Migalhas de Peso

Descumprimento de obrigação meramente acessória e limites à imposição de multas: o princípio da razoabilidade e a salutar regra das Instruções CAT 10/1968 no Estado de SP

Citada norma prevê as hipóteses em que o auto de infração não será lavrado pelo descumprimento de obrigações acessórias, devendo o agente fazendário intimar o contribuinte para que regularize a situação.

30/9/2015

O princípio da razoabilidade – implícito na CF de 1988, e inserido expressamente no art. 111 da Constituição do Estado de SP – impõe à autoridade administrativa a conduta do bom senso, de tal modo que os fins perseguidos pelo ato administrativo em cada caso concreto sejam compatíveis com os meios a serem empregados pela administração.

No Estado de São Paulo, aliás, o Código de Defesa do Contribuinte exige da autoridade fazendária a obediência àquele princípio (vide art. 8º da lei complementar 939/03), além do que o Código prestigia, dentre seus objetivos, o de assegurar a orientação fazendária ao contribuinte (art. 2º, V) além da efetiva educação tributária e orientação sobre procedimentos administrativos (art. 4º, VIII).

O ambiente pedagógico que prevalece na norma e o regime de lealdade por ela recomendado nem sempre é aquele que se vê na prática, até porque há penalidades muito elevadas previstas na legislação tributária, inclusive para as infrações que decorram do mero descumprimento de obrigações acessórias (dever de escriturar livros fiscais, por exemplo), e no mais das vezes as autuações são lavradas sem que haja uma prévia orientação fazendária para corrigir equívocos.

Como muitas das multas são consideradas devidas ainda que não haja falta de recolhimento de tributo – circunstância que decorre, dentre outros, da chamada responsabilidade objetiva por infrações tributárias (art. 136 do CTN) – e considerando que o postulado da razoabilidade é dirigido ao agente fazendário, mas não expressamente ao legislador, não é de admirar que certas multas por infrações meramente formais sejam previstas nas leis tributárias em patamares manifestamente incompatíveis com o dano potencial (ou efetivamente causado) ao fisco por decorrência da falta cometida pelo contribuinte.

Citem-se, como exemplos – e ainda no Estado de SP – as multas previstas no art. 85 da lei paulista 6.374/89, a propósito do ICMS, que são exigidas em patamares bastante elevados, independente do pagamento do imposto:

A alínea "g" do inciso III prevê multa de 50% do valor da operação para a hipótese de entrega, pelo depositário, de mercadoria ou bem importado "sem a observância de requisitos regulamentares".

As alíneas "j" e "n" do inciso IV estipulam multa de 15 UFESP – atualmente R$ 318,75 – por documento fiscal extraviado.

A alínea "g" do inciso V impõe multa de 1% do valor das operações quando não estiverem escrituradas por mero "atraso de escrituração" nos livros do contribuinte, e a alínea "m" do mesmo comando estipula a mesma multa para a hipótese de "extravio" do livro fiscal.

A alínea "d" do inciso VI impõe multa de 3% do valor das mercadorias remetidas para outro estabelecimento, na singela hipótese de mudança de endereço não comunicada ao fisco no prazo legal.

A leitura do extenso dispositivo do art. 85 da lei 6.374/89 dá a impressão de que não há falta (mesmo que sem intenção de lesar o fisco) para a qual o legislador não prevê uma multa. E para que não pairem dúvidas a vala comum vem prevista no § 6º daquele dispositivo: "Não havendo outra importância expressamente determinada, as infrações (...) devem ser punidas com multa de valor equivalente a 100 (cem) UFESPs."

É comum, a bem da verdade, que as multas aplicadas pela fiscalização do ICMS sejam reduzidas ou relevadas na esfera administrativa, durante o julgamento da impugnação do contribuinte – processada perante o Tribunal de Impostos e Taxas – com amparo no art. 92 da citada Lei n. 6.374/89 (que impõe, como condição, a inocorrência de dolo, fraude ou simulação, além de se restringir aos casos onde não haja falta de pagamento do imposto).

O que não é comum, todavia, é a fiscalização agir com estrita observância do princípio da razoabilidade antes da lavratura do auto de infração. Com efeito, se o postulado da razoabilidade não é levado em conta pelo próprio legislador, é difícil exigir que o agente fazendário – que exerce uma atividade escravizada aos ditames legais – possa abrandar, por sua conta e risco, a aplicação das multas diante de cada caso concreto.

Mas é justamente para esse tipo de situação que a razoabilidade administrativa recomenda a regra contida nas Instruções CAT n. 10/1968, publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo de 20/12/1968 (e que na atualidade encontra amparo no art. 72, § 2º, da lei 6.374/89). O item 2 daquela norma prevê as hipóteses em que o auto de infração não será lavrado pelo descumprimento de obrigações acessórias (dentre tantas outras, as infrações acima enumeradas), devendo o agente fazendário intimar o contribuinte para que regularize a situação em 3 dias – prorrogáveis por mais 30 a critério do Chefe do Posto Fiscal (item 3).

O item 4 daquela norma prevê que, na hipótese de situação de fato consumada (que impeça a regularização) o contribuinte será meramente advertido, mediante notificação específica, para que passe a cumprir corretamente a obrigação dali por diante.

Como se não bastasse, o item 8 daquele ato prevê que o auto de infração não será lavrado "em casos duvidosos ainda não decididos pela Administração em caráter normativo".

Tendo em vista que o item 10 do ato em tela impõe o arquivamento dos autos de infração lavrados em desacordo com a norma acima referida, o próprio Tribunal de Impostos e Taxas acolhe a nulidade em suas decisões (como se pode constatar, por exemplo, do Processo n. DR/13-453265/2008).

Custa acreditar, todavia, que o Tribunal de Impostos e Taxas não aplique, de ofício, as regras contidas nas Instruções CAT n. 10/1968, já que é o órgão responsável pelo exame de legalidade do auto de infração no âmbito da SEFAZ/SP.

Em outras palavras, se o agente fazendário não cumpre este papel na lavratura do auto de infração – quando há mero descumprimento de obrigação acessória – nem por isso o órgão julgador administrativo está dispensado de fazê-lo, se não por força da norma propriamente dita, pelo menos em homenagem ao princípio da razoabilidade.

___________________

*Rogério Pires da Silva é sócio em Boccuzzi Advogados Associados.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024