É preciso se fazer uma merecida louvação ao coroné Zeferino Cavalcanti, pois melhor prefeito jamais existiu neste vasto sertão onde se localiza nossa querida cidade, a quase progressista Vaca Gorda, Vaca Magra. Nosso município tinha outro nome, mas a gente até se esqueceu. Quando chove por aqui fica tudo verdinho, verdinho. O gado se multiplica e fica gordo que dá gosto. Todo mundo tem leite em casa, queijo de coalho, queijo manteiga, mandioca, que aqui saúdo. Dá para comer chã de dentro com muito arroz, feijão, charque e farinha. Mas de repente vem a estiagem e tudo seca, some o pasto, a comida é farinha com farinha misturada com um resto de melado de cana e o gado fica só pele e osso. E a estiagem por aqui costuma demorar para ir embora. Daí que pegou na cidade o nome de Vaca Gorda, Vaca Magra.
Mas para tudo tem jeito e o Coroné Zeferino é nosso pai. Para ele não tem tempo ruim, enricando cada vez mais e sempre ajudando os pobres da cidade, que, na seca, vendem para ele tudo o que têm em troca de comida. Se não fosse ele, todo mundo morria de fome. E para isto é preciso se preparar no tempo da vaca gorda, para quando chegar o tempo da vaca magra. O coroné diz que aprendeu isso na Bibla, com um tal de José, vice-rei do Egito, que era do tempo em que galinha tinha dente.
O coroné não é nada bobo. Tiveram uns gringos que vieram para cá para procurar petróleo, diziam eles. E diziam que tinha petróleo nas terras do coroné. E olhe que é terra de perder de vista. A gente olha para todo o lado do alto do campanário da matriz e é tudo terra do coroné. Aí os gringos disseram que se ele deixasse que furassem a terra e achassem petróleo, metade dos ganhos seriam do coroné. Ele disse que tudo bem, mas queria uma entrada sem volta. Se achassem o tal do petróleo, faziam a partilha. Se não achassem, ele ficava com o dinheiro da entrada.
Depois de muitos furos, petróleo não deu, mas os gringos acharam muita água doce enterrada e foram embora chateados. O coroné botou uma torneira no poço que estava canalizado e nunca mais faltou água nas suas terras. E quando é na seca ele dá uma lata de água por dia para cada família de Vaca Gorda, Vaca Magra, sem cobrar um tostão. Gente igual ao coroné Zeferino não existe.
Nestes dias de agora os cabras das redondezas acostumados a prever o tempo, estão dizendo que vem por aí a maior das securas. Eles andam com umas varinhas na mão, apontando para a terra e olhando para o céu, lambendo o dedão e sentindo o vento. Disseram que a seca vai durar mais do que aquela do tempo da Fome de Sessenta, segundo contava o meu bisavô, que Deus o tenha. E aí, disse o coroné, “Vamos precisar de mais dinheiro prá já”. “Mas como coroné?”, disse o vereador Biu, “se a gente já espremeu o povo de todas as maneiras. Não tem mais o que inventar”.
O coroné coçou e coçou a cabeça e o cavanhaque, como sempre fazia quando estava pensando e foi justo nessa hora que passou uma boiada pela rua principal e única da cidade (o resto é viela), conduzida pelos boiadeiros com sua gritaria de sempre. A boiada corria assustada, desconfiada da cidade, às vezes subindo para a calçada e botando medo nas pessoas e de vez e quando passando por cima de alguém. E o coroné só olhando. Aí teve mais uma daquelas ideias que o tornaram famoso em todo o agreste.
“Isso não pode continuar desse jeito”, disse ele. “O povo atropelado pelos bois tudo se misturando numa correria que não tem tamanho. Vamos consertar este estrago”.
“Mais acomo a gente pode fazer?”, perguntou Biu.
“Fácil, fácil”, disse o coroné. “Chame aí o Secretário de Obras. Veio o Linhares. Ele tinha tanto parente no governo que o povo chamava ele de Milhares. O prefeito olhando para os dois lados da rua disse para o Linhares: “Pegue seus camaradas e amanhã mesmo você vai abaixar cada calçada em um metro na largura, deixando o meio fio”. Pinte o espaço novo com tinta vermelha e mande fazer cartazes dizendo ‘gentevia’. O povo somente poderá andar na gentevia. Se andar na rua que tome multa. Um real cada infração. Contrate uns cabras como fiscais. Prá cada multa cada fiscal ganha vinte centavos. Assim o povo não vai ser atropelado quando a boiada passar.”
“Muito boa ideia, coroné”, disse o vereador Lula, que tinha uma venda. Na porta da venda dele estava escrito “Secos e Molhados”, mas pelo que eu soubesse, só tinha mesmo molhados. “Dá para ver como o senhor ama esse povo, sempre cuidando dele”.
“Mas como as pessoas vão atravessar de um lado para o outro da rua?”, perguntou o vereador Linhares. “A gente pinta umas listras brancas na rua a cada 500 metros. Diz que chama zebra. Atravessar a rua somente por ali. Senão, leva multa”, disse o coroné.
“Mas ai o povo vai ter às vezes que andar muito”, falou Linhares. “Deixe de ser do contra, vereador, o povo precisa andar para não engordar”, respondeu o Coroné.
“E tem mais”, disse o coroné. “Vamos botar velocidade máxima para a boiada quando passar pela cidade. Não quero ver boi por aí matando as pessoas. Os bois vão ter que andar por aqui bem devagarinho e sossegados. Passou da velocidade máxima, multa para o boi e multa para o boiadeiro”.
“E qual será a velocidade dos bois?”, perguntou o vereador Biu.
“Fácil”, disse o coroné. “Quem é o nosso ajudante mais leso?”
“Prá-que-Veio”, disseram todos ao mesmo tempo.
“Ele será nosso radar eletrônico”.
Prá-que-Veio era funcionário da Prefeitura de Vaca Gorda, Vaca Magra fazia muitos anos e ele mesmo não fazia quase nada. Quando ele chegava para o trabalho ia logo dizendo “Não sei por que vim trabalhar hoje”. E todo mundo respondia: “Então, prá que veio?”. Daí o nome dele.
Então o coroné explicou. “Vai ser assim. A gente compra um chapéu para Prá-que-Veio com umas luzinhas de Natal, à pilha, que apagam e acendem. Aí a gente dá um crachá para ele pendurar no pescoço escrito: Radar Eletrônico. Quando uma boiada estiver chegando na entrada da cidade, o guarda de trânsito vai fechar uma porteira que o Linhares vai construir. Ai ele chama o Pra-que-Veio e bota ele ao lado da boiada, na “gentevia”. Então o guarda dá um apito e levanta a porteira e Prá-que-Veio tem que sair junto na mesma direção dos bois. Se um boi passar Prá-que-Veio, multa. Dez centavos por boi e dez centavos pelo peão descuidado. Se o boi subir na gentevia ou na calçada, a mesma coisa”.
“Mas todo mundo passa Prá-que-Veio”, disse o Lula.
“E antão?”, respondeu o coroné Zeferino. “Quem mandou o boi ser mais esperto?”.
“E se o dono do gado não quiser passar pela cidade?”, indagou o vereador Biu. “Ai eles vão ter que passar pelas minhas terras e vou cobrar pedágio”, disse o coroné. “Mais caro do que a multa da cidade”.
“E não tem que fazer licitação para a compra do material e para os foncionarios?”, falou o vereador Biu. “Deixe disso, compadre, não vê que estamos em situação de calamidade pública e que os contratados todos serão de notória especialidade?”, atalhou o coroné Zeferino.
“Assim vai entrar muito dinheiro para a prefeitura”, disse o Linhares.
“Calma, vereador, também não é assim” exclamou o coroné. “Tem a nossa parte. Afinal de contas se trabalhamos para o bem do povo, temos direito a um pedacinho da multa, quem sabe uns vinte por cento? Diz que na Capital tem até um nome para isso, mas eu não sei qual é”.
“E aquele tal de Tribunal de Contas, não pode sair atrás da gente?”, perguntou o Linhares. “Linhares”, disse o coroné Zeferino, “quem são os membros do Tribunal?”
“São o Beleléu, o Chico da Jaqueira e o Laurentino Sim-Senhora”.
O Beleléu era um bacharel tão esquelético que todo mundo quando o via achava que ele estava morto. O coroné deixava ele comer na prefeitura todo o dia, mas ela não engordava mesmo. O Chico da Jaqueira morava ao lado da cuja, que era do coroné. E quem mandava no Laurentino era a mulher dele, prima segunda da mãe do coroné.
“Antão”, disse o coroné. “O Beleléu é afilhado da minha mulher. O Chico é cunhado do meu irmão e o Laurentino tá me devendo uma promissória”. Aquela promissória guardada no cofre do coroné era tão velha que o papel quase se desfazia, mas nela só está escrita a assinatura do Laurentino. O resto está em branco.
O coroné finalizou: “Desjeito o Tribunal de Contas faz as contas: vinte por cento para nós e oitenta por cento para a Prefeitura. Muito justo. Podia ser o contrário, mas nós não pensamos em dinheiro. Isto são uns trocados para ajudar nas despesas de casa. Nosso lema é trabalhar para o povo”.
É por ser tão bom para o povo que o coroné Zeferino Cavalcanti nunca perdeu uma eleição. Talvez porque sempre concorre sozinho. O último que se candidatou junto com ele foi achado morto, mordido no pescoço por uma jararaca. Eu não sabia que jararaca podia dar um bote tão alto. É por tudo isto que o povo tão agradecido diz que se o coroné botar um calango como candidato a vereador, ninguém ganha do bichinho2.
Passados meses, o coroné seus ajudantes estavam sentados no Bar Sem Nome, tomando uma cerveja. “Biu, chame o chefe do CAT” (Centro Agarra Trouxa do município). Veio então o Tiziu (assim chamado porque era pequenininho, sempre vestido de preto e dando pulinhos quando andava). “Tiziu”, quantas multas este mês?”. “Nenhuma”, respondeu ele. “Nem por atropelamento, nem por velocidade”, perguntou o coroné? “Nada”, disse o Tiziu. Aí o coroné, todo vangloriado disse: “Tão vendo como a minha lei deu certo? Eu livrei o povo de muitos males”. Todo mundo bateu palma e cada um bebeu mais uma talagada de cerveja.
É isso como o coroné não existe. E não sei por que a oposição está sempre de intriga, mesmo que seja tempo de vaca magra e não esteja passando boiada pela cidade.
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1 Dado que o Brasil é o país das oportunidades, essa cidade poderia se localizar em qualquer ponto do nosso vasto território, sem preconceito. Mesmo porque o autor também é cabeça-chata.
2 Este é um jornal jurídico. Portanto precisamos contextualizar a matéria desta fábula. Palavras-chave: corrupção ativa – corrupção passiva – improbidade administrativa – nepotismo – cunhadismo – peculato – oportunismo (na linha de law and economics) – colaboração premiada (alguém vai abrir o bico e delação é uma palavra muito feia) – lavagem de boi - poste (está por aí em algum lugar) – temor reverencial - chantagem. Key words: active corruption – passive corruption – to be dishonest in administration – protecting the nephew – protecting the brother in law – peculation - taking the opportunity (thinking about direito e economia) – rewarding the collaboration (somebody will sing and the word accuse is very ugly) – washing the cow – post ((it’s somewhere) – my daddy scares me – black mail.
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor da USP.