Dentre as inovações trazidas pelo Código Civil de 2002 acerca do instituto da evicção, uma em particular mereceu, desde a primeira hora, muitas dúvidas, críticas e aplausos. Trata-se do disposto no artigo 456, que dispõe:
Art. 456. Para poder exercitar o direito que da evicção lhe resulta, o adquirente notificará do litígio o alienante imediato, ou qualquer dos anteriores, quando e como lhe determinarem as leis do processo.
O ponto em questão foi a previsão de notificação, pelo evicto, a qualquer dos alienantes anteriores e não somente ao imediato como outrora previa o CC/1916. Tal inovação apareceu em substituição à regra anterior que tratava da denunciação da lide, matéria de natureza processual.
Aliás, diga-se, o próprio legislador faz a expressa conexão com a lei processual na parte final do caput e no parágrafo único do referido artigo.
Com toda razão o tema despertou o interesse dos processualistas, que viram no referido dispositivo a autorização expressa de uma denunciação per saltum, destoante das regras de denunciação direta e sucessiva estabelecidas respectivamente nos artigos 70, I e 73, ambos do CPC/1973.
Entre os processualistas a questão ganhou diferentes interpretações, como expõe Didier1, alguns defendendo o acerto e a imediata aplicação da norma, que seria heterotópica, e outros defendendo a sua inaplicabilidade justamente por falta de legislação processual a regular tal hipótese, o que seria exigido pela própria parte final do caput do artigo, como Alexandre Freitas Câmara, que conclui:
“Determinando a lei civil que a denunciação da lide se faça ‘quando e como determinarem as leis do processo’, não será admissível a denunciação da lide per saltum, fazendo-se mister a realização de denunciações da lide sucessivas.”2
A doutrina civilista, por sua vez, trilhou caminho diverso de interpretação, compreendendo tal dispositivo como sendo a expressa consagração da corresponsabilidade entre os integrantes da cadeia dominial frente aos danos sofridos pelo evicto.
Haveria na norma, portanto, inovação de conteúdo de direito material e não estritamente processual, de modo que a denunciação da lide se faria diretamente ao responsável, porém sem restrição ao vínculo contratual imediato.
Tomemos como exemplo a lição de Caio Mario da Silva Pereira:
“Essa possibilidade de denunciação da lide de qualquer um dos alienantes, independentemente da posição que tenha na sucessão de titularidades sobre o bem, é uma inovação importante do Código de 2002, porque possibilita ao evicto cobrar a sua indenização diretamente do responsável pela aquisição viciada originária, sem que tenha que exercer o seu direito contra o alienante imediatamente anterior e sucessivamente.” 3
Nesta linha, foi proposto e aprovado o enunciado 29, da I Jornada de Direito Civil, promovida pelo CJF e, posteriormente, rejeitada na III Jornada a proposta de cancelamento deste mesmo enunciado, justamente por entenderem, os juristas integrantes de ambas comissões, que o artigo 456 estaria alinhado ao Princípio da Função Social do Contrato consagrado no artigo 421, também do Código Civil.
29 – Art. 456: A interpretação do art. 456 do novo Código Civil permite ao evicto a denunciação direta de qualquer dos responsáveis pelo vício.
Na opinião de boa parte da doutrina civilista, com a qual particularmente comunga este articulista, o artigo 456, ao afirmar o cabimento da denunciação a qualquer dos alienantes anteriores, teria consagrado a eficácia externa do crédito (ou tutela externa do crédito), inspirada na Função Social do Contrato.
Neste sentido leciona Flávio Tartuce:
“Ademais, os efeitos contratuais são ampliados, além da primeira relação jurídica estabelecida, o que representa aplicação da eficácia externa da função social do contrato (art. 421 do CC e Enunciado n. 21 do CJF/STJ).” 4
Lapidar, a nosso ver, a lição de Chaves e de Rosenvald, in verbis:
“Poder-se-ia indagar: mas qual é a relação jurídica do adquirente com aquele proprietário primitivo que não lhe alienou o bem? A resposta se encontra na cláusula geral da função social do contrato (art. 421 do CC), à medida que a perda do direito se traduz em ofensa à situação jurídica patrimonial do adquirente, não exclusivamente causada pelo alienante imediato, mas por todos aqueles que o antecederam nas relações materiais das quais não fez parte. A garantia da evicção será concedida, portanto, pela totalidade de transmitentes, que deverão assegurar a idoneidade jurídica da coisa não só em face de quem adquiriu diretamente como dos que, posteriormente, depositaram justas expectativas de confiança na origem lícita e legítima dos bens evencidos.” 5
No mesmo sentido, encontramos as lições de Marco Aurelio Bezerra de Melo6 e de Humberto Theodoro Júnior7.
Esclareça-se, ainda, que o tema da eficácia externa do contrato é intensamente debatida em doutrina, com esteio ora no artigo 421, da Função Social, ora nos artigos 187 e 422, da Boa-fé e da repressão ao abuso de direito, como se pode aprofundar nas obras de Humberto Theodoro Neto (Efeitos Externos do Contrato – Direitos e Obrigações dos Contratantes e Terceiros. Rio de Janeiro: Forense, 2007) e de Teresa Negreiros (Teoria do Contrato. Rio de Janeiro: Renovar).
Em que pese a posição defendida no âmbito do direito civil, a tese contrária ao artigo 456 se refletiu no Novo Código de Processo Civil, que prevê a revogação do mesmo, bem como mantém a técnica da denunciação direta e sucessiva.
Mas há que se indagar: será que tal revogação, superada a vacatio legis, realmente significará o fim da possibilidade de responsabilização dos alienantes anteriores, pelo evicto?
A nosso sentir, em que pese o caminho possa se tornar evidentemente mais difícil e tortuoso, ainda será possível sustentar a legitimidade do alienante anterior não imediato para figurar no polo passivo da demanda a ser proposta pelo evicto, ao menos de forma autônoma.
Isto porque, se o fundamento da corresponsabilidade seria a admissibilidade dos efeitos externos do contrato, em razão da Função Social normatizada no art. 421 do Código Civil, especialmente daquele que foi o real causador da alienação ineficaz, logo, tal fundamento ainda seria sustentável mesmo sem a previsão expressa do art. 456 do mesmo diploma, buscando-se dar a maior efetividade à tutela do credor evicto.
Por outro lado, ainda que afastada a tese da ampliação da garantia contratual, por estrita atenção ao clássico Princípio da Relatividade dos efeitos do Contrato, seria possível discutir a existência de nexo causal para uma responsabilidade aquiliana, ao menos em face daquele que tenha sido o originário causador do dano, por força do que dispõe o art. 186, 927 e 942, todos do Código Civil. Este último artigo, inclusive, prevendo expressamente a solidariedade entre todos os causadores do dano.
Claro que, no sentido da segurança Jurídica e da almejada operabilidade da norma, seria desejável a manutenção de uma regra específica sobre a responsabilidade na cadeia de alienações, como ocorre no CDC (art. 7º) e no direito cambiário (cadeia de endossos), mas enquanto tal norma não houver, caberá aos juristas a interpretação do polêmico tema, com ou sem o art. 456.
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1 Curso de Direito Processual Civil, volume 1, 13ª. edição. Salvador: Juspodium, 2011, p. 378 – 380.
2 Lições de Direito Processual Civil, volume I, 20ª. edição. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2010, p. 206.
3 Instituições de Direito Civil, vol. III. 19ª. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 123-124.
4 Direito Civil, vol. 3, 10ª. edição. São Paulo: Método, 2015, p. 223.
5 Curso de Direito Civil, volume 4, 2ª. edição. Salvador: Juspodium, 2012, p. 515.
6 Direito dos Contratos. São Paulo: Atlas, 2015, p.307.
7 O Novo Código Civil e as Regras Heterotópicas de Natureza Processual, Revista Síntese do Direito Civil e Processual Civil, 2004, vol. 32, p. 27.
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*André Roberto de Souza Machado é advogado, sócio sênior de SMGA Advogados.