Se estivesse vivo, acredito que o historiador Eric Hobsbawn classificaria os dias atuais como a Era dos Paradoxos. Afinal, os opostos têm convivido com tanta cercania que já não são como os dois lados de uma moeda. Agora, é até difícil distinguir um do outro: “Quando um dia se puder caracterizar a época em que vivemos, o espanto maior será que se viveu tudo sem antes nem depois (...) desigualdade passou a chamar-se mérito; miséria, austeridade; hipocrisia, direitos humanos; guerra civil descontrolada, intervenção humanitária; guerra civil mitigada, democracia.”1 Exemplo concreto disso é a luta contra o terror.
Os terríveis ataques suicidas às Torres Gêmeas do complexo empresarial World Trade Center (Nova Iorque), ocorridos em 11 de setembro de 2001, desencadearam uma reação mundial que culminou com a adoção e, principalmente, com a “aceitação” de uma política de segurança preventiva conhecida como guerra ao terrorismo. Especificamente nos Estados Unidos da América, logo após os atentados e ainda sob o impacto da forte comoção causada pelas quase três mil mortes, o Parlamento aprovou a Lei Patriótica (Patriot Act), que aumentava significativamente os gastos militares e restringia os direitos civis (por exemplo, autorizando prisões por tempo indeterminado e sem controle judicial).
As notícias que se seguiram à implementação dessa guerra contra o terror sobre o uso de tortura em prisões como a de Guantánamo e o monitoramento de canais de comunicação em massa (denúncia feita pelo ex-funcionário da Agência de Segurança Nacional, Edward Snowden2) causaram constrangimento, mas não foram suficientes para ensejar uma discussão transparente e inclusiva sobre o assunto. Pelo contrário, vários compromissos internacionais foram celebrados no sentido de que os Estados signatários deveriam modificar sua legislação interna de modo a fortalecer o combate ao terrorismo. O Brasil, participante de vários fóruns multilaterais, está às voltas com projetos de lei sobre esse tema desde o início dos anos 20003.
Durante a administração do Presidente Obama, percebeu-se certo redimensionamento da política de segurança, com a indicação de que se iniciaria uma nova fase da guerra global ao terrorismo, embora isso não significasse restaurar as liberdades civis ao estado anterior a 2001. Mas os movimentos de abrandamento e intensificação da luta contra o terror variam ao sabor dos fatos e da comoção popular. Prova disso são as inúmeras mudanças legislativas ocorridas na Europa após a realização de atentados, todas no sentido de enrijecer as normas e, assim, restringir liberdades civis (Madrid, 2004; Londres, 2005; Paris, 2015).
O Brasil não é refratário a esse cenário internacional. Também aqui tramitam projetos de lei antiterrorismo, e a pressão sobre o Congresso Nacional varia, assim como no exterior, conforme o contexto: ataques do PCC ocorridos em maio de 2006, em São Paulo; manifestações populares em todo o território nacional em junho de 2013; realização da Copa do Mundo de Futebol em 2014 e, agora, a proximidade das Olimpíadas de 2016. Os principais projetos de lei sobre o combate ao terror que tramitam hoje em dia no Poder Legislativo são o PL 236/12, o PLS 499/13 e PL 2.016/15.
Não há consenso sobre esses projetos entre os especialistas4: suficiência ou não da legislação vigente, imposição dos acordos internacionais firmados, risco de criminalização de movimentos sociais, restrição das liberdades civis. E, entre os cidadãos, não há difusão do tema e, muito menos, apropriação do debate. O confronto entre o terrorismo e as liberdades civis é grave e demanda envolvimento. Afinal, nada garante que o recrudescimento da legislação seja eficiente para evitar novas tragédias (haja vista a sucessão de ataques desde 2001). Mas tudo indica que o retrocesso social gerado pela restrição de direitos e liberdades civis seja de difícil (talvez improvável) reversão. Fica a dica!
De novo Boaventura:
“Quando um dia se puder caracterizar a época em que vivemos, o espanto maior será que se viveu tudo sem antes nem depois, substituindo a causalidade pela simultaneidade, a história pela notícia, a memória pelo silêncio, o futuro pelo passado, o problema pela solução. Assim, as atrocidades puderam ser atribuídas às vítimas, os agressores foram condecorados pela sua coragem na luta contra as agressões, os ladrões foram juízes, os grandes decisores políticos puderam ter uma qualidade moral minúscula quando comparada com a enormidade das consequências das suas decisões. (...)”5
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1 Extraído do texto “Para ler em 2050”, de Boaventura de Sousa Santos, disponível no endereço eletrônico https://outraspalavras.net/destaques/boaventura-para-ler-em-2050/ (acessado em 07/09/2015.
2 Para conhecer a denuncia feita pelo ex-funcionário da Agência de Segurança Nacional, Edward Snowden, visitar o endereço eletrônico https://www.theguardian.com/world/2013/jun/09/edward-snowden-nsa-whistleblower-surveillance (acessado em 07/09/2015).
3 Aliás, o site WikiLeaks chegou a divulgar correspondência enviada pelo Embaixador norte-americano no Brasil, em que se mencionava a suspeita de que a então Ministra Dilma Rousseff teria rejeitado o projeto de lei por questões ideológicas – para consultar a notícia, clicar no seguinte endereço eletrônico https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,wikileaks-eua-alertaram-para-acao-antiterror-de-dilma,647362 (acessado em 07/09/2015).
4 Nesse sentido, veja-se o artigo veiculado pela página web do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada: https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=3151&catid=28&Itemid=39 (acessado em 07/09/2015).
5 Extraído do já citado texto “Para ler em 2050”, de Boaventura de Sousa Santos.
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*Fernanda Giorgi é advogada do escritório Loguercio, Beiro e Surian Sociedade de Advogados.