalos que ocorreram no Brasil, relacionados à falsificação de medicamentos, foi editada a Lei nº 9.677, de 02 de julho de 1998 (conhecida como a Lei dos Remédios), que trouxe diversas modificações ao texto anterior, onde, o legislador pátrio, buscou por meio da nova lei, acalmar as pressões sociais reforçadas pela crescente repercussão midiática.

Com as alterações, o novo texto legal, passou a tipificar as condutas falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (artigo 273 do CPB), cuja pena alcançou o patamar máximo de 15 (quinze) anos de reclusão (antes a pena máxima era de 06 anos de reclusão). Além disso, foram incluídas diversas figuras típicas equiparadas e sujeitas às mesmas penas.

Posteriormente, foi editada a lei 9.695/98, que incluiu o crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (na modalidade dolosa), no rol dos crimes hediondos (artigo 1º, VII-B da lei 8.072/1990).

Como se sabe, os crimes hediondos são aqueles considerados de maior reprovação, que causam repulsão social, cuja lesividade é acentuadamente expressiva, e que, por esses motivos, recebem um tratamento diferenciado e aplicação de medidas mais rígidas (regime prisional inicialmente fechado, progressão de regime em 2/5 ou 3/5, prisão temporária de trinta dias).

O tipo penal em análise tem por objetivo a garantia e proteção do bem jurídico, saúde pública e, em geral, a incolumidade pública. Haverá a tipificação do crime, quando estiverem presentes as condutas de falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto, assim como importar, vender, expor à venda, ter em depósito para vender, distribuir ou entregar a consumo, produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (artigo 273, caput e §1ª do CPB).

Como dito, o objeto jurídico do crime em análise é a incolumidade pública/saúde pública, já o objeto material é o produto destinado para fins medicinais ou terapêutico, além dos medicamentos (produtos destinados para a cura de doenças), da matéria-prima (substância empregadas na fabricação de produtos terapêuticos ou medicinais), dos insumos farmacêuticos (produtos combinados de vareadas matérias primas com a finalidade de servirem de medicamentos), dos cosméticos (produtos de pele: maquiagem, limpeza, conservação), dos saneantes (produtos de limpeza em geral) e dos produtos usados em diagnostico (instrumentos para detecção de doenças).

Além disso, o legislador incluiu, no §1º, do artigo 273 do CPB, algumas figuras típicas equiparadas, sujeitas às mesmas penalidades, onde se vincula as condutas de importar, vender, expor à venda, ter em depósito para vender, distribuir e entregar a consumo produtos: a) sem registro (não é falsificado, porém não possui registro junto ao órgão competente); b) em desacordo com a fórmula registrada no órgão competente (apesar de registrado, foi produzido em desacordo com sua fórmula constante no registro); c) sem as características de identidade e qualidade (não corresponde exatamente ao autorizado pelo órgão competente, principalmente quanto à forma de apresentação); d) com redução do valor terapêutico (não possui eficácia no combate das doenças, perdendo sua capacidade terapêutica); e) procedência ignorada (sem origem, sem nota); f) adquiridos em estabelecimento sem licença (originários do comercio clandestino).

Com relação à classificação, trata-se de crime comum, pois o sujeito ativo poderá ser qualquer pessoa; formal, pois independe da verificação de resultado naturalístico; comissivo (em alguns casos, poderá ser considerado omissivo ou comissivo impróprio, quando a agente tinha o dever de evitar o resultado); instantâneo; de perigo abstrato ou presumido (coloca um número indeterminado de pessoas em risco); unisubjetivo (pode ser cometido por um único agente) e plurissubsistente (ação composta por vários atos, cabendo fracionamento).

O elemento subjetivo do tipo é o dolo, ou seja, o agente agirá de forma livre e consciente, com o intuito de corromper, adulterar, alterar, falsificar os produtos para fins terapêuticos ou medicinais (caput), assim como na vontade livre e consciente de importar, vender, expor à venda, ter em depósito para vender, distribuir ou entregar a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado, contidas no parágrafo 1º-A e as condutas do parágrafo 1º-B.

O tipo penal em referência, também admite a modalidade culposa (alguns doutrinadores entendem de forma diversa, pois defendem que é uma conduta inerente à fraude, portanto, incompatível com a culpa), quando o agente, por imprudência, negligência ou imperícia, pratica algumas das condutas acima elencadas.

Questionável, e amplamente discutida atualmente, é a altíssima pena prevista para um delito de perigo abstrato, que, em virtude das alterações legislativas supra mencionadas, passou a ser de 10 (dez) a 15 (quinze) anos de reclusão, onde a sanção prevista se equipara a crimes considerados muito mais repudiantes, a exemplo do homicídio simples (pena de reclusão de 06 a 20 anos). Além disso, diversas condutas previstas no tipo penal, anteriormente consideradas como meras infrações administrativas, nitidamente pobres em ofensividade, são tratadas como crimes graves, com pena privativa de liberdade altíssima.

Apenas para exemplificar, após as alterações, se equiparou os cosméticos, produtos tópicos destinados ao embelezamento corporal e os saneantes que consistem nos produtos de limpeza, aos medicamentos criados com o objetivo de curar os males e doenças, fato que demonstra a total desproporcionalidade e irrazoabilidade de tais alterações, posto que a falsificação de cosméticos e de produtos de higiene, não ofende significativamente o bem jurídico tutelado pelo tipo penal, que é a saúde pública.

Esse é o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), que em decisão recente (HC 239363), declarou a inconstitucionalidade do preceito secundário (que estabelece a sanção) do artigo 273, parágrafo 1º-B, inciso V, que trata da venda de medicamento de procedência ignorada, onde se considerou que a sanção (prevista de forma exorbitante) fere os princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade, sendo evidente a falta de harmonia entre o delito e a pena.

O que se percebe, é que o legislador, ao elevar o patamar do artigo 273 do CPB, incluindo-o no rol dos crimes hediondos pela Lei nº 9.695/98, quis assegurar à proteção a saúde pública baseada em uma resposta midiática a um fato ocorrido que causou grande repercussão, porém agiu de forma altamente fora dos parâmetros legais, fato que feriu completamente os citados princípios constitucionais.

Seguindo a orientação e entendimento do STJ, muitos julgadores vêm opinando pela utilização de medidas alternativas, principalmente utilizando a analogia, aplicando em casos semelhantes, as penas previstas para o tráfico de drogas (artigo 33 da Lei 11.343/06), devido à afinidade entre as condutas.

Apesar da gravidade do crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais, o que não se busca negar, percebe-se de forma clara a desproporcionalidade entre a gravidade do delito e a pena prevista em alguns casos específicos, o que deve fazer com que os julgadores analisem de forma isolada cada caso concreto.

Dessa forma, em razão dos fundamentos trazidos pelo STJ, e, principalmente, em respeito aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, esse deverá ser o entendimento adotado e aplicado pelos Tribunais em todo o Brasil.

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1 https://www.cff.org.br/noticia.php?id=2994

2 https://www.redebrasilatual.com.br/saude/2013/01/30-dos-medicamentos-vendidos-no-brasil-sao-falsos

3 https://www.revistas.usp.br/rdisan/article/view/13252/15069

4 https://www.scielo.br/pdf/csp/v30n4/0102-311X-csp-30-4-0891.pdf. Cheng MM. Is the drugstore safe? Counterfeit diabetes products on the shelves. J Diabetes Sci Technol 2009; 3:1516-20

5 https://www.anvisa.gov.br/medicamentoverdadeiro/conteudo/cont_falsificacao.htm

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*Thiago Guimarães Ferreira Lima é advogado especialista em direito Penal do escritório da Fonte, Advogados.

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