A lei que regula o impeachment no Brasil (Lei 1.079) foi sancionada por Eurico Gaspar Dutra, em 1950. Está completamente ultrapassada. Mais: tal como a Lei de Imprensa, há sérias dúvidas sobre se foi (ou não) recepcionada pela Constituição de 1988. Num país bacharelesco como o nosso, que tem como tradição criar regras para tudo para que sejam violadas em seguida, estando em disputa o poder central, é mais do que previsível a guerra de liminares, que já começou com três, num mesmo dia, todas concedidas pelo STF, para reprovar a manobra jurídica promovida por Eduardo Cunha e pela oposição, naquilo que destoa da esclerosada lei já citada.
A peculiaridade do impeachment no atual contexto de crises acumuladas no Brasil é que quase ninguém sabe nem como começa nem como vai terminar. O ponta pé inicial cabe a um deputado acusado de ter 23 milhões de reais de propinas em quatro contas clandestinas na Suíça. Com mais um rebaixamento da nota do país será inevitável nosso mergulho profundo no abismo desconhecido. No lado político da linha sucessória não existem mocinhos, somente vilões. Para complicar mais ainda: praticamente tudo na lei do impeachment é confuso e seus conceitos são extremamente vagos. Nada existe de Procusto nela. Cada ponto controvertido admite, no mínimo, duas interpretações.
Por exemplo: pode o presidente ser responsabilizado por “crimes” ocorridos em mandato já extinto? O pedido de impeachment admite aditamento? Uma mera opinião do Ministério Público sobre “pedaladas”, opinião não analisada pelo TCU nem convalidada pelo Congresso, é suficiente para tirar um partido do governo? As contas de Dilma, de 2014, rejeitadas (corretamente) pelo TCU, mas ainda não apreciadas pelo Congresso Nacional, como manda a Constituição, constituem base jurídica para o impedimento? Tudo pode ser questionado juridicamente. E é o que será feito, com certeza (enquanto a economia afunda cada dia mais, o desemprego aumenta, a inflação explode, a instabilidade se agrava e por aí vai).
A oposição quer desapear Dilma e o PT do poder. Alega-se incompetência, ingovernabilidade e corrupção da moralidade pública. Os imputados retrucam e dizem que isso é golpe. O conflito está estabelecido. Quem está disposto a largar um osso de 5 trilhões de reais por ano? O problema: quem decide essa pendenga? O Legislativo (diz a lei 1.079/50), que ora é conivente com a imoralidade do governante, ora quer se vingar dele. Que isenção tem esse Poder Político para julgar o Executivo, que também faz parte do mesmo poder, normalmente mancomunado com o econômico e o financeiro?
A raiz epistemológica do impeachment está totalmente equivocada (e isso vai contribuir muito para o agravamento da crise política brasileira, com reflexos imediatos na crise econômica). A lei de 1950 é do tempo em que mandava em tudo soberba e soberanamente o Executivo (com total menosprezo ao povo e ao Poder Jurídico de Controle). Só para recordar: qual é a origem moderna do impeachment? Vem da cultura jurídica e política dos ingleses do século 17 (época em que o poder forte era o Parlamento composto de aristocratas). No mundo aristocrata o povo não existe. Qual a sua origem remota? Reside no que os gregos chamavam de eisangelia (Roberto Romano, Estadão 12/10/15: A2), que corresponde ao que hoje se denomina de “recall”. Ela se aplica “quando uma autoridade (rei, deputado, juiz, promotor etc.) não cumpre a lei e não presta contas satisfatórias (accountability) ao povo dos recursos naturais, econômicos, humanos”. Em síntese, o corrupto ou o incompetente (eleito pelo povo) não pode continuar governando. Isso é muito certo.
E o povo nessa história? Ora, quem tem o poder de eleger e que é fonte de todos os poderes tem que ter também o poder de deseleger. A democracia não pode nunca ser o governo do povo, pelo povo e para o povo, esquecendo-se do povo. “Todos os males da democracia se podem curar com mais democracia” (Alfred Emanuel Smith, americano, político).
“Algo só é impossível até que alguém duvide e acabe provando o contrário” (Albert Einstein). Necessitamos urgentemente de uma nova regulamentação jurídica para encampar esse poder (do povo) de deseleger. O velho modelo do Estado brasileiro, falido (onde convivem o patrimonialismo dos governantes com o extrativismo de algumas elites econômicas e financeiras, em prejuízo da maioria da população), é decrépito e está ultrapassado. O impeachment (da Dilma, por exemplo) é uma forma de “deseleição” dominada pelo mundo político normalmente corrupto (e que, ademais, é subjugado pelo econômico e financeiro). A cassação dos parlamentares (de Eduardo Cunha, por exemplo) cabe ao mundo político (que é comandado pelos financiadores das suas campanhas). Em regra, não passa de uma farsa.
Conclusão: a tarefa de “deseleger” o representante eleito pelo povo tem que ser do próprio povo (“recall”), que é soberano e fonte de todos os poderes. O filtro dos pedidos de deseleição, com milhares de assinaturas, compete ao Poder Jurídico de Controle (independente, fora do mundo político, leia-se, Poder Judiciário). Deferido o pedido, com provas mínimas da incompetência ou da imoralidade do governante ou do parlamentar, marca-se uma data e o povo (eleitores) decide. O impeachment (como regulamentado hoje) é coisa ultrapassada, é instrumento de conchavos políticos e de negociatas (para a preservação do poder, diria Maquiavel), cujo custo (altíssimo), todos sabemos, sempre corre por conta dos contribuintes.
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*Luiz Flávio Gomes é jurista e presidente do Instituto Avante Brasil.